«Os Postes Telegráficos», por G.K. Chesterton.
«Os Postes Telegráficos»
Conto de G.K. Chesterton
1193- «OS POSTES TELEGRÁFICOS»
Certo dia, um amigo e eu estávamos passeando numa daquelas
florestas típicas de toda a Europa ocidental, que podem tornar-se tão
traiçoeiras, quanto um verdadeiro deserto, de tão uniforme que é a paisagem, a
ponto de qualquer um ser capaz de perder-se nelas. Fortes, altos e todos
iguais, lá estavam os troncos de madeira dos pinheiros, rodeando-nos de todos
os lados, apontando-nos as suas afiadas agulhas, numa silenciosa insurreição.
Sempre que falamos em “biodiversidade”, estamos nos referindo, sem dúvida, a
uma verdade, no entanto, penso que muitas vezes a natureza manifesta a sua
diversidade precisamente na sua mesmice. Pode-se observar uma cadência
extremamente diversificada nesta unidade; é como se o mundo todo decidisse
seguir o mesmo itinerário, sempre de novo, até que este preciso itinerário
comece a nos parecer até estranho.
Você já experimentou ficar repetindo umas trinta vezes uma
mesma palavra tão comum quanto “cachorro”, por exemplo? Na trigésima vez a
palavra já se terá transformado em “vira-lata” ou “pulguento”. A simples
repetição certamente não tornará o cachorro mais simpático, antes, bem pelo
contrário, ele se tornará bem mais selvagem. No final o cãozinho acaba virando
algo tão obscuro e tenebroso quanto um Godzila ou alguma serpente marinha. É
possível que seja esta precisamente a razão de ser de tantas repetições na
natureza; que este seja precisamente o motivo que justifica a existência de
tantas milhões de folhas e pedras bem parecidas nesse mundo. Quem sabe elas não
sejam tão repetitivas, precisamente, para se evitar que sejam consideradas
triviais. Talvez elas se repitam só na esperança de que possam, no final,
tornar-se cada vez menos triviais. É provável que nenhum ser humano ficasse
surpreso com o primeiro gato que visse pela frente, mas certamente ele daria um
pulo de surpresa ao por os olhos no septuagésimo nono. Às vezes é preciso que
ele tenha que passar diante de milhares de pinheiros, até se deparar enfim
com o pinheiro, aquele que reconheça como sendo pinheiro de verdade.
Em todos os casos, há algo de excitante ou único, e eu diria até mesmo de
premente e radical nas eternas ladainhas da floresta; algo que nos remete à
loucura, nessa harmonia tão monótona dos pinheiros.
Quando fiz um comentário deste tipo com o meu amigo, ele respondeu
em tom sarcástico, “Caro amigo, espere só até dar de frente com um daqueles
postes telegráficos…” E, não é que o meu amigo estava certo? Coisa que ocorre
raríssimas vezes nas nossas conversas, principalmente quando estamos tratando
de fatos.
Tínhamos acabado de atravessar a floresta, por uma de suas
principais trilhas, que, por acaso, seguia a linha telegráfica daquela
cidadezinha. E, ainda que os postes só surgissem uma vez ou outra, eles faziam
uma imensa diferença. Toda vez que atingíamos uma daquelas clareiras, onde
havia um poste, nós nos dávamos conta nítida de que, afinal, os pinheiros não
estavam tão rectos assim. Era como se algum dia vislumbrássemos entre um monte
de riscos rabiscados por colegiais, uma linha traçada com uma régua.
Aquelas linhas todas de marinheiro de primeira viagem nos
pareceriam uma tortura, que pendiam ora para a esquerda, ora para a direita.
Poucos instantes antes poderíamos jurar que elas estavam rectas, e agora nos
damos conta de que elas estavam tortas, balançando de lá para cá, feito
gangorras. Comparados aos postes telegráficos, os pinheiros passavam a nos
parecer tortos, ao mesmo tempo em que também pareciam mais vivos. Uma única
linha vertical basta para imediatamente deformar tudo, deformar e libertar.
Embora tudo parecia estar saindo fora do prumo, isso era libertador, como
quando, no meio da floresta, avistamos um burlesco carvalho ou um pequeno resto
de mata virgem.
Tínhamos já caminhado muito mais longe do que pretendíamos,
guiados pela nossa linha imaginária; quando vimos anunciar-se o cair do dia,
que ia se transformando em um belo crepúsculo. Até que nos demos conta de ter
deixado a floresta para trás, e já nos encontrávamos no alto das montanhas que
se elevavam em torno da cidadezinha ou vilarejo desconhecido, cujas luzes já
começavam a piscar na crescente penumbra do vale.
Aquela peculiar transformação, que era típica do anoitecer,
já estava se processando. Enquanto o sol persistia brilhando, o mundo todo ia
escurecendo, dando seu adeus, a começar dos seus pontos mais extremos, as
montanhas e a copa dos pinheiros. Com isto era nos revelado o mistério secreto
dos pinheiros; e, lançando um fugaz e triste olhar sobre eles, meu amigo deu as
costas para a floresta, colocando-se sob o imenso céu estrelado. E então olhou
para os postes telegráficos diante dele, debaixo do último raio de luz do sol.
