quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

OUTROS CONTOS

«A Mais Alta Estrela», por Nuno Higino.

«A Mais Alta Estrela»
Conto de Nuno Higino

368- «A MAIS ALTA ESTRELA»

A rua tinha luzes de muitas cores que, encavalitadas nos postes, faziam desenhos de Natal. E dançavam ao som duma música cheia de sonoridades leves como algodão. De vez em quando passava um automóvel apressado. Apesar disto, ali da montra onde se encontravam, tudo era frio e distante. Eram duas bonecas que ninguém quis comprar.

— Este é o nosso primeiro Natal…

— E, decerto, o último. Se ninguém nos comprou, vamos ser retiradas da montra e arrumadas, ou entregues à caridade, ou destruídas.

— Assim será, com certeza. A nossa vida depende das leis do mercado.

E foram conversando para passar o tempo, ora filosofando sobre a sua efémera existência, a sua matéria breve, ora imaginando como seria o Natal das pessoas, que só conheciam de ver passar na rua, ou da loja, quando entravam para comprar bonecas.

— Esta é belíssima, elegante, tem um belo vestido e uma cintura fina.

— Esta tem uma expressão de felicidade, um olhar doce.

— Aquela, de cabelos louros, tem no rosto o sol abrasador do Verão.

Mesmo para uma boneca, era triste ficar ali na noite de Natal a olhar a solidão da rua. Sobretudo quando imaginavam a alegria das outras bonecas que tinham sido vendidas: a emoção de sair de dentro dos embrulhos, de sentir todas as atenções, de receber um nome, de entrar na família fantástica das crianças.

Todas as pessoas deviam ter uma casa, porque ninguém passava na rua. Todos os meninos deviam ter brinquedos na noite de Natal, porque os brinquedos mais bonitos tinham sido vendidos. Em todo o mundo devia haver alegria e surpresa e magia naquela noite, porque era dessa forma que a imaginavam.

Dentro das casas, o ar estaria povoado de seres fantásticos, que se moviam como se não tivessem peso. Esvoaçavam como se fossem pequenos pássaros transparentes. E isto criava uma grande excitação entre as crianças. Elas próprias se sentiam tão leves que os seus movimentos eram como os movimentos dos astronautas: dançavam, elevavam-se, sorriam, tocavam-se, cantavam melodias afinadíssimas e finas como um fio de cristal. As bonecas entravam também nesta dança fantástica como se fossem pessoas de verdade. A árvore de Natal transformara-se numa enorme tília de grandes ramos. Havia baloiços pendurados nos ramos. Havia pequeninas casas suspensas nos ramos. As estrelas desciam e poisavam nos ramos. E todos aqueles seres – crianças, anjos, pássaros, estrelas e bonecas – percorriam os ramos, como se fossem caminhos, entravam nas casinhas, dançavam nos baloiços, agarravam-se à cauda das estrelas. Entre os ramos mais distantes construíam passadiços e imaginavam rios por onde às vezes desciam: bebericavam, tomavam um banho, atiravam salpicos de água uns aos outros.

Estavam assim imaginando, quando se aproximou da montra uma figura muitíssimo estranha: tinha umas roupas sujas e gastas, os cabelos sujos e desalinhados, a barba suja e por fazer e nos seus olhos havia fome, desolação e desprezo. Falava sozinho palavras imperceptíveis.

— Esta figura não deve ser de cá…

— Talvez tenha descido de outro planeta, um planeta onde não há Natal, nem casas, nem anjos, nem estrelas, nem amigos…

A rua continuava deserta e o homem continuava ali fitando a montra e falando desordenadamente. De nenhum lado surgia uma sombra, uma voz, um movimento, um pássaro branco, um anjo de tule, um caule de luz. Até a música de algodão pendurada nos postes se tinha já calado.

— Como deve ser triste a vida na terra, na cidade ou no planeta donde veio…

Nada no seu rosto fazia lembrar a alegria: nenhuma expressão, nenhum traço, nenhuma palavra.

