domingo, 31 de agosto de 2014

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

AUGUSTUS PABLO
«Sufferers Trod»

OUTROS CONTOS

«Os Dons das Fadas», por Charles Baudelaire.

«Os Dons das Fadas»
Pintura de Camille Rose Garcia

253- «OS DONS DAS FADAS»

Realizava-se a grande reunião das fadas, a fim de procederem à partilha dos dons entre todos os recém-nascidos das últimas vinte e quatro horas.

Muito diferiam umas das outras, todas essas antigas e fantasistas Irmãs do Destino, todas essas Mães estranhas da alegria e da dor: umas tinham aparência sombria e rebarbativa, outras a tinham folgazã e maliciosa; umas eram jovens, e sempre o haviam sido, outras eram velhas, e também sempre o haviam sido.

Todos os pais que acreditam nas Fadas haviam comparecido, cada qual trazendo nos braços o seu recém-nascido.

Os Dons, as Faculdades, os Bons Acasos, as Circunstâncias Invencíveis, estavam amontoados ao lado do Tribunal, como os prémios sobre o tablado, em dia de distribuição de prémios. O que havia de particular no caso é que os Dons não eram a recompensa de um esforço, mas pelo contrário, uma graça concedida àquele que ainda não vivera, uma graça capaz de determinar o seu destino e de se tornar tanto a origem de sua desdita, quanto de sua felicidade.

As pobres Fadas estavam sobrecarregadas de trabalho, porque era grande o número dos solicitantes, e o mundo intermediário colocado entre o homem e Deus está submetido, tanto quanto nós, à lei terrível do Tempo e de sua infinita posteridade, os Dias, as Horas, os Minutos, os Segundos.

Na realidade, elas estavam tão atordoadas quanto ministros em dia de audiência, ou empregados do Estabelecimento de Penhores, quando um dia de festa nacional autoriza as restituições sem pagamento. Acho mesmo que olhavam, de vez em quando, para o ponteiro do relógio, com impaciência igual à de juízes humanos que, por estarem em função desde cedo, não podem deixar de sonhar com o jantar, a família e os queridos chinelos. Se, na justiça sobrenatural, há um pouco de precipitação e de acaso, não nos admiremos que o mesmo aconteça às vezes na justiça humana. Nós mesmos seríamos, em tal caso, juízes injustos.

Dessarte foram cometidas, nesse dia, algumas tolices – que poderíamos estranhar, se a prudência, e não a fantasia, fosse a característica peculiar, eterna, das Fadas.

Assim o poder de atrair magneticamente a fortuna foi concedido ao único herdeiro de uma família riquíssima que, não possuindo noção alguma de caridade, como também nenhuma cobiça dos bens visíveis da terra, devia encontrar-se, mais tarde, grandemente atrapalhado com seus milhões.

Assim foram concedidos o amor ao Belo e a Força Poética ao filho de um triste pobretão, um cavouqueiro absolutamente incapaz quer de favorecer os dotes, quer de prover às necessidades de sua lamentável progênie.

Esquecia-me de lhes dizer que a distribuição, em tais casos solenes, não comporta apelação, e que nenhum dom pode ser recusado…

Todas as Fadas já se estavam levantando, julgando concluída sua tarefa, porque não restava mais presente algum, munificência alguma para atirar a toda aquela nulidade humana, quando um bom homem, um pobre e modesto negociante, creio eu, ergueu-se e, agarrando por sua veste de vapores policrómicos a Fada que lhe ficava mais próxima, exclamou:

- Oh! Senhora! está-nos esquecendo! Ainda falta meu pequeno! Não quero ficar sem receber coisa alguma!

A Fada deveria ficar perplexa, porque não restava mais nada.

Todavia, lembrou-se ela a tempo de uma lei bastante conhecida, embora raramente aplicada, no mundo sobrenatural, habitado pelas deidades etéreas, amigas do homem, e muitas vezes forçadas a se adaptarem às suas paixões, tais como as Fadas, os Gnomos, as Salamandras, as Sílfides, os Silfos, os Nixos, os Ondinos e as Ondinas, – quero referir-me à lei que concede às Fadas, em semelhante caso, isto é, no caso de os presentes se acabarem, a faculdade de concederem mais um, suplementar e excepcional, sob condição, todavia, de ela possuir imaginação bastante para criá-lo imediatamente.

Por isso a boa Fada respondeu, com uma segurança digna de sua situação:

- Dou a teu filho… dou-lhe… o Dom de agradar!

- Mas agradar como? agradar? por que agradar? – perguntou teimosamente o pequeno comerciante, que sem dúvida era um desses raciocinadores tão comuns, incapazes de se elevarem até a lógica do absurdo.

- Porque sim! porque sim! – replicou a Fada, colérica, voltando-lhe as costas; e, reunindo-se ao cortejo de suas companheiras, dizia-lhes:

- Que acham desse francesinho vaidoso que tudo quer compreender e que, havendo obtido para o filho o melhor quinhão, ainda ousa interrogar e discutir o indiscutível?

Charles Baudelaire

sábado, 30 de agosto de 2014

OUTROS CONTOS

«A Doida e os Miúdos», por Soeiro Pereira Gomes.

«A Doida e os Miúdos»
Soeiro Pereira Gomes, In Esteiros

252- «A DOIDA E OS MIÚDOS»

Certa noite, Sagui acordou em sobressalto, ao barulho de alguém que resmungava. Mirrou-se mais contra as pedras, tapou a cabeça com a manta de retalhos. Mas a voz trespassava a roupa, tanto como os baques do coração sob a caverna do peito. «Quem seria, àquela hora?... Talvez ladrão que descobrira o esconderijo da fruta, ou espião mandado pelo senhor Castro».
A voz, aguda e áspera, parecia de mulher. «Se calhar era algum dos companheiros disfarçado, por brincadeira... » Espreitou por um rasgão da manta.

A fraca claridade da lua definia um vulto escuro, estendido sobre monte de caliça, como que à espreita também. Sagui sentiu saudades da palhota da vinha em que dantes dormia, e onde nada mais chegava que latidos de cães.

«...E se aquele vulto fosse de cão raivoso?» Um calafrio gelou-lhe o corpo e as pedras da cama. «Não. A voz era de mulher.» Ouvia agora gemidos abafados e palavras sem nexo... Depois, o silêncio pesou-lhe nas pálpebras. Fechou os olhos, esquecido; mas logo voltou a fixá-los no vulto imóvel. Por fim, cansado, adormeceu profundamente.

Quando acordou, o dia dormitava ainda, e o vulto também. Aproximou-se dele. Era a Doida. Ao primeiro impulso pensou em fugir, antes que ela tivesse algum daqueles ataques em que corria, à pedrada e aos gritos, os garotos da rua. Mas viu-lhe o rosto pálido, empastado de sangue. Lembrou-se da mulher que veio na lancha, chorosa, a engalhar o menino morto – e apiedou-se.

Levemente, estancou-lhe a ferida com um trapo molhado. Ela abriu para ele os olhos tontos, susteve-o nos braços, chamou-lhe meu menino. Sagui quis libertar-se daquelas mãos frias que o afagavam; mas, por medo, deixou-se embalar como criança de colo, fitando a Doida, de esguelha. Pelo decote da blusa, via-lhe o seio muito branco e uma nódoa negra no pescoço.

– Estás tão crescido, meu menino...