Agora eles já não tinham mais aquele aspecto erecto, alongado e amenizado pelos
traços delicados da madeira do pinheiro; eles se erguiam diante dele com toda a
sua trivialidade, arbitrariedade rústica, típica de toda figura geométrica
natural. O meu amigo ficou ali parado e, apontando para o poste, deu vazão a
toda a sua filosofia anárquica: “Você é o diabo” disse ele com toda
simplicidade, “mas vá em frente. O espaço das majestosas árvores, que para trás
ficou é o mundo como era antes de vocês, seres humanos civilizados, cristãos,
democratas ou quaisquer outros terem chegado e o feito ficar tão maçante, com
suas sombrias réguas de moral e da igualdade. Nesta luta silenciosa, cada uma
dessas árvores mudas encara outra árvore, cada folha, outra folha.. E toda essa
silenciosa batalha acaba nesta belíssima desigualdade. Levante os seus olhos e
olhe agora para toda essa medíocre homogeneidade. Observe bem, com que
regularidade precisa foram dispostos os nódulos brancos nessa madeira e ouse
continuar sustentando esta sua ideologia dogmática.”
“Será este poste telegráfico símbolo assim tão fiel e
contundente da democracia?” –perguntei-lhe.
“Vamos supor que, para construir esta rede de telégrafos,
geradores de dividendos tivessem sido necessários aproximadamente três mil
homens, e talvez outros tantos mil tivessem sido necessários para preservar a
floresta, que fornece a madeira. Mas, se este poste telegráfico é rústico (e
admito que é), isso não se deve a uma ideologia qualquer, mas antes à anarquia
reinante no mercado. Se alguém estivesse defendendo alguma ideologia acerca de
postes telegráficos, porque não os confeccionou logo em marfim, recobrindo-os
de ouro? Os produtos da modernidade são considerados de mau gosto, não devido
ao excesso de ‘dedos” dos homens modernos, mas precisamente devido à falta
deles.
“Não vem, não, “respondeu o meu amigo com os olhos fixos no
limiar de um pôr do sol magnífico e verdadeiramente exuberante, “há algo de
mórbido na própria noção de ideologia. Uma linha reta jamais será bela. A
própria beleza será sempre um tanto torta. Estes postes rígidos, dispostos em
intervalos assim tão regulares, são feios porque estão transmitindo uma
mensagem verdadeiramente democrática ao mundo.”
“Que neste exacto momento,” retruquei, ” deve estar clamando
‘comprem postes búlgaros’ por todos os lados. E provavelmente este será o meio
de comunicação mais usado por dois dos mais ricos e fracos dos seus filhos, com
quem Deus sempre teve que ter tanta paciência. Estes postes telegráficos não
são nada belos, de fato, na verdade eles são detestáveis, desumanos e
indecentes. Acontece que o seu maior defeito de fundação encontra-se na sua
particularidade e não, na sua universalidade. O fato é que este poste preto com
nódulos brancos não é produto da criação de uma alma universal. Trata-se de uma
invenção que adveio da alma de dois milionários malucos.”
“Mas se é assim, quero que você me faça o favor de explicar
ao menos uma coisa “, replicou o meu amigo em tom grave, “diga-me como é que
esta ideologia democrática tão rígida pode ter sido transmitida por estes
postes telegráficos de formas tão grotescas? Ora, mas Santo Deus, já está na
hora de ir para casa. Eu não fazia ideia de que já está assim tão tarde.
Deixe-me ver, acho que acabamos saindo fora da floresta. Venha, sigamos a linha
dos postes telegráficos, e isso, por um motivo bem mais razoável: chegar em
casa, antes que fique escuro.”
Não tinha como chegarmos em casa, antes de escurecer. Por
alguma razão nós havíamos subestimado a rapidez do cair da tarde e a súbita
invasão da escuridão da noite, supondo que nos encontrávamos às margens da
densa floresta. Foi só depois que o meu amigo, tropeçou em um dos fios logo nos
primeiros cinco minutos de caminhada, e o mesmo me aconteceu dez minutos
depois, sendo que eu já tinha arranhando os meus tornozelos no atoleiro, é que
começamos a ter uma vaga noção do nosso rumo. Finalmente, o meu amigo disse em
voz baixa e rouca: “receio que nós tenhamos entrado na trilha errada. Está
escuro feito breu aqui.”
“Acho que não, algo me diz que ainda estamos no caminho
certo,” arrisquei.
“Bem, ” disse ele, e depois de uma longa pausa, continuou”
não consigo enxergar nem os postes telegráfico. E olha que fiquei todo o tempo
de olhos bem abertos.”
“O mesmo digo eu,” disse. “eles estão alinhados demais.”
Ficamos por aproximadamente duas horas andando em círculos,
procurando o caminho certo ao longo das margens escuras da densa floresta,
cujas árvores pareciam dançar de forma debochada ao nosso redor. Todavia já era
possível vislumbrar no horizonte ao longe os contornos de algo bastante recto e
rígido demais para ser um pinheiro. E então finalmente percebemos que estávamos
chegando em casa, no frescor do verde crepúsculo, o eterno arauto de mais um
novo alvorecer.
G.K. Chesterton