quinta-feira, 19 de novembro de 2015

OUTROS CONTOS

«As Raízes do Mundo», por G. K. Chesterton.

«As Raízes do Mundo»
Conto de G. K. Chesterton

669- «AS RAÍZES DO MUNDO»

Era uma vez um garoto que vivia em um jardim no qual se permitia colher flores, porém era proibido arrancá-las pela raiz. Havia, no entanto, uma planta em particular, insignificante, meio espinhenta, com uma flor pequena semelhante a uma estrela, que ele desejava ardentemente arrancar pela raiz. Seus tutores e guardiões, que viviam na casa com ele, eram pessoas sérias e de valores, e davam razões pelas quais o garoto não deveria arrancar a flor. Em geral eram razões tolas. Porém, nenhuma das razões contra o seu desejo eram tão tolas quanto a que o garotinho tinha para querer executá-la, pois sua razão era que a Verdade lhe exigia que arrancasse a planta para ver como crescia. No entanto, a casa era de gente insensível e despreocupada, e ninguém lhe deu a verdadeira resposta a seu argumento, que era o de que mataria a planta, e que não há mais verdade em uma planta morta do que em uma planta viva. Assim, em uma noite escura, quando as nuvens escondiam a lua, como um segredo demasiadamente bom ou demasiadamente mal para ser revelado, o garotinho desceu os velhos degraus de sua casa de campo e foi até o jardim vestido com seu pijama. Já se disse e já se repetiu que não havia mais razões contra seu desejo de arrancar a planta do jardim, do que contra o de golpear um cardo, por distração, numa vereda. Entretanto, a escuridão que o envolvia o contradizia, bem como seu próprio pulso agitado, porque dizia a si mesmo que na manhã seguinte poderia ser crucificado como a um blasfemos que havia destroçado a árvore sagrada.

Talvez o houvessem crucificado, caso tivesse conseguido arrancar. Isso eu não posso afirmar com certeza. Porém não conseguiu, e não porque não tivesse se empenhado. Todavia, quando chegou à planta, puxou e puxou, e descobriu que se agarrava, como se estivesse cravada na terra com ferros. E quando fez força pela terceira vez, sentiu por trás de seus ombros um barulho aterrador e, fosse por impulso – o que ele negaria – ou pela intranquilidade da consciência, saltou para trás tremulante e olhou ao seu redor. A casa em que vivia era um simples vulto sombrio contra um céu igualmente obscuro. No entanto, depois de olhar com mais cuidado ao seu redor, viu que o contorno de sua casa havia deixado de ser familiar, pois a grande chaminé da cozinha havia caído, torcida e calamitosa. 

Desesperadamente deu outro puxão na planta e viu como, ali mais distante, o estábulo caía e os cavalos relinchavam e davam coices. Rapidamente ele correu para casa e se meteu debaixo do lençol. 

No dia seguinte a cozinha amanheceu em ruínas, os alimentos estavam estragados, dois cavalos mortos e três haviam fugido. Porém o garoto continuava com uma furiosa curiosidade e um pouco depois, quando a névoa do mar cobriu a casa e o jardim, ele foi novamente até as raízes da planta indestrutível. Agarrou-se a ela com todas as forças, mas a planta não cedeu. Mas por trás da densa neblina cinza do mar, ouviram-se gritos desesperados de pânico: gritava-se que o castelo do rei havia caído, que não se via as torres que guardavam a costa, que a metade da cidade havia se partido e sumido no mar. Então o garoto se assustou por um momento, e não disse nada mais sobre a planta, porém, quando chegou a sua forte e despreocupada maturidade e a destruição de sua cidade já havia sido reparada lentamente, disse: “Vamos por fim ao enigma deste mal irracional. Em nome da Verdade, arranque-mo-la”. E reuniu um enorme grupo de homens fortes, como um exército que fosse enfrentar algum invasor. E todos eles se agarraram à planta e puxaram-na dia e noite. E a Grande Muralha da China veio abaixo em um trecho de sessenta quilómetros. E as Pirâmides fenderam- se e caíram e ficaram reduzidas a entulho. E a Torre Eiffel, em Paris, veio abaixo como uma haste, matando metade dos parisienses. E em Nova Iorque, a estátua da Liberdade tombou para frente e destruiu a frota norte-americana. E a Catedral de São Paulo matou a todos os jornalistas de Fleet Street. E no Japão se registrou tremores de terra nunca antes vistos, até que o país inteiro desapareceu no mar. 