O sorriso dela era um esgar de amargura. Sagui esboçou uma carícia que se perdeu no ar, e voltou mais a cara para o lado. Os olhos, porém, continuavam hipnotizados pela nesga do seio. Contra vontade, a mão prendeu-se também no decote, trémula e suplicante... A Doida beijou-o. E ele esqueceu-se que era menino ao colo de mãe...

No dia seguinte, Sagui não vendeu fruta. Mas os companheiros andaram pelas portas, como de costume.

– Quer laranjas? Uma dúzia dez tostões.

– Se calhar são roubadas...

Gaitinhas corava sempre, enquanto que os companheiros protestavam:

– Nã sou ladrão. Fui comprá-las às Areias.

Guedelhas palmilhava três quilómetros de estrada, para vender a fruta toda noutra vila, de manhã. Depois, ia treinar-se com bolas de trapos, crente de que em breve lhe dariam admissão no clube desportivo. Os outros acompanhavam-no, ou então jogavam o chinquilho no Mirante.

Foi lá que Sagui lhes falou, embaraçado, com olheiras profundas no rosto.

– Hoje nã vendi nada...

– Tás doente, pá?

– Não. Andaram uns gajos a ver a capela.

O bando assustou-se.

– Disseram-te alguma coisa?

– Perguntaram só se eu morava ali. O melhor é arrecadar as laranjas noutro sítio.

– Adonde?

– No telhal do Zé Vicente.

– Tás parvo. Qualquer dia vão pra lá arranjar o forno...

Gineto pôs termo à discussão. – Mudam-se logo à noite, pronto.

– É melhor de dia – contestou Sagui. – Se os gajos desconfiaram, são capazes de lá aparecer logo, outra vez.

Gineto começou a duvidar das palavras atabalhoadas do pequeno companheiro.

«Outra história» – pensou.

Seguiu-lhe as passadas toda a tarde. Viu-o entrar na capela com embrulhos misteriosos, e depois correr as ruas como que à procura de alguém. Entusiasmado pela perseguição, escondeu-se atrás dumas pedras, entre ruínas, e, enquanto esperava, desejou ser polícia, mais do que ladrão de fruta. Um polícia assim como o «Rei dos Cow-Boys», que fazia justiça por
suas mãos, nas fitas de cinema.

Mas Sagui apareceu com a Doida, que ria e gesticulava. Da boca do Gineto quase se desprendeu um assobio de pasmo, tão longe estava daquele desfecho.

«Ai o gajo!... Misturado com a Doida sem dizer nada aos amigos...». Riu-se.

«E a comer com ela as laranjas da quadrilha...».

Não sossegou enquanto não falou ao Sagui.

– Atão tu, grande impostor, inganchas-te na Doida e vens pra cá enganar a gente.

– Eu?!

– Nã te faças de novas, que eu vi vocês dois, na capela.

Sagui embatucou por momentos.

– Tive medo que tu lhe fizesses mal... A gaja até faz pena. Olha que às vezes nem parece que é maluca.

– Eu só quero é trincar também. Já sabes... – declarou Gineto, impaciente.

– Mas não digas aos outros...

– Digo nada.

Uma semana depois, todos os componentes da quadrilha gastavam os lucros do negócio
em prendas para a Doida.

Soeiro Pereira Gomes

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

SALMONELLA DUB - «Problems»
Problems by Salmonella Dub on Grooveshark
Poet'anarquista

PROBLEMAS

Eu estou respirando,
É fácil,
Se você não pode,
Será que algum maior,
Vindo,
Clandestino
Como posso saber?
O que você sabe?

V Low é rei,
Não está escutando
Tem um problema?
Quer ter ido embora,
Mesmo que o anterior,
Deixou para mim,
Vale verde molhado,
V Low é gratuito.

V Low é rei,
Não está escutando
Tem um problema?
Quer ter ido embora,
V Low é rei,
Não está escutando,
Tem um problema?
Quer ter ido embora ....

Salmonella Dub

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

STEREOLAB
«John Cage Bubblegum»

JOHN CAGE BUBBLEGUM

Esta é a mais bela
E essa é a parte triste
Esta é a mais bonita
Paisagem do mundo

É a mais bela
E é a mais triste
É a mais bela
Paisagem no mundo

Stereolab

OUTROS CONTOS

«A História sem Fim», por Michael Ende.

«A História sem Fim»
Citando Michael Ende

251- «A HISTÓRIA SEM FIM»

[Excerto]

«As paixões humanas são misteriosas e as das crianças não o são menos que as dos adultos. As pessoas que as experimentaram não as sabem explicar, e as que nunca viveram não as podem compreender. Há pessoas que arriscam a vida para atingir o cume de uma montanha (...) ou sacrificam tudo por uma ideia fixa que nunca se pode realizar. (...) Em suma, as paixões são tão diferentes quanto as pessoas.

A paixão de Bastian Baltasar Bux eram os livros. Quem nunca passou tardes inteiras diante de um livro, com as orelhas ardendo e o cabelo caído sobre o rosto, esquecido de tudo o que o rodeia e sem dar conta de que está com fome ou com frio?

Quem nunca se escondeu embaixo dos cobertores lendo um livro à luz de uma lanterna, depois de o pai ou a mãe ter apagado a luz, com o argumento bem-intencionado de que já é hora de dormir?

Quem nunca chorou, às escondidas ou na frente de todo mundo, lágrimas amargas porque uma história maravilhosa chegou ao fim? Quem não conhece tudo isto por experiência própria provavelmente não poderá compreender o que Bastian fez em seguida.

Olhou fixamente o título do livro e sentiu, ao mesmo tempo, arrepios de frio e uma sensação de calor. Ali estava uma coisa com a qual tinha sonhado muitas vezes, que tinha desejado muitas vezes desde que dele se apoderara aquela paixão secreta: uma história que nunca acabasse! O livro dos livros!»

 Michael Ende

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(28 de Agosto de 1959, morre o compositor checo Bohuslav Martinu)

BOHUSLAV MARTINU
«Sonata para Clarinete e Piano»

OUTROS CONTOS

«De Quanta Terra Precisa o Homem?», por Liev Tolstói.

«De Quanta Terra Precisa o Homem»
Povoado do séc. I a.C./ Rocha da Mina

250- «DE QUANTA TERRA PRECISA O HOMEM?»
[Trecho]

A irmã mais velha foi visitar a irmã mais nova. A mais velha morava na cidade e era casada com um próspero comerciante; a mais nova morava numa aldeia e era casada com um camponês.

As irmãs sentaram-se para tomar chá e conversar. A mais velha começou a se gabar das vantagens de viver na cidade, do conforto e da boa vida que levava em sua casa, de que era possível vestir-se bem e às crianças, comer e beber sem medida, passear, ir a festas, assistir a espectáculos de teatro, e tantos outros entretenimentos.

A irmã mais nova, sentindo-se ofendida, começou a criticar a vida na cidade e defender a vida no campo.

- Eu não trocaria a minha vida pela sua por nada - disse ela. - Vivemos humildemente, mas pelo menos não vivemos com medo. Sua vida pode ser melhor que a nossa, podem ganhar muito dinheiro, mas também podem perder tudo. Lembra o ditado: "Lucrar e perder são irmãos gémeos". Hoje, você está rica e, amanhã, está pedindo esmolas.

E continuou:

- A vida no campo é mais segura. Não vamos ficar ricos, mas tiramos da terra o suficiente para não passarmos fome.

A irmã mais velha deu o troco:

- O suficiente para não passar fome? Claro! Se dividem o alimento com as vacas, os porcos e as galinhas. O que sabem vocês de moda e elegância? Por mais que seu marido trabalhe, vão viver e morrer no meio do esterco. E assim vão continuar os seus filhos.

