quarta-feira, 11 de março de 2015

OUTROS CONTOS

«Campaniça», por Manuel da Fonseca.

«Campaniça»
Ilustração de Pavia

442- «CAMPANIÇA»

Valgato é terra ruim.

Fica no fundo de um córrego, cercada de carrascais e sobreiros descarnados. O mais é terra amarela, nua até perder de vista. Não há searas em volta. Há a charneca sem fim, que se alarga para todo o resto do mundo. E, no meio do descampado, no fundo do vale tolhido de solidão, fica a aldeia de Valgato debaixo de um céu parado.

Valgato é uma terra triste.

Saem os homens para o trabalho ainda a manhã vem do outro lado do mundo. Levam enxadas e foices e conhecem todos os trilhos, entre o mato, com estevas que são mais altas que duas vezes o tamanho do mais alto dos homens de Valgato. Tanto conhecem os caminhos que vão, sem desvio nem engano, até às herdades que ficam a léguas de distância, ainda com o sono e o escuro da noite fechando‑lhes os olhos.

Não é de admirar. Zé Tarrinha tem uma mula que caiu num barranco de piteiras e vazou os dois olhos.

Pois a mula nunca erra a casa e vai sozinha à fonte. Não é de admirar que os homens saiam ainda com o escuro da noite, e com o sono, e vão sem desvio ou engano até às herdades.

O Venta Larga, quando se fala que alguém se perdeu no caminho, diz sempre:

– A gente não precisa senão de saber onde põe os pés. O mais é cá disto… – funga com ruído e, alargando as narinas, aponta o nariz – … o mais é cá do cheiro.

Por isso lhe chamam o Venta Larga.

Aí está que não é difícil um homem perder‑se na charneca. É tão igual e monótona, rasa para todos os lados e para todos os lados deserta, que só o tino e, como diz o Venta Larga, o cheiro, são capazes de orientar.

Para que serve ver? Anos e anos a olhar o descampado, os olhos cansaram‑se de ver sempre o mesmo.

A vista dos homens de Valgato é um sentido embotado.

Há uma névoa cobrindo‑a, mesmo de dia com o céu esbranquiçado e o lume do Sol tremendo no ar. E sem ver, ainda a manhã vem no outro lado do mundo, os homens, certinhos como a mula do Zé Tarrinha, andam léguas e léguas e vão dar às herdades. E de noite, sempre de noite, tornam para a aldeia, certos e direitos, com os olhos cegos do sono que volta. Certos e direitos que um homem não precisa mais que saber onde põe os pés.


Todos os dias assim: sair de noite, voltar de noite. Que a aldeia de Valgato é terra ruim cercada de carrascais.

E fica no fundo de um córrego magoado de solidão.

Valgato é uma terra triste.

Maria Campaniça, quando era solteira, pensava todos os dias fugir da aldeia. Era nova e tinha o rosto corado e um lenço de barra amarela. Subia a quebrada, sentava‑se no cabeço mais alto à sombra de um chaparro e punha‑se a pensar para que lado partiria. Mas o descampado, correndo sem fim por vales e outeiros, bravio, agressivo de cardos e tojos, metia‑lhe medo.

Maria Campaniça juntava os porcos e voltava à aldeia, à hora do entardecer.

Depois apareceu o Baleizão com conversas, à noite, na soleira da porta. E o mesmo desejo continuou: fugir de Valgato. Comprariam os dois uma bácora e um bácoro e ao fim de algum tempo haviam de ter uma vara de porcos. Iriam vendê‑los à feira de Cerromaior e aí ficariam a viver. Aí ou noutra terra, contanto que não fosse em Valgato.

Agora Maria Campaniça há muito tempo que vive com o seu homem. Quando quer saber os anos ao certo, conta o número de filhos. Tem cinco e o mais novo poucos meses. Portanto, vai para sete anos que está com o Baleizão.

Uma noite, Maria Campaniça sonhou que era velha e morria sem sair de Valgato. Foi e contou à mãe.

O rosto encarquilhado da velha franziu‑se ainda mais na sombra do lenço:

– Que parvidade, moça! Então onde haverás de morrer?

Quando era nova tinha o rosto corado e gostava de ouvir falar do Zé Gaio. Agora já ninguém sabia dele.

Fora‑se numa noite de estrelas, quando os homens cantavam uma toada tão lenta e desgarrada que até metia medo.

O Venta Larga, quando se fala no Gaio, explica o caso nestas palavras:

– O Zé Gaio perdeu o cheiro da casa.

Mas Maria Campaniça sabe que não foi assim.

E recorda a história do Gaio… Quando os homens recolhiam a Valgato, acontecia às vezes ficarem de conversa no terreiro. Depois, porque a terra era sem fim para todos os lados e os homens se sentiam presos naquele vale do fim do mundo, libertavam‑se cantando.

