quinta-feira, 21 de setembro de 2017

OUTROS CONTOS

«A Estrela», por H. G. Wells.

«A Estrela»
Conto de H. G. Wells

1100- «A ESTRELA» 

O anúncio foi feito no primeiro dia do ano-novo, por três observatórios, de modo quase simultâneo: o movimento de Neptuno, o planeta mais afastado do Sistema Solar, tinha se tornado bastante errático. Ogilvy já chamara a atenção para um atraso suspeito na velocidade desse astro, em Dezembro. Tal notícia dificilmente iria interessar a um mundo cujos habitantes, em sua maioria, ignoravam a existência do planeta Neptuno, e, com excepção da comunidade astronómica, a descoberta subsequente de um minúsculo ponto de luz na região daquele planeta perturbado não causou muita excitação a ninguém.

Os cientistas, no entanto, consideraram extraordinária aquela descoberta, mesmo antes de ficar evidente que o novo corpo celeste estava aumentando rapidamente de tamanho e de luminosidade, que seu movimento era bem diferente dos deslocamentos regulares dos planetas, e que a deflexão de Neptuno e de seu satélite estavam assumindo proporções nunca vistas.

Poucas pessoas sem informação científica são capazes de ter ideia do enorme isolamento do nosso Sistema Solar. O sol, os grãos de poeira que são seus planetas, a nuvem que são os asteróides, seus cometas impalpáveis, tudo isto flutua no meio de uma imensidade vazia que desafia a imaginação. Além da órbita de Neptuno existe apenas o vácuo até onde penetrou a observação humana: sem calor, sem luz, sem som, uma vastidão vazia ao longo de vinte milhões de vezes um milhão de milhas. Esta é a menor estimativa da distância que é preciso atravessar para se alcançar a estrela mais próxima.

E, com excepção de alguns cometas que são mais insubstanciais do que a mais débil das chamas, não é do conhecimento humano que qualquer tipo de matéria tenha atravessado esse golfo de espaço, até que no princípio do século XX esse estranho astro errante apareceu. Era uma vasta massa de matéria, volumosa, pesada, brotando sem aviso da escuridão misteriosa do céu, rumo à radiação do Sol.

No segundo dia, era claramente visível, a qualquer instrumento óptico decente, como uma fagulha de diâmetro apenas perceptível, na constelação de Leão, perto de Regulus. Pouco tempo depois, um binóculo de ópera era capaz de percebê-la.

No terceiro dia do ano-novo, os leitores dos jornais dos dois hemisférios ficaram sabendo pela primeira vez da verdadeira importância daquela extraordinária aparição celeste. “Uma Colisão Planetária”, essa foi a manchete principal de um jornal londrino, divulgando a opinião de Duchaine de que aquele estranho planeta novo iria provavelmente colidir com Neptuno. Os principais articulistas puseram-se a glosar este tema, de modo que na maioria das capitais mundiais, em 3 de Janeiro, criou-se uma expectativa, ainda que vaga, quanto a um iminente fenómeno a ocorrer nos céus; e quando a noite sucedeu ao pôr-do-sol em volta do globo, milhares de homens ergueram os olhos para o céu, onde viram apenas as velhas e familiares estrelas, nas posições que sempre ocuparam.

Até que amanheceu em Londres, com Pollux se pondo e as estrelas no alto tornando-se mais pálidas. Era um amanhecer de inverno, e a luz fraca do dia se filtrava e se impunha no ar, enquanto o brilho dos lampiões a gás e das velas lançava um clarão amarelado pelas janelas, revelando a presença inquieta dos grupos de pessoas na rua.

Mas o policial, bocejando de sono, a avistou; as multidões atarefadas nos mercados se quedaram de boca aberta, operários indo apressados para o trabalho, leiteiros, motoristas dos carros de distribuição dos jornais, boémios voltando para casa cansados e pálidos, vagabundos sem-tecto, vigias em suas guaritas e, no campo, lavradores caminhando para a roça, caçadores furtivos voltando para casa...

Por cima de toda aquela vastidão ainda semiescurecida ela podia ser vista — e no alto-mar, pelos marinheiros à espera da aurora: uma grande estrela branca, erguendo-se de repente no lado oeste do firmamento!