- E o que você tem com isso? - retrucou a mais nova. - Sabemos que a nossa vida é rude. Porém é segura, e não precisamos reverenciar ninguém. Vocês vivem cercados de tentações. Hoje pode estar tudo bem, mas amanhã o diabo pode tentar o seu marido com cartas e vinho, e todo esse encanto de que você se pavoneia estará arruinado.

Pahkóm, o dono da casa, estava sentado perto da lareira e ouvia as duas irmãs tagarelarem.

"É a pura verdade", pensou ele. "Desde a infância ocupado com a terra, um caipira como eu não tem tempo de encher a cabeça com bobagens. Nossa única preocupação é a falta de terra. Se eu tivesse muita terra, não temeria nem mesmo o próprio diabo."

As irmãs terminaram de beber o chá, conversaram um pouco sobre vestidos, arrumaram a mesa e foram dormir.

Mas o diabo, escondido atrás da lareira, tinha ouvido toda a conversa e ficara muito contente que a esposa de Pahkóm conseguisse provocar o marido a ponto de ele, com despeito, se vangloriar de que, se tivesse muita terra, não temeria nem mesmo o próprio diabo.

"Muito bem! Então vamos medir forças. Vou dar o que ele pede e, assim, ele vai ficar em minhas mãos", pensou o diabo.

Próximo da aldeia, morava uma mulher, dona de uma propriedade de quase cento e cinquenta hectares. Ela vivia em paz com os vizinhos da aldeia até o dia em que contratou um velho soldado aposentado para cobrar multas dos camponeses. Por mais cuidadoso que Pahkóm fosse, vez ou outra um de seus cavalos escapava e invadia a plantação de aveia da mulher, ou uma vaca pisoteava seu jardim, ou seus bezerros adentravam suas pradarias. Tudo isso resultava em pesadas multas.

Pahkóm pagava as multas remoendo o incidente.

Naquele verão ele teve um grande prejuízo com as invasões e muitas discussões com o cobrador impiedoso.

Com a chegada do inverno, Pahkóm ficou mais animado, pois nessa estação os animais permaneciam recolhidos ao estábulo. Ele resmungava um pouco por gastar mais com ração, e descontava a raiva nas pessoas de sua família.

Certo dia, correu a notícia de que a mulher estava negociando suas terras com um latifundiário da região. Os camponeses ficaram alarmados, pois pensavam que o latifundiário poderia arruiná-los com multas piores que as da mulher. A sobrevivência deles dependia daquela propriedade.

Os camponeses decidiram visitar a mulher em nome da comunidade e pediram a ela que não vendesse as terras ao latifundiário, argumentando que eles ofereceriam um preço melhor.

Ela aceitou a proposta. Os camponeses tentaram arrumar um jeito para que a comunidade comprasse toda a propriedade e a administrasse. Mas, em duas sessões, não conseguiram chegar a um acordo. O diabo, infiltrado nas reuniões, não fez outra coisa a não ser semear a discórdia.

Os camponeses decidiram, então, comprar a terra individualmente, quer dizer, de acordo com as possibilidades de cada um. A mulher considerou a soma total e concordou com o negócio.

Pahkóm ouviu, então, que seu vizinho comprara cinquenta hectares e a mulher aceitara receber metade do pagamento parcelada no prazo de um ano. Sentiu inveja e disse à esposa:

- Olhe para isso! Todos já estão comprando terras. Nós também precisamos comprar no mínimo uns vinte hectares. Não podemos esperar ser esmagados pelas multas.

Começaram a fazer contas e pensar numa forma de comprar as terras que desejavam.

Somaram cem rublos. Venderam um potro, metade do apiário, puseram um dos filhos para trabalhar recebendo o salário adiantado. Pahkóm pediu parte do dinheiro emprestada ao cunhado e, dessa forma, reuniram metade da quantia necessária.

Pahkóm escolheu um lote de quarenta hectares, que incluía um pequeno bosque, e partiu para negociar com a mulher.

Chegaram a um acordo e, em seguida, foram até a cidade para assinar o contrato de compra. Ele pagou a metade em dinheiro e comprometeu-se a pagar o restante em dois anos.

Agora, Pahkóm já tinha a terra que queria. Conseguiu sementes e cultivou a terra que havia comprado. A colheita foi boa, e em um ano ele saldou a dívida que tinha com a mulher e com o cunhado.

Pahkóm tornou-se um proprietário aplicado - arava e semeava a terra, cortava árvores quando precisava, fez boa reserva de forragem para alimentar o gado. Quando saía pelo campo para observar o trigo que crescia nas suas pradarias, seu coração pulava de alegria. Ervas e flores cultivadas ali pareciam-lhe diferentes das de qualquer outro lugar.
[...]

Liev Tolstói

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

OUTROS CONTOS

«Anos», por Cesare Pavese.
«Anos»
Pintura de Jesus Gómez Costa

249- «ANOS»

Do que eu era então não resta nada: apenas homem, era ainda um menino. Eu sabia há muito tempo, mas tudo aconteceu no final do Inverno, uma tarde e uma manhã. Vivíamos juntos, quase escondidos, numa casa que dava para uma avenida. Sílvia me disse naquela noite que eu tinha que ir, ou ela iria: já não tínhamos nada que fazer juntos. Supliquei que deixasse que tentássemos de novo, estava deitado ao seu lado e a abraçava. Ela me disse:

- Para quê? – Falávamos com a voz baixa, às escuras.

Logo Sílvia dormiu e eu fiquei até de manhã com um joelho colado ao seu. A manhã apareceu como sempre havia aparecido e fazia muito frio; Sílvia tinha o cabelo sobre os olhos e não se movia. Na penumbra eu olhava passar o tempo, sabia que passava e corria e que lá fora havia névoa. Todo o tempo que havia vivido com Sílvia naquele quarto era como um só dia e uma noite, que agora terminava pela manhã. Então compreendi que nunca voltaria a sair comigo por entre a névoa fresca.
Era melhor que me vestisse e partisse sem despertá-la. Mas agora tinha uma coisa em mente para lhe perguntar. Esperei, tentando adormecer.

Quando despertou, Sílvia me sorriu. Seguimos conversando. Ela disse:      

- É bonito ser sincero, como nós.

- Oh, Sílvia! – sussurrei -, que farei ao sair daqui? Para onde irei?

Era isto que tinha para lhe perguntar. Sem tirar a nuca do travesseiro, ela sorriu de novo, beatífica:

- Bobo – disse – irá para onde quiser. Não é fabuloso ser livre? Conhecerá muitas garotas, fará todas as coisas que quiser. Palavra que te invejo!

Agora a manhã enchia o quarto e só havia um pouco de calor na cama. Sílvia esperava paciente.

- Você é como uma prostituta – disse a ela – e sempre foi.

Sílvia não abriu os olhos.

- Sente-se melhor por me dizer isto? – me disse.

Então fiquei ali como se ela não estivesse, olhava o tecto e chorava sem ruído. As lágrimas me enchiam os olhos e corriam sobre a almofada. Não valia a pena que notasse. Muito tempo passou, e agora sei que aquelas lágrimas mudas foram a única coisa de homem que fiz com Sílvia; sei que chorava não por ela, senão porque havia entrevisto meu destino. Do que eu era então não restou nada. Apenas que havia compreendido quem seria no futuro.

Depois Sílvia me disse:

- Já basta. Tenho que me levantar.

