segunda-feira, 11 de maio de 2015

OUTROS CONTOS

«Conto do Pequeno Édipo», por Suleiman Cassamo.

«Conto do Pequeno Édipo»
Conto de Suleiman Cassamo

501- «CONTO DO PEQUENO ÉDIPO»

O homem tamborilou os dedos no balcão. Pediu, com uma voz cinzenta:

- Uma cerveja.

Pediu como quem pede ao ar. Isto é, sem dar inteira conta nem da mulher de preto, sentado no banquinho, nem do miúdo, jogando guêime.

A mulher abriu uma média. O homem ignorou aquela, e apalpou as garrafas no fundo da caixa térmica. O rapazito suspendeu o jogo, e olhou-o com cara de poucos amigos.

- Vá brincar lá dentro - berrou a mulher, indicando a saída que dava para o resto da casa. Por sinal a única porta da barraca.

O balcão-janela dava para a rua, e estava, assim, o cliente, único àquela hora, de costas para a rua. 

Decidiu-se pela cerveja que a mulher lhe estendia. Afinal, estava tudo gelado por igual, e a quente, e a sede, tanta, que ele virou o primeiro copo num instante.

- Que tal? - perguntou a mulher, tentando animá-lo.

Ia já no mar alto da vida. Navegação difícil, pelos vistos. Emanava dela uma discreta tenacidade, a dor sem queixume, a arte de sobreviver. Não há remo mais lesto que o coração feminino.

- Que tal, é boa?

O homem tinha a língua presa. O humor azedo, ao fim de um dia de trabalho, é coisa normal. Ainda bem; por estes anos, de repente, Deus trocou-nos cogumelos por barraca. Entre o "chapa" e a casa, uma pausa para relaxar.

À terceira média, soltou, mesmo a língua, dizendo:

- Boa.

A mulher parou de acender a vela, e encarou-o. Melhor, encararam-se. À luz tremelicante do fósforo, ela surgiu da roupa da viuvez. Era como acender a própria beleza.

O menino estava à porta, espiando aquele momento mágico. A mulher virou-se para o garoto. Pela primeira vez, conheceu nele a cólera.

- Suca daqui! - ordenou a viúva.

Mas o puto voltaria sempre: mãe o meu guêime, mãe: tem um rato dentro da pasta; mãe um refresco; estou com fome, mãe…

- Dá-lhe um pacote de "Maria" - disse o cara. E acrescentou, peremptório: - na minha conta.

Mas isso, se é que ele não sabia, não o compraria. Quando muito, o seu momentâneo sumiço.

À quinta média, o cliente tinha já, não só a língua mas também o espírito solto, um verdadeiro poeta. 

Mudou-se para o canto do balcão onde à luz da vela, a mulher escolhia folhas de couve para o jantar. 

Como se o bafo da cevada fosse o suco da própria poesia, cochichou:

- Boa como a própria dona?

Nisso o menino reentrava. Não gostou daquela súbita intimidade. O peito cheio de ar, incapaz de falar, fixou o cliente com olhos de cobra.

- Xixi cama! - berrou o homem.

O puto deu um passo em frente. E descarregou os pulmões:

- Rua-rua-rua!

Pegando num vasilhame, avançou para o balcão. Estava em causa não propriamente o lugar do seu pai, mas o seu próprio. Qual pequeno Édipo, avançou pois, disposto a morrer. Eterno é o labirinto dos afectos, e por isso, história sem desfecho, esta.

Suleiman Cassamo

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