Era mais brilhante do que qualquer uma das estrelas do céu; mais brilhante do que a estrela da tarde em sua luminosidade mais intensa. Reluzia, grande e branca; não apenas um pontinho de luz coruscante, mas já era um pequeno disco, redondo e luminoso, uma hora após o raiar do dia. E naqueles lugares ainda não alcançados pela ciência os homens a olhavam com medo, falando entre si de guerras e de pestes anunciadas por esses sinais de fogo nos céus.

Bôeres corpulentos, hotentotes escuros, negros da Costa do Ouro, franceses, espanhóis, portugueses, todos se detinham na luz cálida do sol observando o declínio daquela estrela nova e estranha.

E em uma centena de observatórios tinha havido uma excitação contida, quase redundando em algazarra, quando os dois corpos celestes convergiram um para o outro; e uma correria apressada para preparar aparelhos fotográficos e espectroscópios, e mais esta e aquela máquina, para registar essa visão inédita e espantosa, a destruição de um mundo.

Por que era um mundo, um planeta irmão da Terra, e na verdade muito maior do que ela, que havia sido vitimado por aquela morte chamejante. Neptuno tinha sido atingido bem de frente pelo estranho planeta do espaço exterior, e o calor da colisão tinha imediatamente transformado os dois sólidos globos em uma única e vasta massa incandescente. Ao redor do mundo inteiro naquele dia, duas horas antes do amanhecer,ergueu-se a enorme e pálida estrela branca, cujo brilho esmoreceu apenas quando começou a descer no oeste e o sol ergueu-se do lado oposto. Por toda parte os homens se maravilharam à sua visão, mas de todos que a avistaram nenhum se maravilhou mais do que os marinheiros, vigias habituais das estrelas, que, viajando em mar alto, nada sabiam da sua aproximação e a viam agora erguendo-se como uma lua anã, escalando o céu rumo ao zénite, onde flutuava por algum tempo e depois descia no ocidente, com o avanço da noite.

Na vez seguinte em que se ergueu nos céus da Europa, por toda parte havia observadores nas encostas das colinas, nos tectos das casas, nos espaços abertos, de tocaia na direcção do leste, esperando o nascer da grande estrela nova. Ela se ergueu precedida por uma luminosidade branca, como a luz de um fogo branco, e aqueles que a tinham visto erguer-se na noite anterior gritaram, ao vê-la: “Está maior!”, exclamaram eles, “Está mais brilhante!”.

E de facto a lua em quarto crescente mergulhava no oeste, e em tamanho aparente não era possível comparar as duas, mas mesmo em toda sua largura a lua não produzia tanto brilho quanto o minúsculo círculo da estranha estrela nova.

“Está mais brilhante!”, exclamavam as pessoas aglomeradas na rua. Mas na meia-luz do observatórios os astrónomos prendiam a respiração e se entreolhavam. “Está mais próxima”, murmuravam eles. “Mais próxima!”

E outra voz, e depois mais outra repetia: “Está mais próxima”, e os telégrafos começavam a tiquetaquear, e a mensagem zunia ao longo dos fios, e em um milhar de cidades linotipistas taciturnos a digitavam nas teclas. “Está mais próxima.”

Homens que escreviam em seus gabinetes eram tomados de súbito por essa ideia e abaixavam a caneta; homens que conversavam em mil lugares diferentes percebiam de súbito a possibilidade grotesca contida naquelas palavras: “Está mais próxima.”

A mensagem se espalhou pelas ruas que despertavam do seu sono e foi gritada nas alamedas cobertas de geada, pelos vilarejos silenciosos; homens que a leram nas fitas agitadas do teletipo paravam no umbral iluminado das portas e gritavam para os passantes: “Está mais próxima!” Belas mulheres, ruborizadas e deslumbrantes, ouviam a notícia sendo repetida em tom brincalhão entre uma dança e outra, e fingiam uma expressão de inteligência e de um interesse que estavam longe de sentir. “Mais próxima. Que coisa! Como é interessante! Como as pessoas precisam ser inteligentes, para ficar sabendo de coisas assim!”