Levantamo-nos juntos, os dois. Não a vi se vestir. Fiquei logo de pé, na janela; e olhava vislumbrando as plantas. Detrás da névoa estava o sol, o sol que tantas vezes havia entibiado o quarto. Também Sílvia se vestiu rápido, e me perguntou se não levaria minhas coisas. Disse que primeiro queria esquentar o café, e acendi o fornilho.

Sílvia, sentada na borda da cama, começou a fazer as unhas. No passado sempre as fez na mesa. Parecia absorta e o cabelo lhe caía continuamente sobre os olhos. Então sacudia a cabeça e se liberava. Eu perambulei pelo quarto e recolhi minhas coisas. Fiz um amontoado sobre uma cadeira e de repente Sílvia levantou e correu para apagar o café que derramava.

Depois peguei a maleta e coloquei as coisas. Enquanto isso, por dentro me esforçava em recolher todas as recordações desagradáveis que tinha de Sílvia: suas futilidades, seus mal-humores, suas frases irritantes, suas rugas. Isso me levava de seu quarto. O que deixava era uma névoa.

Quando terminei, o café estava pronto. O tomamos em pé, junto do fornilho. Sílvia disse algo, que neste dia iria ver um sujeito, para falar de um assunto. Pouco depois deixei a xícara e parti com a maleta. Lá fora a névoa e sol cegavam.

Cesare Pavese

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(27 de Agosto de 1521, morre o compositor francês Josquin Desprez)

JOSQUIN DESPREZ - «Intróito»

terça-feira, 26 de agosto de 2014

CARTOON versus QUADRA

Os Meets

HenriCartoon

«OS MEETS»

- Tão puto… táss bem por aqui?
- Na boa puto... e tu, tás a curtir?
- Ya meu, tou numa de agredir...
- Eu também meu, apanha aí!

POETA

POEMA DE ALBERTO DE LACERDA

«Como é Belo seu Rosto Matutino»
Pintura de Michael Créese

COMO É BELO SEU ROSTO MATUTINO

Como é belo seu rosto matutino 
Sua plácida sombra quando anda 

Lembra florestas e lembra o mar 
O mar o sol a pique sobre o mar 

Não tive amigo assim na minha infância 
Não é isso que busco quando o vejo 
Alheio como a brisa 
Não busco nada 
Sei apenas que passa quando passa 
Seu rosto matutino 
Um som de queda de água 
Uma promessa inumana 
Uma ilha uma ilha 
Que só vento habita 
E os pássaros azuis 

Alberto de Lacerda
(In 'Exílio')

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(26 de Agosto de 1958, morre o compositor britânico Ralph Vaughan Williams)

RALPH VAUGHAN WILLIAMS
«The Lark Aschon»

OUTROS CONTOS

«Uma Senhora», por Marques Rebelo.

«Uma Senhora»
Afresco Senhora de Akrotiri
(Civilização Minoica)

248- «UMA SENHORA»

Dona Quinota não se importava com a aspereza do ano inteiro. Com ela era ali no duro - trabalho, trabalho e mais trabalho. O ordenado das empregadas, na verdade, era uma pouca-vergonha que a polícia devia pôr um paradeiro. Não punha. Vivia metida com a maldita da política. Falta duma boa revolução!... Ah, se ela fosse homem!... Enquanto a revolução não vinha para botar tudo nos eixos, obrigando-a a endireitar as empregadas, fazia de criada - cozinhava, varria, cosia. Encerava a casa também, aos sábados, depois que disseram pelo rádio ser higiénico e muito económico.

- Económico? Então se encera mesmo.

O marido, que já estava acostumado àquelas resoluções, largou no melhor pedaço o segundo volume de Os Miseráveis, meteu sobre o pijama a gabardine cheirando a gasolina na gola e foi telefonar para a loja de ferragens, pedindo duas latas de cera- da boa, vê lá! - chorando um abatimentozinho na escova e na palha de aço: está ouvindo, Seu Fernandes?

Estava sempre para tudo que, graças a Deus, era mulher forte. Saíra à mãe, que também o fora, morrendo velha de desastre, desastre doméstico, uma chaleira de água fervendo para o escalda-pé do marido, um coronel reformado, que lhe virou por cima do corpo.

Nunca se queixava da vida. Não ia à cidade passear, as suas compras eram em regra feitas pelo marido, precisava que a fita fosse muito falada para ela se abalar até ao cinema do bairro, onde cochilava a bom cochilar; contavam-se os domingos em que ia à missa, não fazia visitas, nem recebia.

Não reclamava o trabalho que lhe davam os filhos, três desmazelados que andavam na escola pública, Elcio, Elcia e Elcina, respectivamente quinze, quatorze e treze anos, o que atesta bem a força do marido e dá ideia o que seria depois de dez anos de casada, se depois da Elcina não tomasse as devidas precauções.

- Não se esqueçam de dar lembranças à Dona Margarida - aconselhava na hora da saída, enquanto punha nas bolsas as bananas e o pão com manteiga da merenda. Dona Margarida fora sua amiga no colégio das Irmãs, uma bicha no francês, cearense, um talento! Mandar lembranças para ela equivalia a dizer: Olha que são meus filhos, Margarida; os filhos da tua amiga Quinota...

E os exames estavam perto, com prémios de cadernetas da Caixa Económica dados pelo prefeito, ridicularizados pelos jornais oposicionistas, elogiados pelos do governo - a Folha dizia que era um gesto de Mecenas mas enfim fartamente anunciados em todos os jornais para incentivo da meninada estudiosa. Ela queria ser mordida por um macaco se não arranjasse três cadernetas para casa. Os filhos é que não faziam fé. Bordava para fora, cuidava do Joli, o bichano para sujar a casa era um desespero, e sobrava tempo ainda para ter ciúmes do marido com as vizinhas, principalmente Dona Consuelo, uma descarada, é certo, mas muito chique, confessava.

Chegando o carnaval, tirava a forra.

As economias acumuladas saíam do Banco Popular juntas com os juros.

Não ficava nada. Metia-se numa fantasia de baiana e inundava a capota do automóvel com seus oitenta e cinco quilos honestíssimos. As meninas iam de baianas também, menos saias, mais berloques, e o menino de pierrô, cada ano de uma cor, porque não é para outra coisa que o dono do Tinto! Gasta aquele dinheirão em anúncios. Tirava do cabide a casaca do casamento, dezasseis anos por isso (como o tempo corre!), dava um jeito nas manchas:

- No automóvel, ninguém repara, meu filho - dizia com um sorriso, ora para a casaca, ora para o marido, que se traduzia: lembras-te?

Ele, então, com uma faixa vermelha na cintura, brincos em forma de argola, pendentes das orelhas demasiadas, enfiava na cabeça um turbante de seda branca com pérolas em profusão, e ia em pé, no carro, de rajá diplomata.

No terceiro dia, graças a Deus não choveu em nenhum dos três, perguntava para o marido:

- Quanto temos ainda?

Ele remexia a carteira (bolso de casaca é o tipo da coisa encrencada!), fura-bolos trabalhava passado na língua, e cantava a quantia:

- Duzentos e oitenta.

- E os oitocentos do automóvel?

- Já estão fora.

- Ah! Bem... - Para fazer contas no ar era um assombro: ... pode gastar mais cento e cinquenta.

O resto ficava para gastar depois do carnaval - mas entrava na verba dele - com o fígado do marido, porque depois da pândega (a experiência de Dona Quinota é que falava) Seu Juca tinha rebordosas, vômitos biliosos, uma dor do lado danada, de tanta canseira, tanta serpentina e tanta cerveja gelada.

