terça-feira, 2 de dezembro de 2014

OUTROS CONTOS

«O Presente dos Reis Magos», por O. Henry.

«O Presente dos Reis Magos»
Conto de O. Henry

347- «O PRESENTE DOS REIS MAGOS»

Um dólar e oitenta e sete centavos. Era tudo. E sessenta centavos eram em moedas. Moedas economizadas uma a uma, pechinchando com o dono do armazém, o dono da quitanda, o açougueiro, até o rosto arder à muda acusação de parcimónia que tais pechinchas implicavam. Três vezes Della contou o dinheiro. Um dólar e oitenta e sete centavos. E no dia seguinte seria Natal.

Não havia evidentemente mais nada a fazer senão atirar-se ao pequeno sofá puí­do e chorar. Foi o que Della fez. O que leva à reflexão moral de que a vida é feita de soluços, fungadelas e sorrisos, com predomí­nio das fungadelas.

Della terminou de chorar e cuidou do rosto com a esponja de pó. Postou-se junto à janela e ficou a contemplar melancolicamente um gato cinzento caminhando sobre uma cerca cinzenta num quintal cinzento. Amanhã seria Dia de Natal e ela tinha apenas um dólar e oitenta e sete centavos para comprar o presente de Jim. Estivera a economizar tostão por tostão havia meses, e esse era o resultado. As despesas tinham sido maiores do que calculara. Sempre são. Apenas um dólar e oitenta e sete centavos para comprar o presente de Jim. O seu Jim. Muitas horas felizes passara ela planejando comprar-lhe alguma coisa bonita. Alguma coisa fina, rara, legí­tima ” algo que estivesse bem perto de merecer a honra de ser possuí­da por Jim.

Subitamente, afastou-se da janela e postou-se diante de um espelho. Seus olhos estavam brilhantes mas sua face perdeu a cor ao cabo de vinte segundos. Num gesto rápido, soltou o cabelo e deixou desdobrar-se em toda a sua extensão.

Ora, os James Dillingham Youngs tinham dois haveres de que muito se orgulhavam. Um era o relógio de ouro de Jim, que pertencera a seu pai e a seu avô. O outro era o cabelo de Della.

O cabelo de Della, pois, caiu-lhe pelas costas, ondulando e brilhando como uma cascata de águas castanhas. Chegava-lhe abaixo do joelho e quase lhe servia de manto. Ela então o prendeu de novo, célere e nervosamente. A certo momento, deteve-se e permaneceu imóvel, enquanto uma ou duas lágrimas caí­am sobre o puí­do tapete vermelho.

Vestiu o velho casaco marron; pôs o velho chapéu marron. Desceu rapidamente a escada que levava à rua. Parou onde havia um letreiro anunciando: “Mme Sofronie, Artigos de Toda Espécie para Cabelos”.  Della subiu a correr um lance de escada e se deteve no alto, arquejante para recompor-se. Madame, corpulenta, alva demais, fria.

- Quer comprar meu cabelo? ” perguntou Della.

- Eu compro cabelo ” disse Madame. ” Tire o chapéu e vamos dar uma olhada no seu.

Despenhou-se, ondulante, a cascata de águas castanhas.

- Vinte dólares ” ofereceu Madame, erguendo a massa com mão prática.

- Dê-me o dinheiro depressa ” pediu Della.

Oh, as duas horas seguintes voaram com asas róseas. Della se pôs a vasculhar as lojas à procura de um presente para Jim.

Encontrou-o por fim. Fora feito para ele e para ninguém mais. Nada havia que se lhe parecesse nas outras lojas, e ela as revirara de alto a baixo. Era uma corrente de platina, curta, simples e de modelo discreto, proclamando adequadamente seu valor por sua mesma substância e não por qualquer ornamentação espúria. Era digna até do relógio. Tão logo a viu, soube que tinha de ser de Jim. Era como ele. Serenidade e valor ” a descrição se aplicava a ambos. Vinte e um dólares cobraram-lhe por ela, e Della correu para casa com os oitenta e sete centavos. Com aquela corrente no relógio, Jim poderia preocupar-se decentemente com o tempo na frente de qualquer pessoa. Grande como era o relógio, ele í s vezes o consultava meio envergonhado devido à velha tira de couro que usava em lugar de corrente.

Quando Della chegou em casa, seu embevecimento cedeu lugar a um pouco de prudência e razão. Pegou os ferros de frisar, acendeu o gás e pôs-se a reparar os estragos causados pela generosidade acrescida ao amor. O que sempre é uma tarefa muito árdua, queridos amigos ” uma tarefa gigantesca.