Vagabundos solitários enfrentavam a noite de inverno murmurando aquelas palavras para seu próprio conforto, olhando para o céu. “Ela precisa estar mais perto, por que a noite está fria como a caridade. De qualquer modo, estar mais próxima não nos aquece nem um pouco.”

“O que significa para mim uma estrela nova?”, chorava a mulher, ajoelhada junto do morto querido.

O estudante, acordando cedo para estudar para a prova, começou a examinar o problema, vendo a grande estrela branca erguer-se larga e brilhante através do desenho da geada nos vidros da janela. 

“Centrífuga, centrípeta”, murmurou ele, com o queixo apoiado na mão. “Pare um planeta no meio do seu trajecto, retire sua força centrífuga, e então? A força centrípeta toma conta, e ele cai na direcção do sol! E isto...”

“Será que estamos no trajecto? Fico pensando...”

A luz daquele dia se dissipou como a dos anteriores, e as vigílias tardias no meio da escuridão gelada viram erguer-se de novo a estranha estrela. Estava agora tão brilhante que a própria lua parecia apenas um reflexo pálido de si mesma, pendendo, enorme, para o lado do pôr do sol. Numa cidade da África do Sul um homem importante acabava de se casar, e as ruas estavam todas claras para o seu regresso com a noiva. “Até os céus se iluminaram”, disse um bajulador. Sob o Trópico de Capricórnio, um casal de namorados negros, desafiando os animais selvagens e os maus espíritos pelo amor um do outro, agachou-se no meio de um canavial onde esvoaçavam vagalumes.

“Essa é a nossa estrela”, murmuraram eles, e se sentiram estranhamente confortados pelo doce brilho daquela luz.

O professor de matemática, sentado em seu gabinete, empurrou para longe as folhas de papel. Seus cálculos estavam quase concluídos. No pequeno frasco de vidro ainda restava um pouco da droga que o mantivera desperto e activo ao longo daquelas quatro noites. Todos os dias, sereno, explícito, paciente como sempre, ele dera aula aos alunos e depois voltara para se entregar aos cálculos. Seu rosto estava grave, um pouco desgastado e macilento devido ao esforço e à droga.

Durante algum tempo, pareceu perdido em seus pensamentos. Depois ergueu-se e foi à janela, fazendo a persiana erguer-se com um estalo. Suspensa no céu por sobre os tectos amontoados, as chaminés e as torres da cidade, brilhava a estrela.

Ele a fitou como alguém que olha nos olhos um inimigo corajoso. “Você pode-me matar”, disse após um silêncio. “Mas eu posso ter você, e todo o resto do universo, aliás, aqui — dentro deste meu pequeno cérebro. E não vou mudar. Nem mesmo agora.”

Olhou para o pequeno frasco. “Não vou precisar mais dormir”, disse. No dia seguinte, ao meio-dia em ponto, ele entrou no auditório, pôs o chapéu junto à borda da mesa, como era seu hábito, e escolheu cuidadosamente um pedaço de giz. Corria entre seus alunos a piada de que ele era incapaz de falar sem ter um giz entre os dedos, e uma vez se tinha quedado, impotente, diante da turma, porque alguém escondera o giz. Ele adiantou-se e olhou, por sob as sobrancelhas cerradas, as fileiras superpostas de rostos jovens à sua frente, e falou como era seu costume, em frases simples e bem-articuladas.

— Surgiram circunstâncias, circunstâncias que estão além do meu controle — disse ele, e fez uma pausa. — Elas vão-me impedir de levar até o fim o curso que planeei. Parece-me, cavalheiros, se é que posso colocar a questão de um modo tão directo, que o Homem existiu em vão.

Os alunos se entreolharam. Tinham ouvido direito? Ele estaria louco? Aqui e ali viram-se sobrancelhas erguidas e lábios sorridentes, mas um ou dois rostos continuaram voltados para o rosto calmo do professor, emoldurado por cabelos grisalhos.

Ele se virou para o quadro negro, concentrando-se num diagrama, como lhe era habitual.

— O que foi isso sobre existir em vão? — sussurrou um estudante para o colega.

— Escute — foi a resposta do outro, fazendo um gesto na direcção do mestre.

E aos poucos eles começaram a entender.