Não faz mal. Não fazia não. A vida era aquilo mesmo: três dias - falava.

Mas pensava: por ano. Podia dizer, mas não dizia. Deixava ficar lá dentro.
O “lá dentro” de Dona Quinota era uma coisa complicada, complicadíssima, que ninguém compreendia. Só ela mesma e o marido, às vezes.
Desciam do automóvel à porta de casa, quando o vizinho veio vindo com o rancho da filharada.

- Brincaram muito? - fez Seu Adalberto, com um jeito de despeitado.

- Assim, assim...

Dona Quinota dizia aquele “assim-assim” de propósito. Que lhe importava os outros saberem se ela tinha gozado ou não? Quem gozava era ela. Mas gostava de ficar deliciando-se por dentro com a inveja dos vizinhos: assim, assim... Ah! Ah! Ah!

Seu Adalberto exultava:

- E isso mesmo. Faz-se despesas enormes (e Dona Quinota sorria) e não se diverte nada. (Dona Quinota olhava para o céu.) É sempre assim. Pois olhe: nós fomos a pé mesmo. Estivemos ali na Avenida na esquina do Derbi, apreciamos o baile do Clube Naval, muita fantasia rica, muita, vimos perfeitamente as sociedades, tomamos refrescos, brincamos à grande. Não foi?

As mocinhas fizeram que sim, humilhadas, mas os guris foram sinceros:

- Aquele carro do girassol que rodava, hem, papai!

Seu Adalberto corrigiu logo:

- Girassol, não, Artur; crisântemo.

Depois que corrigiu, ficou azul, sem saber ao certo se era crisântemo ou crisantemo - quer ver que eu disse besteira?

Seu Juca não havia meio de encontrar o raio da chave. Esses bolsos de casaca!...

- O ano que vem - Dona Quinota falou firme - nós iremos também a pé.

O marido até se virou. Ficou olhando, espantado.

- Que diabo é isto? - ia perguntando. Por um triz que não perguntou. Mas ficou assim... Compreendeu? Parece... Esta Quinota!...

Foi quando Seu Adalberto, evidentemente mortificado, se refez e sentenciou como experiente na matéria, apesar de nunca ter entrado num automóvel pelo carnaval: é melhor mesmo.

A tribo sumiu pela porta do 37. A maçaneta fechou por dentro.

Torreco, torreco. Agora foi a chave - duas voltas. O pigarro do seu Adalberto, ainda com o acento do crisântemo a fuzilar-lhe na cabeça, veio até cá fora se misturar com um resto de choro, pandeiro e chocalhos, do bonde que passava mais longe. Passos apressados no fundo da rua. O burro do inglês estava na janela do apartamento fumando para a lua. Dona Quinota ficou olhando-o um pouco, depois cerrou a porta bem e fixou o marido que dava por falta dum brinco: Que cretinos!

Seu Juca parou no meio do corredor, cara de ressaca, pernas abertas, o turbante nas mãos e esperou mais. Mas Dona Quinota era hermética. O resto ficou lá dentro onde ninguém ia buscar, porque o marido, o único interessado na ocasião, mais morto do que vivo, preferiu tirar o colarinho e a casaca.

Dona Quinota atirou-se na cama escangalhada e feliz, só acordando na quarta-feira de cinzas ao meio-dia.

Quando o resto da família se levantou, o almoço (feito por ela) já estava na mesa, e Dona Quinota se desesperava porque tinha lido no Jornal do Brasil que foram os Fenianos que pegaram o primeiro prémio, quando todo mundo viu perfeitamente que só o carro-chefe dos Democráticos...

Marques Rebelo

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

SOBRE A MÚSICA, POR NIETZSCHE

Ouvir em Movimento
Citações de Friedrich Nietzsche

SOBRE A MÚSICA...

Sem a música, a vida seria um erro. 
(Friedrich Nietzsche) 

A música oferece às paixões o meio de obter prazer delas. 
(Friedrich Nietzsche) 

E os que foram vistos dançando foram julgados insanos pelos 
que não conseguiam ouvir a música. 
(Friedrich Nietzsche) 

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(25 de Agosto de 1918, nasce o compositor e maestro norte-americano, Leonard Bernstein)

LEONARD BERNSTEIN
«Spanish Dance»

OUTROS CONTOS

«A Pechincha», por Truman Capote.

«A Pechincha»
Ilustração de António Modesto

247- «A PECHINCHA

Várias coisas no marido irritavam a sra. Chase. Por exemplo, a voz: ele sempre falava como se estivesse apostando num jogo de póquer. Ouvir aquela fala arrastada e indiferente era exasperador, sobretudo agora, que, conversando com ele por telefone, ela própria falava de forma estridente de tanta empolgação. "Claro que eu já tenho um, sei disso. Mas você não entende, querido — é uma pechincha", explicou, enfatizando a última palavra, depois fazendo uma pausa para deixar a magia dela crescer. Só ouviu silêncio. "Puxa, você podia dizer alguma coisa. Não, não estou numa loja, estou em casa. Alice Severn vem para o almoço. É sobre o casaco de Alice que estou tentando lhe falar. Você deve se lembrar dela." A memória esburacada do marido era outra fonte de irritação, e, embora ela lhe lembrasse que lá em Greenwich Village eles tinham visto com frequência Arthur e Alice Severn, chegaram até a receber o casal em sua casa, ele fingiu não conhecer aquele nome. "Não importa", ela suspirou. "Só vou dar uma olhada no casaco. Tenha um bom almoço, querido."

Mais tarde, ao se aborrecer com as ondas precisas de seu cabelo retocado, a sra. Chase admitiu que realmente não havia motivo para o marido se lembrar dos Severn com tanta clareza. Deu-se conta disso quando, com sucesso parcial, tentou evocar uma imagem de Alice Severn. Pois bem, quase conseguiu: uma mulher rosada e desengonçada, com menos de trinta anos, que sempre dirigia uma caminhonete, acompanhada por um setter irlandês e por duas bonitas crianças de cabelos louros avermelhados. Dizia-se que o marido dela bebia; ou seria o contrário? Além disso, eles eram considerados maus pagadores, ao menos a sra. Chase lembrou de certa vez ter ouvido falar de dívidas incríveis, e alguém, teria sido ela própria?, descrevera Alice Severn como simplesmente boémia demais.

Antes de se mudarem para a cidade, os Chase mantiveram uma casa em Greenwich Village, que era um tédio para a sra. Chase, porque ela detestava os sinais de natureza dali e preferia o divertimento das vitrines de Nova York. Em Greenwich Village, em algum coquetel, na estação de trem, vez por outra encontravam os Severn, e não passou disso. Nem éramos amigos, ela concluiu, um tanto surpresa. Como costuma acontecer quando de súbito se ouve falar de uma pessoa do passado, e alguém conhecido num contexto diferente, ela fora induzida a uma sensação de intimidade. Mas, pensando melhor, parecia extraordinário que Alice Severn, a quem ela não via fazia mais de um ano, tivesse telefonado oferecendo à venda um casaco de vison.

A sra. Chase parou na cozinha a fim de pedir sopa e salada para o almoço: jamais lhe ocorria que nem todo mundo estava de dieta. Encheu um decantador de xerez e o levou consigo até a sala de estar. Uma sala verde-esmeralda, o mesmo gosto excessivamente juvenil das roupas dela. O vento fustigava as janelas, pois o apartamento ficava num andar alto, com uma vista de avião do centro de Manhattan. Colocou um disco do Linguaphone na vitrola e sentou-se em posição não relaxada, ouvindo a voz forçada pronunciar frases francesas. Em abril, os Chase planejavam comemorar o vigésimo aniversário de casamento com uma viagem a Paris; por essa razão, ela começara as aulas do Linguaphone, e, por essa razão também, cogitou no casaco de Alice Severn: seria mais prático, achou, viajar com um vison de segunda mão; mais tarde, poderia mandar transformá-lo numa estola.

