quinta-feira, 14 de abril de 2016

OUTROS CONTOS

«Casa de Cómodos», por Aluísio Azevedo.

«Casa de Cómodos»
Erik Satie à Chaminé/ Rusinol

776- «CASA DE CÓMODOS»

Há no Rio de Janeiro, entre os que não trabalham e conseguem sem base pecuniária fazer pecúlio e até enriquecer, um tipo digno de estudo – é o “dono de casa de cómodos”; mais curioso e mais completo no género que o “dono de casa de jogo”, pois este ao menos representa o capital da sua banca, susceptível de ir à glória, ao passo que o outro nenhum capital representa, nem arrisca, ficando, além de tudo, isento da pecha de mal procedido.

Quase sempre forasteiro, exercia antes um ofício na pátria que deixou para vir tentar fortuna no Brasil; mas percebendo que aqui a especulação velhaca produz muito mais do que o trabalho honesto, tratou logo de esconder as ferramentas do ofício e de fariscar os meios de, sem nada fazer, fazer dinheiro. Foi a um patrício seu, estabelecido no comércio, pediu e dele obteve uma carta de fiança, alugou um vasto casarão de dois ou três andares, meteu-se lá dentro, pregou escritos em todas as janelas; e agora o verás!

Como na Capital Federal há mais quem habite do que onde habitar, começou logo a entrar-lhe pela casa, à procura de cómodos, uma interminável procissão de desamparados da sorte e de magros lutadores pela vida, que lhe foram enchendo surdamente, do primeiro ao último, os numerosos quartos. Mais houvesse, e não faltariam para os ocupar estudantes pobres, carteiros e praticantes do correio, repórteres de jornais efémeros, moços de botequim, operários de todas as profissões, comparsas e figurantes de teatro, pianistas de contrato por noite, cantores de igreja, costureiras sem oficina, cigarreiros sem fábrica, barbeiros sem loja, tipógrafos, guarda-freios, limpa- trilhos, bandeiras de bondes, enfim toda essa gente, para quem se inventaram os postos mais ingratos na luta pela vida, os mais precários e os mais arriscados; essa gente que em tempo de paz morre de fome, e em tempo de guerra dá de comer com a própria carne às bocas de fogo das baterias inimigas.

Mas, por entre a aflita farandolagem dos ganhadores de pão para a boca, surge sempre na casa de cómodos um tipo que é o desespero do locador e o tormento dos locatários. Refiro-me ao poeta boémio.

O poeta boémio é para o alugador de cómodos o osso do seu ofício. Sem emprego, sem rendimentos de nenhuma espécie, sem mesada e sem mobília, carregado de sonhos, que são os filhos que lhe deu Quimera, sua amante, o poeta vive da desgraça e da glória de ser poeta, atravessando indiferentemente todos os andares da miséria, olhos fitos no ideal, aos encontrões com os miseráveis que sobem e com os miseráveis que descem as longas escadarias do negro e frio castelo. Seu pé quase descalço não respeita o que topa, nem escolhe o terreno que pisa, e vai mundo afora, caminhando pelos simétricos canteiros da burguesia indignada e pelos relvosos coradouros das lavadeiras em fúria.

Esse é o anjo mau da casa, o terror dos vizinhos, o mal querido de todos os locatários. Dorme enquanto os outros trabalham e durante a noite conversa com as estrelas, declamando em voz alta coisas de amor e de fantasia que, ali, só ele e elas compreendem. Esse nunca paga. Mas que importa o calote de um boémio, cujo quarto era um pouco maior que uma sepultura, se os outros inquilinos aí ficam para ir despejando, todos os meses, na funda algibeira do malandro, os trinta, os quarenta, os cinquenta e os cem mil-réis; e se com esse dinheiro pode o alugador de cómodos pagar o aluguer do prédio, e comer, e beber, e gozar, pondo ainda de parte o seu pecúlio em que já se abotoa a futura riqueza e talvez a futura comenda?

E assim vai vivendo o esperto forasteiro à barba longa, perna alçada e barriga farta, enquanto os outros trabalham para ele.

Lá um belo dia de fim de mês, um dos estudantes da casa, tendo devorado a mesada, atira a canastra pela janela e foge em seguida, abandonando a estreita cama de ferro, a mesinha e o lavatório; e, como os maus exemplos aproveitam sempre, um segundo estudante, e um terceiro e um quarto, seguem, como as famosas pombas de mestre Raimundo Correia, o voo do companheiro, e cá vão ficando no pombal as meias cómodas, as estantes americanas e as cadeiras compradas no belchior.