Naquela noite a estrela ergueu-se mais tarde, porque seu próprio movimento pelo espaço a carregara através da constelação de Leão na direcção de Virgem, e seu brilho era tão forte que o céu inteiro ficou de um azul luminoso quando ela se ergueu, e todas as outras estrelas sumiram, com excepção de Júpiter perto do zénite, Capela, Aldebarã, Sirius e as duas estrelas da Ursa Maior que apontam para o norte.

Era uma estrela muito bela e muito branca. Em várias partes do mundo, naquela noite, foi vista rodeada por um halo de luz pálida. Estava visivelmente maior; no ar claro e refractivo dos trópicos parecia ter quase um quarto do tamanho da lua. Ainda havia geada no chão da Inglaterra, mas o mundo estava tão brilhantemente iluminado como se aquilo fosse uma lua cheia no meio do verão. Era possível ler um livro àquela luz, e nas cidades as chamas de gás queimavam amareladas e pálidas.

E por toda parte, naquela noite, o mundo ficou desperto, e através de toda a Cristandade um murmúrio se espalhou pelos ares como um zumbido de abelhas na colmeia, e esse murmúrio inquieto se transformou num clangor ao chegar nas cidades. Era o bimbalhar de sinos em um milhão de torres e de campanários, dizendo ao povo que não dormisse mais, que não pecasse mais, e que se reunisse nas igrejas para rezar. E no alto, ficando maior e mais brilhante enquanto a Terra girava sobre si mesma e a noite avançava, erguia-se a estrela luminosa.

As ruas e as casas estavam iluminadas nas cidades, os estaleiros resplandeciam de luzes, e todas as estradas que levavam ao campo ficaram acesas e cheias de gente durante a noite. E nos mares de todas as terras civilizadas espalhavam-se navios com motores barulhentos e navios com velas enfunadas, cheios de homens e de criaturas vivas, todos olhando na direcção do mar e do norte. Porque àquela altura o alarme do professor de matemática já tinha sido telegrafado através do mundo inteiro, e traduzido numa centena de idiomas. O novo planeta e Neptuno, fundidos num abraço fatal, vinham rodopiando pelo espaço, cada vez mais depressa, na direcção do sol. A cada segundo aquela massa ardente percorria cem milhas, e a cada segundo sua terrível velocidade aumentava. No trajecto que percorria agora, deveria passar a cerca de cem milhões de milhas da Terra, e mal a afectaria. Mas nas proximidades de sua trajectória, tendo sido apenas levemente perturbado até então, encontrava-se o grande planeta Júpiter e suas luas, girando com esplendor em volta do sol. E cada instante ficava mais forte a atracção entre a estrela flamejante e o maior dos planetas. E qual seria o resultado dessa atracção? Inevitavelmente, Júpiter seria desviado de sua órbita para uma órbita elíptica, e sua atracção arrastaria a estrela ardente para longe do caminho que vinha percorrendo rumo ao sol, descrevendo “uma trajectória curva” que a levaria a colidir, ou pelo menos a passar muito próxima da Terra. “Terremotos, erupções vulcânicas, ciclones, tsunamis, inundações e uma temperatura em contínua elevação até não sei que limite”, profetizara o professor de matemática.

E lá no alto, confirmando suas palavras, brilhava ela, solitária, lívida e fria, a estrela que trazia a catástrofe final.

Muitos que a observaram sem parar durante aquela noite tiveram a vivida impressão de que ela estava chegando mais perto. E naquela noite também o clima mudou, e a geada que tinha coberto toda a Europa Central, a França e a Inglaterra começou a derreter.

Mas não se deve pensar que porque falei de gente rezando a noite inteira, gente superlotando os navios, gente fugindo para as montanhas, que o mundo inteiro estava tomado de terror por causa da estrela. Para falar a verdade, o hábito e a rotina ainda governavam o mundo, e, a não ser pelas conversas nos momentos de lazer e pelo esplendor da noite, nove em cada dez seres humanos continuavam dedicados às suas ocupações costumeiras.

