Conto: O Primeiro Natal em Portugal
Título: Há sempre uma estrela no Natal
Autor: Luísa Ducla Soares
Luísa Ducla Soares
Há Sempre Uma Estrela No Natal
O Primeiro Natal em Portugal
É véspera de Natal. Mas não para Irina. Para ela só será Natal a 7 de Janeiro, quando as aulas tiverem recomeçado.
A mãe aproveita umas horas extra, na pastelaria, para preparar fornadas de bolos-reis.
O pai, antes de sair, marcou-lhe páginas e páginas de trabalhos de casa. É preciso, para poder acompanhar os colegas.
Folheando o dicionário, a pequena ucraniana procura as palavras portuguesas que há-de escrever em frente das que tão bem conhece.
Tudo diferente! Até o abecedário... Na escola, os outros fazem pouco dela e chamam-lhe "língua de trapos". Que quererá isso dizer?
Vai à página 190, logo em seguida à 293. Era de calcular...
Tem, no entanto, orgulho em ser a melhor a matemática. Ninguém a bate em contas. Quando a professora entrega os testes e lhe dá vinte, há sempre um grupinho irritado que, no recreio seguinte, se junta, numa roda, à sua volta, cantarolando:
Irina,Irina,Irina
Que menina tão fina!
Tem cara cor de sal,
Olhos cor de piscina,
Cabelos cor de margarina.
Ai, doem-te as saudades?
Vai tomar aspirina.
Na Ucrânia deixou tantos amigos...
Evita aqueles olhos escuros que se fixam nela, uns curiosos, outros trocistas, outros indiferentes.
Sente-se como uma extraterrestre. Porque é que os pais a mandaram vir? Isola-se no recreio, a um canto, tentando desvendar a algaraviada das conversas. Às vezes, o Afonso murmura-lhe ao ouvido um segredo:
- Pareces uma fada!
E foge logo a correr.
Que palavrão será "fada"? Nem vale a pena procurar no dicionário. Algumas palavras que lhe dizem nem sequer lá vêm. A princípio ainda perguntou à mulher da limpeza o que significavam mas ela empurrou-a com a esfregona.
- Ordinária! Estes imigrantes mal sabem falar mas fixam logo a porcaria... Porque não voltam para o sítio de onde vieram?
Com lágrimas nos olhos, Irina vai agora à janela e vê as luzinhas acender e apagar nas árvores despidas. Por trás das paredes deslavadas das velhas casas, decerto se celebra a consoada. Como será?
Doze pratos se punham na mesa de festa no Natal da sua terra. Um em memória de cada apóstolo.
É Natal em Portugal. Que interessa? A família está dispersa. A mãe a fazer bolos-reis que não vai provar porque para os ortodoxos é tempo de sacrifício e jejum. O pai lá anda, na construção civil. Como mais ninguém queria trabalhar na noite de 24, foi, sozinho, pintar um café que está a ser remodelado, ao fundo da rua. Os dois irmãos mais novos ficaram em Priluki, lá longe, com a avó.
Irina aquece a sopa e arranja uma sandes de queijo.
Como pesa o silêncio!
De repente, sente um grito abafado no andar de cima.
Algum assalto? Alguém que caiu? Não sentiu passos nem baque de uma queda...
Com o coração a bater, põe-se a espreitar pelo óculo. Nada!
- Acudam! Acudam!
Mais ninguém se encontra no prédio. As lojas do rés-do-chão estão fechadas, os vizinhos do primeiro andar foram de férias. Por cima, na mansarda, mora uma rapariga nova, gorda, pálida.
Irina abalança-se a subir. A porta encontra-se apenas encostada e a miúda entra, a medo. Já ninguém grita. Um gemido fraco ecoa ao fundo do corredor.
Haverá feridos? Tem horror ao sangue. Por um momento, pensa em voltar para trás. Mas prossegue, pé ante pé, até ao quarto.
Deitada na cama, a moça, que ela conhece de vista, geme, agarrada à barriga enorme. Irina aproxima-se, repara que está alagada em suor.
- Ladrão atacar tu? Estar doente?
Tremendo, a outra responde:-
- Chama o 112. O bebé vai nascer.
Que será o 112? Estará ela a delirar? Quase desfalece.
Então Irina precipita-se pela escada abaixo. A rua encontra-se deserta. Não conhece ninguém nas redondezas. Corre até ao café onde o pai está a pintar paredes.
- Pai, pai! - grita ela.
Anton desce do escadote, pousa o rolo, inquieto ao ver a filha naquela aflição.
- Que foi? Aconteceu alguma desgraça?
Mal sabe o que se passa, marca um número no telemóvel, dá a morada, pede urgência. Segue-a em passo apressado. Sobre eles desaba uma chuva gelada. Ficam com os cabelos a escorrer, encharcam os sapatos nas poças que, num instante, se formam.
Chegados ao prédio, o ucraniano galga os degraus dois a dois, entra sozinho no quarto da vizinha. A filha fica à espera.
- Irina, ferve uma panela de água. Traz-me um frasco de álcool, uma tesoura, toalhas.
A miúda obedece, confusa.
- Traz-me roupa lavada, para me mudar!
O pintor despe o fato-macaco, sujo de tinta e de pó, na casa de banho, enfia uma camisa branca, umas
calças desbotadas. Esfrega as mãos e a tesoura com álcool.
- Irina, a água já ferve?
De novo no quarto, fala pausadamente com a rapariga, em voz alta. Ouve-se tudo cá fora.
- Força! Coragem! Está quase...
De súbito ouve-se o choro de um bebé.
- Entra, Irina - diz, pouco depois, o pai.
- Vem ajudar. Já és crescida. Entrega-lhe o recém-nascido.
A rapariga, na cama desalinhada, sorri.
- Embrulha-o num xailinho. Está na gaveta do meio.
Irina aconchega aquele corpo tão pequenino e frágil. Embala-o devagarinho, como fazia com as bonecas. Uma minúscula mãozinha aperta então o seu polegar.
O alarme de uma ambulância apita. Pára à entrada do edifício. Duas enfermeiras precipitam-se pela porta dentro.
- Então, viram-se atrapalhados? Um parto faz sempre confusão, principalmente aos homens.
- Sou médico - confessa o ucraniano. - Mas, em Portugal, ando nas obras...
As enfermeiras cruzam um olhar subitamente triste. Examinam a criança.
- O bebé nasceu no dia de Natal. É o nosso Menino Jesus.
A mãe olha para o homem e pergunta:
- Como é que o doutor se chama?
- Anton.
- António? Quer ser o padrinho? Vou pôr-lhe o seu nome.
As enfermeiras levam a rapariga e o bebé para a ambulância.
- Vão dar um passeio até à maternidade. Estão ambos óptimos.
- Manhã nós visitar! - exclama a garota.
Fonte: Biblioteca Escolar Álvaro Velho
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