sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

OUTROS CONTOS

«De Cima Para Baixo», por Artur Azevedo.

«De Cima Para Baixo»
Conto de Artur Azevedo

86- «DE CIMA PARA BAIXO»

Naquele dia o ministro chegou de mau humor ao seu gabinete, e imediatamente mandou chamar o director-geral da Secretaria. Este, como se movido por uma pilha eléctrica, poucos instantes depois estava em presença de Sua Excelência, que o recebeu com duas pedras na mão.

— Estou furioso! — exclamou o conselheiro; — por sua causa passei por uma vergonha diante de Sua Majestade o Imperador!
— Por minha causa? — perguntou o director-geral, abrindo muito os olhos e batendo no peito.
— O senhor mandou-me na pasta um decreto de nomeação sem o nome do funcionário nomeado!
— Que me está dizendo, Excelentíssimo?...
E o director-geral, que era tão passivo e humilde com os superiores quão arrogante e autoritário com os subalternos, apanhou rapidamente no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na cara, e depois de escanchar a luneta no nariz, confessou em voz sumida:
— É verdade! Passou-me! Não sei como isto foi...
— É imperdoável esta falta de cuidado! Deveriam merecer-lhe um pouco mais de atenção os actos que têm de ser submetidos à assinatura de Sua Majestade, principalmente agora que, como sabe, está doente o seu oficial-de-gabinete!
Dando um murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu:
— Por sua causa esteve iminente uma crise ministerial. Ouvi palavras tão desagradáveis, proferidas pelos augustos lábios de Sua Majestade, que dei a minha demissão...
— Oh!...
— Sua Majestade não a aceitou...
— Naturalmente! Fez Sua Majestade muito bem.
— Não a aceitou porque me considera muito, e sabe que a um ministro ocupado como eu é fácil escapar um decreto mal copiado.
— Peço mil perdões a Vossa Excelência — protestou o director-geral, terrivelmente impressionado pela palavra demissão. — O acúmulo de serviço fez com que me escapasse tão grave lacuna; mas afirmo a Vossa Excelência que de agora em diante hei de ter o maior cuidado em que não se reproduzam fatos desta natureza.
O ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros, dizendo:
— Bom! mande reformar essa porcaria!

O director-geral saiu, fazendo muitas mesuras. Chegando no seu gabinete, mandou chamar o chefe da 3ª secção, que o encontrou fulo de cólera.
— Estou furioso! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. Ministro!
— Por minha causa?
— O senhor mandou-me na pasta um decreto sem o nome do funcionário nomeado! — E atirou-lhe o papel, que caiu no chão.
O chefe da 3ª secção apanhou-o, atónito. Depois de se certificar do erro, balbuciou:
— Queira Vossa Senhoria desculpar-me, Sr. Director... são coisas que acontecem... havia tanto serviço... e tudo tão urgente!...
— O Sr. Ministro ficou, e com razão, exasperado! Tratou-me com toda a consideração, com toda a afabilidade, mas notei que estava fora de si!
— Não era caso para tanto.
— Não era caso para tanto? Pois olhe, Sua Excelência disse-me que eu devia suspender o chefe de secção que me mandou isto na pasta!
— Eu... Vossa Senhoria...
— Não o suspendo. Limito-me a fazer-lhe uma advertência, de acordo com o regulamento.
— Eu... Vossa Senhoria...
— Não me responda! Não faça a menor observação! Retire-se, e mande reformar essa porcaria!

O chefe da 3ª secção retirou-se confundido, e foi ter à mesa do amanuense que tão mal copiara o decreto:
— Estou furioso, Sr. Godinho! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. director-geral!
— Por minha causa?
— O senhor é um empregado inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível! Este decreto não tem o nome do funcionário nomeado!
E atirou o papel, que bateu no peito do amanuense.
— Eu devia propor a sua suspensão por 15 dias ou um mês. Limito-me a repreendê-lo, na forma do regulamento! O que eu teria ouvido, se o Sr. director-geral me não tratasse com tanto respeito e consideração!
— O expediente foi tanto, que não tive tempo de reler o que escrevi...
— Ainda o confessa!
— Fiei-me em que o Sr. chefe passasse os olhos...
— Cale-se!... Quem sabe se o senhor pretende ensinar-me quais sejam as minhas atribuições?!...
— Não, senhor, e peço-lhe que me perdoe esta falta...
— Cale-se, já lhe disse, e trate de reformar essa porcaria!...

O amanuense obedeceu. Acabado o serviço, tocou a campainha e apareceu um contínuo.
— Por sua causa passei por uma vergonha diante do chefe da secção!
— Por minha causa?
— Sim, por sua causa! Se você ontem não tivesse levado tanto tempo a trazer-me o papel imperial que lhe pedi, não teria eu passado a limpo este decreto com tanta pressa, o que me levou a omitir o nome do nomeado.
— Foi porque...
— Não se desculpe! Você é um contínuo muito relaxado! Se o chefe não me considerasse tanto, eu estaria suspenso, e a culpa seria sua! Retire-se!
— Mas...
— Retire-se, já lhe disse! E deve dar-se por muito feliz. Eu poderia queixar-me de você!...

O contínuo saiu dali, e foi vingar-se num servente preto, que cochilava num corredor da Secretaria.
— Estou furioso! Por sua causa passei pela vergonha de ser repreendido por um bigorrilhas!
— Por minha causa?
— Sim. Quando te mandei ontem buscar na portaria aquele papel imperial, por que te demoraste tanto?
— Porque...
— Cala a boca! Isto aqui é andar muito direitinho, entendes? Porque, no dia em que eu me queixar de ti ao porteiro, estás no olho da rua. Serventes não faltam!...
O preto não redarguiu.

O pobre diabo não tinha ninguém abaixo de si, em quem pudesse desforrar-se da agressão do contínuo; entretanto, quando depois do jantar, sem vontade, entrou no pardieiro em que morava, deu um tremendo pontapé no seu cão.

O mísero animal, que vinha alegre dar-lhe as boas-vindas, ganiu, ganiu, ganiu, 
e voltou a lamber-lhe humildemente os pés.

O cão pagou pelo servente, pelo contínuo, pelo amanuense, pelo chefe da secção, 
pelo director-geral e pelo ministro!...

Artur Azevedo

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