Em todas as cidades as lojas, à excepção de uma ou outra, abriam e fechavam no horário de sempre, o médico e o agente funerário exerciam seus ofícios, os operários se aglomeravam nas fábricas, soldados se exercitavam, eruditos estudavam, amantes iam em busca um do outro, ladrões ocultavam-se e fugiam, políticos preparavam suas armações. As oficinas dos jornais trabalhavam a noite inteira, e muitos padres, nesta igreja e naquela, recusavam-se a abrir seus recintos sagrados para alimentar o que eles consideravam um pânico insensato. Os jornais insistiam em lembrar a lição do ano 1000, porque naquela época, também, as pessoas tinham temido o fim. A estrela não era estrela; era mero gás, um cometa. E se fosse uma estrela não podia se chocar com a Terra. Não havia precedentes para uma coisa assim. O bom senso se reforçava por toda parte, irónico, sarcástico, inclinando-se a fustigar os demasiado medrosos.

Naquela noite, às 7h15 de Greenwich, a estrela estava em seu ponto mais próximo de Júpiter. E então o mundo iria ver que rumo tomariam as coisas. As previsões sombrias do professor de matemática eram consideradas por muitos como uma ambiciosa publicidade para si mesmo. E no fim o bom senso, um tanto afogueado pelas discussões, provava sua convicção imutável simplesmente recolhendo-se ao leito; e do mesmo modo o barbarismo e a selvajaria, também cansados da novidade, voltavam às suas preocupações nocturnas, e a não ser por um cão que uivava aqui e acolá o mundo animal ignorava a estrela.

E, contudo, quando por fim os observadores europeus viram a estrela se erguer, com uma hora de atraso, é verdade, mas não maior do que tinha aparecido na noite anterior, havia bastante gente acordada para rir do professor de matemática, e para considerar que o perigo tinha passado.

Mas daí em diante o riso cessou. A estrela cresceu. Cresceu de tamanho com uma terrível constância, hora após hora, um pouco maior a cada hora que passava, um pouco mais perto do zénite à meia-noite, e cada vez mais brilhante, até transformar a noite num segundo dia. Se ela tivesse continuado em linha recta rumo à Terra, em vez de numa trajectória curva; se não tivesse perdido velocidade em Júpiter, teria transposto aquela distância em um dia, mas no fim precisou de cinco dias inteiros para se aproximar de nosso planeta. Na noite seguinte já tinha um terço do tamanho da Lua antes de se pôr diante dos olhos dos ingleses, e o degelo estava garantido. Ergueu-se sobre a América quase do tamanho da Lua, com um clarão branco que ofuscava a todos, e quente; e um sopro de vento morno ergueu-se agora no momento em que ela surgia, ganhando força, e na Virgínia, no Brasil, e por todo o vale de St. Lawrence brilhou de forma intermitente através de uma pesada cortina de trovoadas, relâmpagos cor de violeta, e um granizo como nunca antes se vira.

Em Manitoba, veio o degelo, com inundações arrasadoras. E em todas as montanhas da Terra, naquela noite, a neve e o gelo começaram a derreter, e os rios que desciam dos planaltos vinham espessos e turbulentos, e logo, nos trechos superiores, arrastando troncos de árvores que rodopiavam, e corpos de homens e de animais. Os rios se avolumaram cada vez mais sob aquele brilho fantasmagórico, e acabaram por transbordar dos seus limites, fazendo a população dos vales fugir.

Ao longo da costa da Argentina e por todo o Atlântico Sul as marés eram mais altas do que tinham sido na memória dos homens, e em muitos casos as tempestades empurravam as águas terra adentro por dezenas de quilómetros, submergindo cidades inteiras. E o calor aumentou a tal ponto naquela noite que o nascer do sol foi como a chegada de uma sombra.

E então começaram os terremotos, até que por toda a América desde o Círculo Árctico até o Cabo Horn os despenhadeiros estavam desabando, rachaduras se abrindo, casas e muralhas sendo vítimas da destruição. Uma banda inteira do Cotopaxi se desfez durante uma vasta convulsão, e uma torrente de lava brotou por ali, tão alta e larga e líquida e veloz que lhe bastou apenas um dia para atingir o mar.