Alice Severn chegou alguns minutos mais cedo, uma casualidade decerto, pois não era uma pessoa ansiosa, pelo menos a julgar por seus modos contidos e cautelosos. Usava sapatos comuns, um casaco de tweed que já vira dias melhores, e carregava uma caixa amarrada com um barbante puído.

"Fiquei encantada quando você telefonou esta manhã. Deus sabe, faz um tempão que não nos vemos, mas, claro, não vamos mais a Greenwich Village."

Embora sorrindo, sua visita permaneceu calada, e a sra. Chase, que assumira um tom efusivo, ficou um tanto sem graça. Quando as duas sentaram, os olhos dela apreenderam a mulher mais jovem, e ocorreu-lhe que, se tivessem se encontrado por acaso, poderia não tê-la reconhecido, não porque sua aparência tivesse se alterado tanto, mas porque a sra. Chase se deu conta de que nunca antes olhara atentamente para ela, o que parecia estranho, pois Alice Severn era alguém que chamava a atenção. Se fosse menos comprida, mais compacta, as pessoas poderiam ignorá-la, talvez reparando que era atraente. Mas, do jeito que era, com seus cabelos vermelhos, a impressão de distância nos olhos, o rosto sardento, outonal, e as mãos magras e fortes, havia nela certa peculiaridade difícil de ignorar.

"Xerez?"
Alice Severn assentiu com a cabeça, que, equilibrada precariamente sobre o pescoço fino, parecia um crisântemo pesado demais para seu talo.

"Cream-cracker?", ofereceu a sra. Chase, observando que alguém tão esguio e alongado devia comer feito um cavalo. Sua frugalidade de sopa e salada despertou-lhe um súbito receio, e ela contou a seguinte mentira: "Não sei o que Martha está preparando para o almoço. Sabe como é difícil, em cima da hora. Mas conte, querida, o que está acontecendo em Greenwich Village?".

"Em Greenwich Village?", ela disse, entrecerrando as pálpebras, como se uma luz inesperada refulgisse na sala. "Não tenho a menor ideia. Não moramos mais lá faz algum tempo, seis meses ou mais."

"Oh?", fez a sra. Chase. "Veja como estou desactualizada. Mas onde você está morando, querida?"

Alice Severn ergueu uma das mãos ossudas e desajeitadas e apontou para a janela. "Lá fora", respondeu, de forma estranha. Sua voz era clara, mas tinha um tom de esgotamento, como se ela estivesse pegando um resfriado. "Quer dizer, no centro. Não gostamos muito, sobretudo Fred."

Com a mínima inflexão, a sra. Chase perguntou: "Fred?", pois lembrava perfeitamente que Arthur era o nome do marido da visita.

"Sim, Fred, meu cachorro, um setter irlandês, você deve tê-lo visto. Está acostumado com espaço, e o apartamento é tão pequeno, só um quarto."

Dias difíceis deviam ter sobrevindo para que todos os Severn estivessem morando num único quarto. Por mais curiosa que fosse, a sra. Chase se controlou e não indagou a respeito do assunto. Provou seu xerez e disse: "Claro que me lembro do seu cachorro; e das crianças: todas as três cabecinhas vermelhas espiando pela janela da caminhonete".

"As crianças não têm cabelos vermelhos. São louras, como Arthur."

A correcção, com tão pouco senso de humor, provocou na sra. Chase uma risadinha intrigada. "E Arthur, como vai?", perguntou ela, preparando-se para se levantar e conduzir a visita até o almoço. Mas a resposta levou-a a sentar-se de novo. Sem mudança alguma na expressão placidamente desornada de Alice Severn, consistiu apenas em: "Mais gordo".

"Mais gordo", ela repetiu após um momento. "A última vez que o vi, acho que só uma semana atrás, estava atravessando uma rua feito um pato. Se ele tivesse me visto, eu teria de rir: ele sempre foi tão preocupado com a aparência."

A sra. Chase pôs as mãos na cintura. ''Você e Arthur. Separados? É simplesmente incrível."

"Nós não estamos separados." Ela esfregou as mãos no ar como que para remover teias de aranha. "Eu o conheço desde criança, desde que nós dois éramos crianças: você acha", disse tranqüilamente, "que poderíamos algum dia estar separados um do outro, sra. Chase?"

O uso exato de seu nome pareceu afastar a sra. Chase; por um momento, ela se sentiu isolada, e, ao caminharem juntas até a sala de jantar, imaginou uma hostilidade circulando entre elas. Possivelmente foi a visão das mãos desajeitadas de Alice Severn tentando abrir um guardanapo que a persuadiu de que aquilo não era verdade. Excepto por algumas palavras corteses, elas comeram em silêncio, e ela começava a temer que não haveria nenhuma história.

Enfim Alice Severn disse abruptamente: "Na verdade, nos divorciamos em agosto passado".

A sra. Chase esperou; depois, entre a descida e a subida de sua colher de sopa, disse: "Que horrível. Por causa da bebedeira dele?".

"Arthur nunca bebeu", ela respondeu com um sorriso agradável mas espantado. "Ou melhor, nós dois bebíamos. Por prazer, não por vício. Era gostoso no verão. Costumávamos descer até o riacho, colher hortelã e preparar um coquetel de uísque com hortelã em enormes potes de frutas. Às vezes, nas noites quentes em que não conseguíamos dormir, enchíamos de cerveja gelada as garrafas térmicas e acordávamos as crianças, depois íamos de carro até a praia; é divertido beber cerveja e nadar e dormir na areia. Bons tempos; lembro que uma vez ficamos lá até o sol raiar. Não", disse, alguma idéia séria retesando sua face. "eu vou lhe contar. Sou quase uma cabeça mais alta que Arthur, e acho que isso o preocupava. Quando éramos crianças, ele sempre achou que me ultrapassaria, mas isso nunca aconteceu. Ele detestava dançar comigo, e olha que ele adora dançar. E gostava de um monte de gente ao redor, gente baixinha de voz alta. Não sou assim, preferia que ficássemos só os dois. Nesse aspecto eu não era agradável para ele. Pois bem, lembra de ]eannie Bjorkman? Aquela de rosto redondo e cabelo encaracolado, mais ou menos da sua altura".

"Lembro, sim", respondeu a sra. Chase. "Esteve no comitê da Cruz Vermelha. Horrorosa."

"Não", replicou Alice Severn, reflectindo. "Jeannie não é horrorosa. Éramos óptimas amigas. O estranho é que Arthur costumava dizer que a odiava, mas tenho a impressão de que sempre foi louco por ela, com certeza agora é, e as crianças também. Eu queria que as crianças não gostassem dela, embora devesse estar feliz por gostarem, já que têm de viver com ela."

"Não acredito: seu marido casado com aquela horrorosa da Bjorkmanl" 

"Desde agosto."

A sra. Chase, fazendo primeiro uma pausa para sugerir que fossem tomar o café na sala de estar, disse: "É deprimente você estar vivendo sozinha em Nova York. Pelo menos devia ter ficado com os filhos".

