quinta-feira, 29 de setembro de 2016

OUTROS CONTOS

«Nos Mares do Fim do Mundo», por Bernardo Santareno.

«Nos Mares do Fim do Mundo»
Crónicas de Viagem ao Bacalhau

885- «NOS MARES DO FIM DO MUNDO»

[Excerto]

Foi no Granja, um velho lugre de três mastros, ao que me dizem já desaparecido. O Albino algarvio era o bobo do veleiro: não havia ninguém na companha, desde os moços de convés até aos oficiais da ponte, que não gostasse de molhar a sopa.

Uns puxavam-lhe a camisola, outros tiravam-lhe o barrete e todos o feriam com graçolas pesadas, achincalhando-o com alcunhas e risos destemperados. O Albino ia sofrendo em silêncio e às vezes, que remédio!, chegava mesmo a emprestar aos lábios um sorriso dolorosamente pregueado. Mas no interior, lá por dentro, era uma chaga viva, um cancro que, sem tréguas, o vinha roendo: Malvados! Se lhes pudesse ser bom... Mas não podia. Enfim, uma desgraça: ele, ali no navio, era o fantoche, o bombo onde todos malhavam, o escarradoiro para onde, sem cerimónia, os outros cuspiam! Mas tantas lhe faziam que um dia... ora, ora, um dia... nada, sempre nada! Estava sozinho, não tinha ninguém por ele: como um bicho desprezível e feio... Feio! Todos lho chamavam. E cabeçudo, e torto, e marreco... Feio: de tudo, seria talvez o que mais o fazia sofrer!

Por duas vezes já, em acessos de raiva, calcara a pés juntos o espelhinho de algibeira. Ah, mas eles não sabiam ainda quem era o Albino! E daí talvez tivessem razão: em muitas horas, quase sempre!, sentia-se manso e receoso como um boi capado. Até que um dia, só até um dia!... Que se acautelassem, pois uma vez o palonça, o pobre diabo, podia perder a cabeça e... Um mar de gargalhadas apagava sempre as suas ameaças: Como os odiava, nestas alturas! E passava as noites a remoer planos de vingança, arrepios de terror e lágrimas de abandono. Então ele, Albino, não seria um homem como os outros?! Tinha que o provar, tinha que lhes mostrar do que era capaz. Era um homem, ele era um homem!

Mas os dois piores, os mais verdugos, seriam o cozinheiro Ricoca e o seu ajudante, o Mazorro: Ganhara-lhes medo, só de vê-los ficava com febre! Ainda ontem o Ricoca, à saída da cozinha, lhe passara uma rasteira de tal jeito, que ele fora estatelar-se no convés, no preciso momento em que uma grande onda galgava a amurada: Ficara todo encharcado, da cabeça aos pés. Em redor, os outros apertavam o ventre, de tanto rirem...

Ná, não podia continuar assim: perdera o gosto pela vida e sentia-se como um espantalho de eira, como uma vela esfarrapada ao vento. Os outros faziam-lhe tudo quanto queriam e ele nem reagia, sempre se ficava quedo e mudo: Verdade, verdadinha, ao cabo e ao resto, não passava dum reles cobarde. Só de pensar na mulher e no filho, sentia a cara arder de vergonha e o corpo alagado em suores frios: Rico chefe de família, não haja dúvida! Ah, mas aquele Ricoca!... A raiva que lhe tinha! E o outro, esse Mazorro do diabo, não era melhor... Pudesse ele! Tinha que poder: ou arranjava coragem para tirar vingança daqueles dois, ou deitava-se ao mar. E, noite após noite, foi acumulando projectos, imaginando torturas... Mas vinha a manhã e era como se o vento marítimo lhe apagasse o lume das veias: cada dia mais amarfanhado, mais triste. Uma miséria, uma vergonha! Aquilo tinha que acabar: ou ele, ou os outros dois! Daquela noite não passaria. Mas como? Sòzinho, apenas com as suas próprias forças, não podia: estava mais que visto.

E, contra o seu costume, naquela tarde, logo ao jantar, bebeu fartamente. E depois continuou... até sentir fósforos de lume acenderem-se-lhe na cabeça. Os da companha, admirados, riam e davam-lhe palmadas nas costas. Então, veio o Ricoca: Eh, Albino! Eh, Algarvio!, Atão o que é isso, home? Queres afogar as mágoas?... Calem-se praí, rapazes: Na sabem que ele inda na recebeu cartas da família? São coisas qu’acontecem a calquer mortal: Se calhar a mulher...

E os risos chocarreiros apertaram-no, como um círculo de chumbo a ferver. Um pouco cambaleante, o Albino conseguiu erguer-se à altura do cozinheiro: olhos nos olhos do inimigo, as mãos contraídas nos bolsos, os dentes arreganhados como os dum lobo, o algarvio, por momentos e em silêncio, bafejou com o seu hálito azul espesso a cara surpreendida do Ricoca; depois, de súbito, soltou uma gargalhada impressionante, estridente e sacudida como um soluço e, sem palavra, afastou-se precipitadamente dali. Desta vez os pescadores não chicanaram: antes ficaram calados, inquietos, num vago pressentimento de perigo.

E realmente foi nessa mesma noite (quantos, passados já mais de quinze anos, ainda a recordam angustiados!) que o Albino, mais conhecido no mar pelo algarvio, esfaqueou barbaramente, enquanto dormiam nos beliches, o cozinheiro Ricoca e o seu ajudante Mazorro: Cego de fúria, bêbado de vinho e de sangue, deu facadas à toa, no peito, no pescoço... por onde achou carne penetrável! Quando, enfim, conseguiram arrancar-lhe a lâmina das mãos, o Albino mostrava a face tinta de vermelho e, em uivos lamentosos, chorando e rindo convulsivamente, repetia baixinho: Ai a minha mulher... ai, o mê filhinho... estão desgraçados, estão desgraçados!...

E o algarvio foi logo amarrado ao mastro do meio, com guarda permanente. Toda a noite ondeou, em volta do assassino, uma vaga crepitante de archotes. O vigia recebera ordem para disparar contra quem quer que tocasse no preso: Só por isso, o Albino não foi estrangulado naquele anel de lume, movediço e feroz. Quando a madrugada veio, o Albino, esfarrapado, sujo de sangue, estava roxo de frio e de terror! A cada ameaça, a cada impropério, a cada escarro que lhe lançavam os da companha, o homem só gemia: Ai, o mê filhinho... ai, o mê filhinho!... Mais não dizia. E, nem a neve que incessantemente caía, nem as ondas do mar que mais duma vez o cobriram, puderam limpá-lo daquele sangue.

Depois levaram-no para o Gil Eannes. Aí, mais compreensivos, deixavam-no andar à solta pelo navio. Mas ele nunca mais quis falar. E mal comia. De noite, ouviam-no chorar. O comandante, condoído, tentava animá-lo: o Albino sorria tristemente, abanava a cabeça e, sem palavra, punha os olhos no chão. Assim sempre. Foi ainda com este mesmo sorriso triste, sem ódio nem fúria, que, naquela manhã de procela, o Albino galgou a amurada do Gil Eannes para se lançar ao mar revolto. Houve quem o tivesse visto, neste preciso momento: e todos afirmam que ele cumpriu o acto serenamente, sem a costumeira precipitação desesperada, sem a mínima atitude ritual, nada disso...simples , naturalmente, com o tal sorriso triste e infantil a chorar-lhe nos lábios. Lá ficou. Não foi possível salvá-lo….

Bernardo Santareno

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