E assim a estrela, com a lua a reboque, deslocou-se através do Pacífico, arrastando as tempestades atrás de si como se fossem um manto, e o enorme tsunami que as acompanhou, espumante, ávido, abateu-se sobre uma ilha após outra, varrendo delas todo o sinal da presença humana. Até que veio a última onda de todas, por entre uma luz ofuscante e com um bafo de fornalha, rápida, terrível, uma parede de água com mais de vinte metros de altura, rugindo, faminta, rumo à costa da Ásia, e arrojando-se continente adentro através das planícies da China.

Por algum tempo a estrela, agora mais quente, maior e mais brilhante do que o sol em toda sua força, exibiu-se com um clarão impiedoso por sobre aquele país vasto e populoso; cidades e vilarejos com seus pagodes e suas árvores, estradas, campos cultivados, milhões de pessoas insones olhando com terror indefeso para o céu incandescente; e depois, grave e profundo, veio o rugido da inundação. Foi assim com milhões de pessoas naquela noite — uma fuga para lugar nenhum, com os membros enfraquecidos pelo calor, a respiração curta e escassa, e por trás delas a inundação como uma muralha rápida e branca que se aproximava. E depois a morte.

A China estava banhada por aquela luz branca, mas sobre o Japão e Java e todas as ilhas da Ásia Oriental a grande estrela era uma bola vermelha de fogo, por causa do vapor, da fumaça, das cinzas que os vulcões cuspiam para saudar sua chegada. Por cima corriam a lava, os gases quentes e as cinzas, e por baixo a massa fervilhante do maremoto, enquanto a Terra inteira estremecia e ribombava com os terremotos profundos.

Logo, até as neves imemoriais do Himalaia e do Tibete estavam se derretendo e escorrendo através de dez milhões de canais, convergindo para as planícies de Burma e do Industão. As copas emaranhadas das florestas da Índia ardiam em mil pontos diferentes, e por entre as águas impetuosas que se escoavam entre os troncos viam-se vultos escuros ainda se debatendo e reflectindo as línguas vermelhas do fogo. E numa confusão desorientada multidões de homens e mulheres fugiam ao longo dos rios rumo à última esperança do homem — o mar aberto.

E a estrela ficava cada vez maior, e mais quente, e mais brilhante, com uma rapidez terrível. O oceano tropical perdera toda sua fosforescência, e o vapor se erguia com chiados em colunas fantasmagóricas por entre as ondas escuras que se abatiam sem cessar, juncadas de navios açoitados pela tormenta.

E então deu-se um prodígio. Pareceu, a todos que na Europa esperavam pelo nascer da estrela, que o mundo tinha cessado sua rotação. Em milhares de espaços abertos, nas terras altas e nas terras baixas, as pessoas que haviam fugido das inundações, dos desmoronamentos e das avalanches esperaram em vão que ela surgisse. As horas se sucederam, num terrível suspense, mas a estrela não se ergueu. Os homens puderam avistar de novo as velhas constelações que tinham imaginado perdidas para sempre. Na Inglaterra o céu estava limpo e quente, embora o chão estremecesse sem parar, mas, nos trópicos, Sirius, Capela e Aldebarã eram visíveis através de um véu de vapor aquecido. E quando por fim a grande estrela se ergueu, com dez horas de atraso, o Sol também surgiu por trás dela, e no centro de seu resplendor branco via-se um disco negro.

Sobre a Ásia a estrela estava com atraso em seu movimento no céu, e depois, de repente, quando ela flutuava sobre a Índia, sua luz tornou-se mortiça. Toda a planície indiana desde a boca do Indus até a do Ganges era naquela noite uma vastidão arrasada coberta de águas cintilantes, de onde se erguiam templos e palácios, montanhas e colinas, escuras de gente. Cada minarete estava coberto por um amontoado de pessoas, que caíam de uma em uma nas águas turbulentas, à medida que o calor e o desespero as abatia. Da terra inteira parecia elevar-se um clamor, e de repente uma sombra se lançou sobre aquela fornalha de terror, e um sopro de vento frio, e um turbilhão de nuvens, surgiram no ar subitamente mais fresco. Os homens ergueram olhos quase cegos para a estrela, e viram que um disco negro cruzava a face luminosa. Era a Lua, surgindo entre a estrela e a Terra. E, enquanto os homens gritavam a Deus agradecendo aquele alívio, no horizonte ao leste, com uma rapidez estranha, inexplicável, apareceu o Sol. E então a estrela, o Sol e a Lua foram arrastando-se juntos pelo firmamento.