"Arthur quis ficar com eles", respondeu Alice Severn simplesmente. "Mas não estou sozinha. Fred é um de meus melhores amigos."

A sra. Chase gesticulou, impaciente: não gostava de fantasias. "Um cachorro. Loucura. A verdade é que você é uma tola: se algum homem tentasse me passar para trás, eu cortava os pés dele em pedacinhos. Vai ver que você nem exigiu", hesitou, "uma pensão."

"Você não entende, Arthur não tem dinheiro algum", disse Alice Severn com o desânimo de uma criança que descobriu que os adultos, afinal, não são muito lógicos. "Teve até de vender o carro, e vai e volta a pé da estação. Mas, sabe, acho que está feliz."

"O que você precisa é de um bom beliscão", disse a sra. Chase como se estivesse pronta para realizar o serviço.

"É Fred que me preocupa. Está acostumado com espaço, e, com uma única pessoa, não sobram muitos ossos. Você acha que, quando terminar meu curso, consigo arrumar um emprego na Califórnia? Estou estudando administração, mas não sou muito rápida, sobretudo na máquina de escrever, meus dedos parecem detestar aquilo. Deve ser como tocar piano, você tem de aprender quando é jovem." Ela olhou curiosa para suas mãos, suspirando: "Tenho aula às três; importa-se se lhe mostrar o casaco agora?".

A festividade de coisas saindo de uma caixa em geral alegrava a sra. Chase, mas, quando ela viu a tampa ser retirada, um mal-estar melancólico dominou-a.

"Pertenceu à minha mãe."

Que deve ter usado essa tralha durante sessenta anos, pensou a sra. Chase, encarando um espelho. O casaco dava nos seus tornozelos. Ela passou a mão pela pelagem opaca, quase sem pêlos: estava mofada, fedida, como se tivesse permanecido num sótão à beira-mar. Fazia frio dentro do casaco, ela estremeceu, ao mesmo tempo um rubor aqueceu-lhe o rosto, pois foi aí que notou que Alice Severn olhava sobre seus ombros e na expressão dela havia uma expectativa tensa, humilhante, antes inexistente. Quanto à solidariedade, a sra. Chase praticava a parcimônia: antes de oferecê-la, tomava a precaução de amarrar um barbante nela para, em caso de necessidade, pegá-la de volta. Quando ela fitou Alice Severn, porém, foi como se o barbante tivesse sido cortado, e dessa vez ela se confrontou com as obrigações da solidariedade. Hesitou mesmo assim, procurando uma escapatória, mas seus olhos colidiram com aqueles outros olhos, e ela percebeu que não havia nenhuma. A lembrança de uma palavra das aulas do Linguaphone facilitaram uma pergunta: "Combien?".

"Isso não vale nada, não é?" Havia confusão na pergunta, não franqueza.

"Não, não vale", ela respondeu, cansada, quase irritada. "Mas pode ter alguma utilidade." Não repetiu a pergunta; estava claro que estipular o preço fazia parte de sua obrigação.

Ainda arrastando o incômodo casaco, dirigiu-se a um canto da sala onde havia uma escrivaninha e, com movimentos nervosos e ressentidos, preencheu um cheque da sua conta pessoal: preferia que o marido não soubesse. Mais que a maioria, a sra. Chase detestava o sentimento de perda; uma chave fora do lugar, uma moeda caída, despertavam sua consciência do roubo e das trapaças da vida. Sensação semelhante acompanhou-a quando entregou o cheque a Alice Severn. Esta, dobrando-o sem olhar para ele, enfiou-o no bolso do traje. Era um cheque de cinqüenta dólares,

"Querida", disse a sra. Chase, carrancuda com a falsa preocupação, "você tem de telefonar e contar como andam as coisas. Não deve se sentir solitária."

Alice Severn nem agradeceu, e na porta não disse "tchau". Em vez disso, segurou uma das mãos da sra. Chase e deu um tapinha nela, como se estivesse delicadamente recompensando um animal, um cachorro. Fechando a porta, a sra. Chase fitou sua mão, aproximou-a dos lábios. A sensação da outra mão ainda perdurava, e ela continuou ali, esperando que passasse: logo sua mão ficou bem fria de novo.

Truman Capote

domingo, 24 de agosto de 2014

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

ZION TRAIN - «Tubby's Garden»

OUTROS CONTOS

«Episódio do Inimigo», por Jorge Luís Borges.

«Episódio do Inimigo»
Conto de Jorge Luís Borges

246- «EPISÓDIO DO INIMIGO»

Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava na minha casa. Da janela o vi subir penosamente pelo áspero caminho do cerro. Ajudava-se com um bastão, com o torpe bastão em suas velhas mãos não podia ser uma arma, e sim um báculo. Custou-me perceber o que esperava: a batida fraca na porta. Fitei-o, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho interrompido e o tratado de Artemidoro sobre os gregos. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Temi que o homem desmoronasse, mas deu alguns passos incertos, soltou o bastão, que não voltei a ver, e caiu em minha cama, rendido. Minha ansiedade o imaginara muitas vezes, mas só então notei que se parecia de modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Deviam ser quatro da tarde.

Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse.

- Pensamos que os anos passam apenas para nós - disse-lhe -, mas passam também para os outros. Aqui nos encontramos, por fim, e o que aconteceu antes não tem sentido.

Enquanto eu falava, ele desabotoara o casaco. A mão direita estava no bolso do paletó. Assinalava-me algo e senti que era um revólver.

Disse-me então com voz firme:

- Para entrar em sua casa, recorri à compaixão. Agora o tenho a minha mercê e não sou misericordioso.

Ensaiei algumas palavras. Não sou um homem forte e só as palavras podiam salvar-me. Atinei a dizer:

- É verdade que há tempos maltratei um menino, mas você já não é aquele menino nem eu aquele insensato. Além disso, a vingança não é menos fátua e ridícula que o perdão.

- Justamente porque já não sou aquele menino - replicou-me - tenho de matá-lo. Não se trata de uma vingança, mas de um ato de justiça. Seus argumentos, Borges, são meros estratagemas de seu terror para que eu não o mate. Você não pode fazer mais nada.

- Posso fazer uma coisa - respondi.

- O quê? - perguntou-me.

- Acordar.

E foi o que fiz.

Jorge Luís Borges

sábado, 23 de agosto de 2014

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

ALASDAIR FRASER & NATALIE HAAS
«Josefin's Waltz»

OUTROS CONTOS

«A Dama do Lotação», por Nelson Rodrigues.

«A Dama do Lotação»
Sónia Braga no Papel de Dama do Lotação

245- «A DAMA DO LOTAÇÃO»

Às dez horas da noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi bater na casa do pai. O velho, que andava com a pressão baixa, ruim de saúde como o diabo, tomou um susto:

— Você aqui? A essa hora?

E ele, desabando na poltrona, com profundíssimo suspiro:

 — Pois é, meu pai, pois é!

— Como vai Solange? - perguntou o dono da casa. Carlinhos ergueu-se; foi até a janela espiar o jardim pelo vidro. Depois voltou e, sentando-se de novo, larga a bomba:

— Meu pai, desconfio de minha mulher.

Pânico do velho:

— De Solange? Mas você está maluco? Que cretinice é essa?

O filho riu, amargo:

— Antes fosse, meu pai, antes fosse cretinice.  Mas o diabo é que andei sabendo de umas coisas... E ela não é a mesma, mudou muito.

Então, o velho, que adorava a nora, que a colocava acima de qualquer dúvida, de qualquer suspeita, teve uma explosão:

— Brigo com você! Rompo! Não te dou nem mais um tostão!