De vez em quando estendia o braço, apontando não se sabia o quê, apontando por apontar; e o vento gelado da noite alinhava os seus cabelos na direcção do braço. E nada lá ao longe fazia lembrar a liberdade. Outras vezes ficava estático e imóvel, fitando o infinito. Parecia uma estátua feita do mais cruel abandono; parecia um tronco velho de uma árvore; parecia a coluna de um palácio abandonado. E nada na sua pose fazia lembrar a paz. Outras vezes ajoelhava-se fitando o chão, como se o chão fosse um enigma por decifrar, como se na pedra do chão estivesse gravado um vestígio de Deus; como se Deus se tivesse esquecido, por acaso, de uma marca, um indício, um grão de poeira, um cabelo que fosse.

— Há tempos ouvi falar aqui na loja de um país ou planeta onde as pessoas são desprezadas, onde lhes negam o pão e as obrigam a matar-se umas às outras. Os que as governam são maus e obrigam-nas a viver na rua como animais vadios.

O homem não tirava os olhos da montra como se estivesse a falar com as bonecas, mas utilizando uma linguagem que elas não entendiam. Poisou no chão umas sacas que trazia consigo e começou a esbracejar. Mas nenhum dos seus gestos fazia lembrar a justiça. Ora estava de pé, ora de cócoras, ora se sentava no passeio. Mas sempre desenhando a mesma veemência, a mesma impaciência.

— Talvez queira dizer-nos alguma coisa. Talvez pense que somos pessoas. Talvez procure em nós uma resposta para as suas perguntas.

— Talvez tenha pena de nós e ficasse ali a distrair a nossa solidão.

Passado muito tempo, adormeceu encostado à montra. Um cão que passava remexeu-lhe nas sacas e fugiu abocando alguma coisa que não puderam ver o que era. Depois veio outro cão e deitou-se ao calor dos seus pés. Assim ficaram ali pela noite dentro. Era quase de madrugada quando apareceu, não se sabe de onde, uma mulher igualmente desgrenhada, cambaleante e com os olhos cheios de amargura e abandono. Trazia nos braços algo que poderia ser uma criança. Deitou-se também, puxou um dos sacos para a cabeça a fazer de travesseiro e adormeceu.

— São estranhas estas figuras… Como é que no país ou no planeta lá onde moram não há Natal?

— Como devem ser infelizes as pessoas… Um planeta sem Natal devia ser extinto, devia explodir nos ares, ficar desfeito em poeira fina e disperso pela imensidão dos céus.

— Provavelmente foram expulsas e tiveram de caminhar dias e noites até encontrar este recanto.

— Tiveram sorte de não serem assaltadas pelo caminho, nem de morrerem de frio, de sede ou de fome.

— Talvez tenham uma resistência e uma energia maior do que a das pessoas que conhecemos.

— Talvez o seu corpo não sinta frio nem calor. Talvez não precisem de alimento, de carinho, de amizade.

— Pelo menos numa coisa são diferentes de nós, bonecas: precisam de dormir…

— Devem ser alimentados e encorajados durante o sono por um anjo ou outro ser invisível.
Por um tempo deixaram-se destas conjecturas e voltaram a pensar como seria o Natal dentro das casas. Agora todos estariam já a dormir, sonhando com os anjos, os pássaros transparentes, as estrelas; sonhando com um tal Jesus, que não sabiam muito bem quem era, mas devia ser tão maravilhoso que até lhe chamavam Salvador.

Estavam assim imaginando, quando surgiu um carro da polícia. Parou em frente à montra. De dentro saiu um homem com uma farda e deu um pontapé no cão, que ganiu e fugiu a coxear. Depois fez o mesmo ao homem e à mulher e obrigou-os a entrar no carro, o que fizeram ensonados e sem oferecer resistência.

— Sempre não devem ser de cá…

— Talvez as autoridades os tenham levado para analisar e estudar como é a vida no país ou planeta de onde vieram.

— Ah! Já sei porque vieram buscá-los. Não te lembras de ouvir falar do Presépio? Era um homem, uma mulher, uma criança e um animal. Decerto andavam à procura de um presépio raro, e encontraram este e levaram-no para um museu.

— O que é um museu?

— É uma casa muito grande cheia de coisas antigas, raras e valiosas onde também há pessoas com olhos, boca, ouvidos e mãos; mas não vêem, não falam, não ouvem, não cumprimentam ninguém. Chamam-se estátuas.

— E dentro dos museus também há Natal?…

Nuno Higino

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