Zé Gaio ouvia com o rosto imóvel e o olhar distante. Em dada altura, o peito cheio de uma ansiedade que nem ele sabia, erguia‑se e, sem uma fala a ninguém, partia por trilhos e carreiros de cabras até o cansaço o vencer. Ao voltar à aldeia era dia e trazia o rosto vincado de tristeza.

Uma tarde, já sem sol, quando os homens vindos da faina desciam das cristas dos cabeços, notaram que havia qualquer coisa de estranho em Valgato. Estugaram o passo. E perto olharam inquietos, poisando de leve as enxadas no chão.

Era uma forma de mulher com um vestido azul, colado, desenhando‑lhe a carne. E tinha a boca vermelha e os olhos azuis e os cabelos loiros. Sorria. E andando oscilava as ancas torneadas, vivas, no vestido azul. E os seios tremiam a cada passo e levava os olhos de todos os homens de Valgato presos nos cabelos loiros, nas ancas e nos seios.

Depois, viera um senhor, dono das terras do vale, e a mulher partiu com ele, num carro, pelo melhor dos caminhos que sai de Valgato e a léguas dali entra na estrada real.

Os homens continuaram indecisos, com os olhos voltados para o cabeço por onde a mulher desaparecera.

Só acordaram com as palavras da velha Carrasquinha.

A velha dizia que aquilo fora uma aparição…

– Foi uma santa!

Entrou em casa, tirou do fundo da arca uma estampa e voltou.

– Olhem se foi ou não foi!

Todos olharam. Era uma Nossa Senhora vestida de azul, com os cabelos loiros abertos ao meio.
Os homens ficaram mais tristes que nunca. E, nessa noite, cantaram tão desgraçados como os presos às grades de uma cadeia.

Só um deles não acreditara nas palavras da velha. Tinha a certeza de que vira uma mulher. E quando a noite ia em meio – ainda os homens cantavam – jogou a manta para o ombro e partiu.
Partiu e nunca mais voltou. Por isso o Venta Larga dizia:

– O Zé Gaio perdeu o cheiro da casa.

Maria Campaniça sente ainda mais fundo o peso dos filhos e da solidão que enche o vale. Ela também quisera partir quando era solteira e mesmo depois de viver como seu homem.
Quisera partir… Agora sonhou aquele sonho: morrer de velha em Valgato.

As palavras da mãe aí estavam:

– Que parvidade, moça! Então onde haveras de morrer?

Aí estavam as sombras da noite chegando, estirando‑se pelas encostas dos outeiros, cada vez mais compridas, mais tristes. E os casebres da aldeia, abatidos, mergulhando na noite. Uma maré cheia de solidão crescendo, afogando.

Um rebanho badalava chocalhos… Maria Campaniça quando era nova também ia para o montado com uma vara de porcos. Olhava, dos cabeços, a planura sem fim. Depois viera o Baleizão com conversas, à noite, na soleira da porta. Vieram os filhos e Maria Campaniça sonhara que morria sem sair de Valgato.

Zé Gaio andava ao acaso por terras melhores, senhor da sua vida. Estava em todas as feiras gozando todas as horas como melhor lhe apetecesse. E iria para aqui ou para além segundo a vontade. Vida boa… Maria Campaniça quando era nova tinha o rosto corado e um desejo enorme de abalar. Agora tem um filho nos braços chupando‑lhe o seio e, perto, dormem os outros na enxerga…

Lá fora a noite fechou‑se.

Valgato fica mais longe do mundo, mais longe do mundo. E o medo de que o sol nunca mais volte aperta o peito dos homens. Noite, noite.

Maria Campaniça tem os olhos presos nas cinzas da lareira. Entra pela casa dentro a voz desgraçada dos homens cantando. É uma toada igual, arrastada como a planície áspera de tojos e cardos. Os olhos de Maria Campaniça estão cheios de água. Veio‑lhe a certeza de que não sairá da aldeia, e que,um dia, quando for velha, hão‑de cobri‑la de terra e pôr‑lhe uma cruz em cima.

Duas lágrimas caem sobre a criança que lhe chupa o seio. No terreiro, os homens cantam a desolação que vem de noite e lhes aperta o peito. Vozes arrastadas como ovento gemendo num pinhal. Choro, mágoa, raiva. Que a aldeia de Valgato é uma terra triste.

Cercada de carrascais e sobreiros descarnados, não tem searas em volta.

Só a planície sem fim que se alarga para todo o resto do mundo. E, no meio do descampado, no fundo do vale tolhido de solidão, fica a aldeia de Valgato debaixo de um céu parado.

Valgato é terra ruim.

Manuel da Fonseca

1 comentário:

Anónimo disse...

O Manuel da Fonseca e o seu (nosso) Alentejo.
Obrigado Poeta!