Alguns dizem que esses dois últimos incidentes não merecem propriamente o nome de calamidades, porém não entraremos nessa matéria. A questão é que em um intervalo de vinte e quatro horas, os homens fortes desse país haviam destroçado metade do mundo civilizado, porém não haviam arrancado a planta. Não cansarei o leitor com todos os detalhes dessa história realista… como usaram primeiramente elefantes e máquinas a vapor, por exemplo, com o único resultado de que a planta permanecia agarrada, ainda quando a lua começou a balançar e até o sou ficou um pouco inquieto. Por fim, a raça humana interveio, como sempre faz, através de uma revolução. Porém muito antes disso, o garoto, o homem, que é o herói dessa história, havia abandonado essa empreitada, dizendo simplesmente aos seus pastores e mestres:

– Vocês me deram várias razões complicadas e inúteis do porquê eu não deveria arrancar esse arbusto. Por que não me deram as verdadeiras razões: primeiro, que não posso, e segundo, que destruiria tudo o mais se chegasse a tentar?

Todos que têm tratado, em nome da ciência, de desarraigar a religião me parecem muito semelhantes ao garoto do jardim. Os cépticos não conseguem arrancar as raízes do cristianismo, porém, sim, conseguem arrancar as raízes das parreiras e figueiras de todos os homens, do jardim de todos os homens e dos cercados de todos os homens. Os laicista não têm conseguido destruir as coisas divinas, porém, têm conseguido destruir as coisas humanas.

Não é possível demonstrar que, no fim das contas, uma religião é monstruosa: uma religião é monstruosa desde o princípio. Anuncia-se como algo extraordinário. É oferecida como algo extravagante. Os cépticos, além disso, podem nos pedir que rechacemos nosso credo como algo estranho. E o temos aceitado justamente assim, como algo estranho. Até aqui, alguém pode imaginar que há um simples impasse, um bloqueio que se interpõe entre nós e aqueles que não conseguem sentir como nós sentimos. Porém, então, vem a curiosa experiência prática que tem ratificado a religião para sempre em nossa razão. Porque os inimigos da religião não podem deixá-la continuar. 

Laboriosamente, tentam esmagá-la. Não conseguem destruí-la, porém destroem tudo o mais. Com suas interrogações e dilemas não provocam nenhum transtorno na fé; desde o começo ela é uma convicção transcendental; não se pode fazê-la mais transcendental do que já é. Porém, se isto de alguma forma conforta, conseguiram provocar um redemoinho na moral comum e no senso- comum.

Os opositores de nossa religião não nos obrigam a aceitar seus axiomas; nossos axiomas continuam sendo o que sempre foram. Porém, eles sim, aderem-se a toda doutrina de insensatez e desespero. 

Não nos golpeiam, mas passam distante e se afundam no pântano e no abismo. O senhor Blatchford não pode nos forçar a aceitarmos a afirmação de que o homem não é a imagem de Deus, porque essa afirmação é tão dogmática como sua negação. Porém, isso sim, ele se obriga a aceitar a afirmação – humanamente ridícula e intolerável – de que não devo acusar um valentão, nem louvar ao que o vence. Os evolucionistas não nos podem, devido a inefável graduação da natureza, hipnotizar para negar a personalidade de Deus, pois um Deus pessoal poderia fazer igualmente bem de forma gradual ou de qualquer outra forma. Porém os evolucionistas, isso sim, ficam, através dessas graduações, hipnotizados para negar a existência concreta do senhor Perez, porque ele está dentro do alcance da evolução, e seus contornos estão desaparecendo. Os evolucionistas destroçam o mundo, porém não as flores. Os Titans jamais escalaram o céu, porém arrasaram a terra.

G. K. Chesterton

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