Ocorreu então que, aos olhos dos observadores europeus, a estrela e o Sol surgiram muito próximos um do outro, ergueram-se juntos no espaço durante algum tempo, indo cada vez mais devagar até se imobilizarem no zénite, estrela e Sol fundidos num único clarão. A Lua já não eclipsava a estrela, mas estava invisível num céu brilhante como aquele.

E embora a maioria dos sobreviventes visse isto através do embrutecimento gerado pela fome, fadiga, pelo calor e o desespero, ainda havia homens capazes de perceber o significado daqueles sinais. A estrela e a Terra tinham passado pelo seu ponto mais próximo, tinham cruzado uma pela outra, e a estrela passara. Já estava se afastando, cada vez mais depressa, no último trecho de sua jornada para baixo, rumo ao Sol. E então as nuvens se fecharam, tapando a visão do céu, e os trovões e os relâmpagos teceram um véu ao redor do mundo; através da Terra inteira despejou-se uma catadupa de chuva tal como a humanidade nunca vira, e enquanto os vulcões explodiam vermelhos, de encontro à abóbada de nuvens, as torrentes de lama se derramavam. Por toda parte a água corroía a terra, deixando ruínas cobertas de lama, e a terra ficou juncada de destroços, como uma praia fustigada pela tempestade e coberta de tudo que flutua, e os corpos mortos dos homens, dos animais e das crianças. Durante dias as águas varreram a terra, arrancando o solo, as árvores e as casas, no seu trajecto, produzindo pilhas gigantescas de destroços, abrindo fendas ciclópicas através do terreno. Estes foram os dias de escuridão que sucederam à estrela e ao calor. E ao longo deles, e durante muitas semanas e meses, os terremotos prosseguiram.

Mas a estrela tinha ido embora, e os homens, empurrados pela fome e pouco a pouco recobrando a coragem, podiam agora arrastar-se de volta às suas cidades em ruínas, seus celeiros em baixo da terra, seus campos empapados. Alguns poucos navios que escaparam às tempestades daquele tempo retornaram, atónitos, estonteados, abrindo caminho com todo cuidado por entre as novas marcas e o novo desenho de portos que eles antes haviam conhecido muito bem.

E quando as tormentas amainaram, os homens perceberam por toda parte que os dias agora eram mais quentes do que antes, e o Sol estava maior, e a Lua, encarquilhada até ficar um terço de seu antigo tamanho, demorava agora oitenta dias para ir de Nova a Nova.

Mas sobre a nova fraternidade que em seguida brotou entre os homens, ou sobre o modo como se salvaram leis, livros e máquinas, ou sobre a estranha mudança que se deu na Islândia, na Gronelândia e nas costas da Baía de Baffin, de modo que os marinheiros que ali aportaram as encontraram verdes e férteis, e mal puderam acreditar em seus olhos... sobre nada disto esta história vai falar. Nem sobre as deslocações da espécie humana, agora que a Terra estava mais quente, rumo ao sul ou ao norte, rumo aos pólos da Terra. Esta história vai falar apenas da vinda e da passagem da Estrela.

Os astrónomos marcianos — porque existem astrónomos em Marte, embora sejam criaturas muito diferentes dos homens — ficaram, é claro, profundamente interessados nessas coisas. Interpretavam tudo de acordo com seu ponto de vista, é claro. “Considerando a massa e a temperatura do míssil que foi arremessado através do nosso Sistema Solar na direcção do Sol”, escreveu um deles, “é espantoso o pouco dano que a Terra, por pouco não atingida por ele, acabou sofrendo. O desenho familiar dos continentes e as massas oceânicas permanecem intactos, e sem dúvida a única diferença parece ter sido a retracção da coloração branca (que se supõe consistir de água gelada) em redor de cada pólo”. 

O que serve apenas para demonstrar o quanto as mais vastas das catástrofes humanas podem parecer pequenas, à distância de alguns milhões de milhas.

H. G. Wells

Sem comentários: