terça-feira, 26 de maio de 2015

OUTROS CONTOS

«A Mãe Natal», por Michel Tournier.

«A Mãe Natal»
Mãe e Filho, por Renoir

514- «A MÃE NATAL»

Iria a aldeia de Pouldreuzic encontrar finalmente um pouco de paz? Há vários lustres que estava dividida por uma oposição entre clericais e radicais, escola livre dos Irmãos e comuna laica, padre e professor. As hostilidades que tomavam as cores das estações transformavam-se em iluminura lendária com as festas do fim de ano. A missa da meia-noite tinha lugar, por questões práticas, no dia 24 de Dezembro, às seis horas da tarde. À mesma hora, o professor, mascarado de Pai Natal, distribuía os brinquedos aos alunos da escola laica. Deste modo, o Pai Natal transformava-se em herói pagão, radical e anticlerical, e o padre contrapunha-lhe o Menino Jesus do seu presépio vivo — célebre em toda a região — como quem atira uma mão de água-benta à cara do Diabo.

Sim, iria Pouldreuzic obter tréguas? É que o professor, tendo-se reformado, fora substituído por uma professora de fora, e toda a gente a observava para saber de que estofo era feita. A Senhora Oiselin, mãe de duas crianças — entre elas um bebé de três meses — era divorciada, o que parecia uma garantia de fidelidade laica. Mas o partido clerical triunfou desde o primeiro Domingo, assim que viram a nova instrutora fazer uma entrada muito notada na igreja.

Os dados estavam lançados. Não haveria mais árvore de Natal sacrílega à hora da missa da "meia-noite", e o padre seria o mestre e senhor do terreno. Por isso, foi grande a surpresa quando a Senhora Oiselin anunciou aos alunos que a tradição não seria alterada, e que o Pai Natal distribuiria os seus presentes à hora habitual. Que jogo estaria a fazer? E quem iria fazer de Pai Natal? O correio e o guarda-florestal, em quem todos tinham pensado devido às suas opiniões socialistas, afirmaram não estar ao corrente de nada. O espanto atingiu o auge quando se soube que a Senhora Oiselin emprestaria o seu bebé ao padre para fazer de menino Jesus no seu presépio vivo.

Ao princípio tudo correu bem. O pequeno Oiselin dormia a sono solto quando os fiéis desfilaram à frente do presépio, os olhos brilhantes de curiosidade. O boi e o burro — um verdadeiro boi, um verdadeiro burro — pareciam enternecidos diante do bebé laico tão miraculosamente metamorfoseado em Salvador.

Infelizmente, este começou a agitar-se desde o início do Evangelho, e os seus berros explodiram no momento em que o padre subiu ao púlpito. Nunca se ouvira uma voz de bebé tão estri­dente. Foi em vão que a rapariga que fazia de Virgem Maria o embalou contra o seu magro peito. O pequerrucho, vermelho de cólera, bracejava e esperneava, fazendo ecoar os seus gritos furiosos nas abóbadas da igreja, impedindo o padre de proferir uma palavra.

Finalmente, chamou um dos meninos do coro e deu-lhe uma ordem ao ouvido. Sem despir as vestes, o rapaz saiu, ouvindo-se o ruído das galochas afastar-se ao longe.

Alguns minutos mais tarde, a metade clerical da aldeia, reunida em peso na nave, teve uma visão inusitada que se inscreveu para todo o sempre na lenda dourada da região. O Pai Natal em pessoa irrompeu pela igreja. Dirigiu-se a passos largos para o presépio. Depois afastou a barba de algodão branco, desabotoou o casaco vermelho e estendeu um seio generoso ao Menino Jesus subitamente apaziguado.

Michel Tournier

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