Ao cabo de quarenta minutos, sua cabeça estava coberta de pequenos caracóis cerrados, que a faziam parecer, admiravelmente, um menino vadio.

Às sete horas, o café estava preparado e uma frigideira quente no fogão esperava o momento de fritar as costeletas. Jim nunca se atrasava. Della dobrou a corrente no côncavo da mão e sentou-se a um canto da mesa, perto da porta pela qual ele sempre entrava. Ouviu então seus passos no primeiro lance da escada e empalideceu por um instante.

- Oh, Deus, fazei-o por favor achar-me ainda bonita!

A porta se abriu, Jim entrou e a fechou. Parecia magro e muito sério. Pobre sujeito, apenas vinte e dois anos e já responsável por uma famí­lia! Precisava de um sobretudo novo e não tinha luvas.

Jim Avançou alguns passos. Seus olhos estavam fitos em Della e havia neles uma expressão que ela não conseguia ler e que a aterrorizava. Não era raiva, nem surpresa, nem desaprovação, nem horror; não era nenhum dos sentimentos para os quais ela estava preparada.

Della esgueirou-se para fora da mesa e se encaminhou para ele.

- Jim, querido ” gritou ” não me olhe desse jeito! Mandei cortar o cabelo e o vendi porque não poderia passar o natal sem dar um presente a você. Ele crescerá de novo… não se aborreça, por favor. Meu cabelo cresce terrivelmente depressa. Diga “Feliz Natal!”, Jim, e fiquemos felizes. Você não sabe que coisa bonita, que belo presente tenho para você.

- Mandou cortar o cabelo? ” perguntou Jim a custo, como se não tivesse ainda compenetrado desse fato patente após o mais árduo esforço mental.

- Cortei-o e vendi-o ” disse Della. ” Você não continua a gostar de mim do mesmo jeito, então? Não precisa procurar por meu cabelo, foi vendido, como lhe disse… vendido, não está mais aqui. À véspera de Natal, querido. Seja bonzinho comigo, fiz isso por sua causa. Ninguém poderá jamais avaliar o meu amor por você. Posso fritar as costeletas, Jim?

Emergindo do seu transe, Jim pareceu despertar rapidamente. Abraçou a sua Della. Os magos trouxeram presentes valiosos, mas isso não estava entre eles. Esta asserção obscura será esclarecida mais tarde.

Jim tirou um pacote do bolso e atirou-o sobre a mesa.

- Não me interprete mal, Della ” disse. ” Não acho que haja alguma coisa, corte de cabelo, raspagem ou champô, capaz de fazer-me gostar menos da minha mulherzinha. Mas se você abrir este pacote, poderá ver por que fiquei abalado no princí­pio.

Alvos dedos ligeiros desfizeram o atilho e o embrulho. Ouviu-se então um grito extático de alegria, e depois, ai!, uma súbita mudança feminina para as lágrimas e os gemidos, que exigiram o imediato emprego de todos os poderes de consolação do senhor do apartamento.

Pois sobre a mesa jaziam Os Pentes ” o jogo de pentes para cabelos que Della adorara havia muito numa vitrine. Belos pentes, de tartaruga legí­tima, orlados de pedraria ” da cor exata para combinar com seu lindo cabelo. Eram pentes caros, ela o sabia, e seu coração se limitara a desejá-los e a suspirar por eles sem a menor esperança de vir um dia a possuí­-los. E agora pertenciam-lhe, mas as tranças que os anelados enfeites deveriam adornar não mais existiam.

Ela, porém, os apertou contra o peito e, por fim, pode erguer os olhos nublados, sorrir e dizer:
- Meu cabelo cresce tão depressa, Jim!

Jim ainda não vira o seu belo presente. Ela lho estendeu ansiosamente na palma da mão aberta. O fosco metal precioso parecia brilhar com o reflexo do seu jubilante e ardente espí­rito.

– Não é uma beleza, Jim? Vasculhei a cidade toda para achá-lo. Doravante, você terá de ver as horas uma centena de vezes por dia. Dê-me o seu relógio. Quero ver como fica nele.

Em lugar de obedecer, Jim deixou-se cair no sofá, pôs as mãos atrás da cabeça e sorriu:

– Della ” disse -, vamos por os nossos presentes de Natal de lado e deixá-los por algum tempo. São lindos demais para poderem ser usados agora. Vendi o relógio para comprar os seus pentes. Que tal se você fritasse as costeletas agora?

O. Henry

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