quinta-feira, 28 de maio de 2015

OUTROS CONTOS

«Chiquinho», por Baltasar Lopes.
«Chiquinho»
Romance de Baltasar Lopes

516- «CHIQUINHO»

[Parte I: Infância/ Capítulo 1]
  
Como quem ouve uma melodia muito triste, recordo a casinha em que nasci, no Caleijão.

O destino fez-me conhecer casas bem maiores, casas onde parece que habita constantemente o tumulto, mas nenhuma eu trocaria pela nossa morada coberta de telha francesa e emboçada de cal por fora, que meu avô construiu com dinheiro ganho de- riba da água do mar. Mamãe-Velha lembrava sempre com orgulho a origem honrada da nossa casa. Pena que o meu avô tivesse morrido tão novo, sem gozar direitamente o produto do seu trabalho.

E lá toda a minha gente se fixou. Ela povoou-se das imagens que enchiam o nosso mundo. O nascimento dos meninos. O balanço da criação. O trabalho das hortas e a fadiga de mandar a comida para os trabalhadores. A partida de Papai para a América. A ansiedade quando chegavam cartas. Os melhoramentos apouco e pouco introduzidos com os dólares que recebíamos. Mamãe deslizava como uma sombra silenciosa no tráfego da casa. Mamãe-Velha não parava, indo de um lado para outro, como se nada pudesse fazer-se sem a sua fiscalização e os seus gritos. A minha avó só sabia querer a sua gente descompondo.

Ao lado da casa grande, de quatro quartos, ficava a casinha desaguada, onde Mamãe fazia a despensa, e que nos dias de chuva servia para abrigar as galinhas da criação. Encostada à casa de moradia, ela tinha de longe, com o seu tecto rectangular, inclinado para drenar a água, um ar de bezerro a pojar nas mamas da mãe.

A casinha desaguada era a tentação da meninência.

Mamãe guardava lá o barril da farinha-de-pau, a talisca que ficava da rala da mandioca e o peixe seco da ilha do Sal, tão bom para se misturar na boca, mesmo cru, com a mãozada de farinha apanhada às escondidas. Os meus dois irmãos mais novos incitavam-me às incursões na despensa.

Lela e Nanduca não mediam bem a responsabilidade que resultaria da descoberta do delito. Por isso choravam, quase gritando, quando eu hesitava:

— Mano Chiquinho, Mamãe não vê...

Geralmente era depois do almoço que eu me arriscava no interior da despensa.

Àquelas horas, Mamãe estava lá para dentro ocupada a escarolar a louça e a tirar o queimado da caldeira para dar ao Baluca, um cão de guarda manhento de comida que nem menino nascido na fraqueza da lua. Ou então ficava sentada no baú a dar pontos na roupa e a botar chapas nas calças da meninência.

Mamãe-Velha, coitada, tinha depois do almoço o seu descanso bem merecido. A casa ficava mergulhada em silêncio. É que depois da comida vinha-lhe sempre aquela maldita dorzinha no joelho, complicada às vezes de cãibras no osso-de-varanda, que a apoquentava, por via da sombra-de-ar ganha havia anos, depois de uma chuvada que apanhara ao vir da Fajã. Causava mesmo espanto entre os entendidos como aquela mofina dor no joelho só se lembrava vir depois do jantar do meio-dia e não em outra hora.

Certa ocasião Mamãe desceu com ela à Vila a consultar o doutor.

Mas este, um barbaçanas carrancudo, de olhos brancos, receitou uma xaropagem qualquer que Mamãe-Velha fincou os pés à parede e se recusou a tomar. Não; não tinha jeito aquilo; parecia mesmo vomitado de gato. De mais a mais, entrava tia cabeça de uma pessoa de muita experiência, ganha no lidar da vidinha e na criação de filhos, que dor de ossos se curasse com beberagens? Mais seguro era socorrer-se das mèsinhas da terra, tanto mais que os doutores nunca acertaram com remédio para sombra-de-ar. De maneira que Mamãe-Velha passou a pôr no joelho um cozimento de malva e contra-lierva, estendido em lã de carneiro, e receitado por nhô Luís Babá, homem antigo, de muita lábia, bonita cabeleira branca, e que fazia lembrar aqueles velhos referidos na história de Carlos Magno.

Assim, depois do jantar do meio-dia, tínhamos jazigo para as nossas aventuras na casinha desaguada. Mal eu punha o último bocado, fazia o Pelo-Sinal e abalava para fora com jeitos manhosos de mula-velha. Mamãe ralhava comigo:

— A Virgem Santíssima há-de te dar juízo e governo na cabeça! Pareces o cavalo de nhô António Aninha, não pára nunca na manjedoura... Eu saía direitinho à cancela, para dar a entender que ia ter dos camaradas da brincadeira, mas depois deslizava encostado à parede do tapadinho, dava uma volta debaixo da casa e entrava na despensa. Obtinha a cumplicidade de Tanha e de Pitra Marguida com palmos de tabaco de rolo que apanhava a Mamãe.

Nem sempre a operação se fazia sem incidentes. De uma vez o Baluca denunciou-me à saída porque, como lhe tivesse engatado o rabo na porta, começou a uivar com a sua voz esganiçada de sopleta-e-fogo. Naquele dia comi uma sova de lato que me deixou o corpo talhado de vergônteas.

Mamãe pegou-me com uma indignação que lhe fazia tremer as mãos. Furtadela só própria de menino sem eira nem beira.

De mais, ela não queria que a fama da sua casa fosse injustamente minguada na boca dos linguareiros, que só sabem nicar na vida do próximo. Mamãe-Velha interveio em minha defesa. E foi um chover de atenuantes sobre as minhas culpas. A minha avó só se arvorava em juiz rigoroso quando ela mesma verificava os delitos. 

No resto, era um passa-culpas de olhar severo.

Baltasar Lopes