E outros, e outros inquilinos, atrasados no pagamento do mês vencido, lá se vão a contragosto não já pela janela, mas pela porta da rua, com uma descompostura atrás, deixando nas gloriosas mãos do triunfador, como despojo da luta, os tarecos que constituíam a sua mobília.

Então, o dono da casa de cómodos começa a anunciar “Quartos mobilados” e começa a cobrar aos novos hóspedes o duplo do que cobrava aos primitivos. E, ao fim de algum tempo, aí está o nosso homem pondo de parte, a cada mês, o triplo do que dantes punha, porque já não aluga aposento sem mobília e sem roupa de cama.

São sempre os inquilinos quem guarnecem de móveis as hospedarias desse género. Daí a ter o que se chama “Casa de pensão” só vai a um passo, e a coisa faz-se quase sempre do seguinte modo: – Como o malandro nada mais tem a fazer durante todo o mês do que cobrar os alugueis no dia primeiro, enche as horas de calor a ensinar habilidades ao seu cão ou ao seu papagaio, e nas horas frescas vai para a calçada da rua cavaquear com os vizinhos.

Entre estes há sempre uma quitandeira de quem o dono da casa de cómodos, começando por merecer a simpatia, acaba por conquistar a confiança e o amor. Juntam-se e, quando ela dá por si, está cozinhando e lavando para todos os hóspedes do eleito do seu coração, sem outros vencimentos além das carícias, que lhe dá o amado sócio.

Assim chega a empresa ao seu completo desenvolvimento, e o dono da casa de pensão começa a ganhar em grosso, acumulando forte, sem trabalhar nunca, nem empregar capital próprio, até que um dia, farto de aturar o Brasil, passa com as luvas o estabelecimento e retira-se para a pátria, deixando, naturalmente também com luvas, a quitandeira ao seu substituto.

E, quando algum dos inquilinos fala mais alto no seu quarto, ou quando os estudantes e as costureiras dão para rir e cantar, acode o locador e ordena que se calem, gritando que não admite barulhos em “sua casa”.

Sua casa! Ora, eis aí, ao meu ver, uma coisa singularíssima. O aluguer daquele prédio é pago pelos hóspedes, como é a mesa, o gás, a água e o serviço dos criados. Tudo que ali está dentro foi comprado pelos locatários e não pelo locador; ali só há um homem que não trabalha e que não paga o lugar que ocupa, nem a comida que consome, nem o serviço dos que o servem; e é, no entanto, esse homem justamente quem só tem ali o direito de dizer que está em sua casa e o único que grita e manda como verdadeiro dono.

Será legal, mas é injusto e é duro. Se ao menos o especulador tomasse a responsabilidade do que se passa dentro da “sua casa”, vá, mas nem isso acontece, porque, quando os inquilinos são vitimados pelos gatunos, ninguém lhes responde pelo objecto subtraído.

Entrássemos lá agora, neste instante, e espiássemos para dentro de cada quarto. Neste veríamos um pobre homem a fazer charutos; naquele uma mulher a coser camisas; mais adiante um artista a desenhar; outro a decorar um papel de comédia; outro a escrever; outro a consertar relógios; e aqui um estudante às voltas com uma caveira e um compêndio de medicina; e ali um fotógrafo a preparar clichés. E, se indagássemos o que fazem os hóspedes ausentes cujos quartos estão fechados e não garantidos por ninguém, saberíamos que todos eles andam a ganhar a vida, ao balcão, na rua, nas oficinas, nas secretarias, nas redacções das folhas e nos escritórios de todos os géneros. Pois bem! Enquanto toda essa gente moureja, o que faz o locador? 

O locador, defronte do seu papagaio, estala os dedos com a mão no ar e, risonho, babar-se feliz, diz-lhe pela milésima vez: “Papagaio real, para Portugal! Quem passa meu louro? É o rei que vai à caça!”

Todavia, certo é que dentre toda aquela gente, é ele o único que tem imputabilidade social no nosso meio.

Será justo? Não sei, mas parece-me que o direito de ter casa de alugar cómodos ou casa de pensão devia ser conferido pelo governo, como um privilégio de recompensa, somente aos inválidos da pátria, que já não possam trabalhar, ou às viúvas dos militares, dos artistas e dos filósofos, que se tenham sacrificado em nossa honra e morrido na pobreza.

Que diabo! não vale a pena fazer propaganda de imigração para termos belos malandros que ensinem papagaios a falar!

Aluísio Azevedo

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