Patético, abrindo os braços aos céus, trovejou:

— Imagine! Duvidar de Solange!

O filho já estava na porta, pronto para sair; disse ainda:

— Se for verdade o que eu desconfio, meu pai, mato minha mulher! Pela luz que me alumia, eu mato, meu pai!

«A Suspeita»

Casados há dois anos, eram felicíssimos. Ambos de óptima família. O pai dele, viúvo e general, em vésperas de aposentadoria, tinha uma dignidade de estátua; na família de Solange havia de tudo: médicos, advogados, banqueiros e, até, ministro de Estado. Dela mesma, se dizia, em toda parte, que era "um amor" ; os mais entusiastas e taxativos afirmavam: "É um doce-de-coco". Sugeria nos gestos e mesmo na figura fina e frágil qualquer coisa de extraterreno. O velho e diabético general poderia pôr a mão no fogo pela nora. Qualquer um faria o mesmo. E todavia... Nessa mesma noite, do aguaceiro, coincidiu de ir jantar com o casal um amigo de infância de ambos, o Assunção. Era desses amigos que entram pela cozinha, que invadem os quartos, numa intimidade absoluta. No meio do jantar, acontece uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Carlinhos.  Este curva-se para apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa, apenas isto: os pés de Solange por cima dos de Assunção ou vice-versa. Carlinhos apanhou o guardanapo e continuou a conversa, a três. Mas já não era o mesmo. Fez a exclamação interior: "Ora essa! Que graça!". A angústia se antecipou ao raciocínio. E ele já sofria antes mesmo de criar a suspeita, de formulá-la. O que vira, afinal, parecia pouco, Todavia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contacto asqueroso. Depois que o amigo saiu, correra à casa do pai para o primeiro desabafo. No dia seguinte, pela manhã, o velho foi procurar o filho:

— Conta o que houve, direitinho!

O filho contou. Então o general fez um escândalo:

— Toma jeito! Tenha vergonha! Tamanho homem com essas bobagens!

Foi um verdadeiro sermão. Para libertar o rapaz da obsessão, o militar condescendeu em fazer confidências:

— Meu filho, esse negócio de ciúme é uma calamidade! Basta dizer o seguinte: eu tive ciúmes de tua mãe! Houve um momento em que eu apostava a minha cabeça que ela me traia! Vê se é possível?!

«A Certeza»

Entretanto, a certeza de Carlinhos já não dependia de fatos objectivos. Instalara-se nele. Vira o quê? Talvez muito pouco; ou seja, uma posse recíproca de pés, debaixo da mesa. Ninguém trai com os pés, evidentemente. Mas de qualquer maneira ele estava "certo". Três dias depois, há o encontro acidental com o Assunção, na cidade. O amigo anuncia, alegremente:

— Ontem viajei no lotação com tua mulher.

Mentiu sem motivo:

— Ela me disse.

Em casa, depois do beijo na face, perguntou:

— Tens visto o Assunção?

E ela, passando verniz nas unhas:

— Nunca mais.

— Nem ontem?

— Nem ontem. E por que ontem?

— Nada,

Carlinhos não disse mais uma palavra; lívido, foi no gabinete, apanhou o revólver e o embolsou. Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. A adúltera precisa até mesmo das mentiras desnecessárias. Voltou para a sala; disse à mulher entrando no gabinete:

— Vem cá um instantinho, Solange.

— Vou já, meu filho.

Berrou:

— Agora!

Solange, espantada, atendeu. Assim que ela entrou, Carlinhos fechou a porta, a chave. E mais: pôs o revólver em cima da mesa. Então, cruzando os braços, diante da mulher atónita, disse-lhe horrores. 
Mas não elevou a voz, nem fez gestos:

— Não adianta negar! Eu sei de tudo! E ela, encostada à parede, perguntava:

— Sabe de que, criatura? Que negócio é esse? Ora veja!

Gritou-lhe no rosto três vezes a palavra cínica! Mentiu que a fizera seguir por um detective particular; que todos os seus passos eram espionados religiosamente. Até então não nomeara o amante, como se soubesse tudo, menos a identidade do canalha. Só no fim, apanhando o revolver, completou:

— Vou matar esse cachorro do Assunção! Acabar com a raça dele!

A mulher, até então passiva e apenas espantada, atracou-se com o marido, gritando:

— Não, ele não!

Agarrado pela mulher, quis se desprender, num repelão selvagem. Mas ela o imobilizou, com o grito:

— Ele não foi o único! Há outros!

«A Dama do Lotação»

Sem excitação, numa calma intensa, foi contando. Um mês depois do casamento, todas as tardes, saia de casa, apanhava o primeiro lotação que passasse. Sentava-se num banco, ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio ou bonito; e uma vez - foi até interessante - coincidiu que seu companheiro fosse um mecânico, de macacão azul, que saltaria pouco adiante. O marido, prostrado na cadeira, a cabeça entre as mãos, fez a pergunta pânica:

— Um mecânico?

Solange, na sua maneira objectiva e casta, confirmou:

— Sim.

Mecânico e desconhecido: duas esquinas depois, já cutucara o rapaz: "Eu desço contigo". O pobre-diabo tivera medo dessa desconhecida linda e granfa. Saltaram juntos: e esta aventura inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas outras. No fim de certo tempo, já os motoristas dos lotações a identificavam à distância; e houve um que fingiu um enguiço, para acompanhá-la. Mas esses anónimos, que passavam sem deixar vestígios, amarguravam menos o marido. Ele se enfurecia, na cadeira, com os conhecidos. Além do Assunção, quem mais?

Começou a relação de nomes: fulano, sicrano, beltrano... Carlinhos berrou: "Basta! Chega!". Em voz alta, fez o exagero melancólico:

— A metade do Rio de Janeiro, sim senhor!

O furor extinguira-se nele. Se fosse um único, se fosse apenas o Assunção, mas eram tantos! Afinal, não poderia sair, pela cidade, caçando os amantes. Ela explicou ainda que, todos os dias, quase com hora marcada, precisava escapar de casa, embarcar no primeiro lotação. O marido a olhava, pasmo de a ver linda, intacta, imaculada. Como e possível que certos sentimentos e actos não exalem mau cheiro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava: "Não sou culpada! Não tenho culpa!". E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se entregava e não ela mesma. Súbito, o marido passa-lhe a mão pelos quadris: — "Sem calça! Deu agora para andar sem calça, sua égua!". Empurrou-a com um palavrão; passou pela mulher a caminho do quarto; parou, na porta, para dizer:

— Morri para o mundo.

«O Defunto»

Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata, sapatos. Uniu bem os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim ficou. Pouco depois, a mulher surgiu na porta. Durante alguns momentos esteve imóvel e muda, numa contemplação maravilhada. Acabou murmurando:

— O jantar está na mesa.

Ele, sem se mexer, respondeu:

— Pela ultima vez: morri. Estou morto.

A outra não insistiu. Deixou o quarto, foi dizer à empregada que tirasse a mesa e que não faziam mais as refeições em casa. Em seguida, voltou para o quarto e lá ficou. Apanhou um rosário, sentou-se perto da cama: aceitava a morte do marido como tal; e foi como viúva que rezou. Depois do que ela própria fazia nos lotações, nada mais a espantava. Passou a noite fazendo quarto. No dia seguinte, a mesma cena. E só saiu, à tarde, para sua escapada delirante, de lotação. Regressou horas depois. Retomou o rosário, sentou-se e continuou o velório do marido vivo.

Nelson Rodrigues