«O Quarto Anjo», por José Eduardo Agualusa.
«O Quarto Anjo»
Fragmento de Jacó e o Anjo/ Paul Gauguin
1204- «O QUARTO ANJO»
Após criar o primeiro anjo, Deus ofereceu-lhe um poderoso
par de asas. Explicou-lhe que aquilo era mais um aparato de fé do que de voo.
– Os pássaros – assegurou-lhe – voam por convicção.
O anjo viu como voavam os pássaros, batendo as asas e
recolhendo as pernas, e imitou-os. Ao fim de cinco meses tinha ganho uma
certa prática e até já conseguia fazer algumas piruetas, incluindo voo picado
seguido de um duplo mortal invertido. Não era ainda uma águia, mas também não
poderia ser confundido com uma galinha. Enfim, voava.
– Agora tira-as. – Disse-lhe então Deus, que o observara, em
silêncio, a uma distância discreta, durante todos aqueles dias. – Tira as asas
e voa.
O anjo olhou para Ele incrédulo. Protestou:
– E eu lá sou doido, ó Deus?! Tiro porra nenhuma!
Deus, o qual, como se sabe, é brasileiro, não estranhou nem
que o anjo falasse português, nem sequer o forte sotaque carioca. A língua e o
sotaque, aprendera-as com Ele. Compreendeu, todavia, que lhe faltava o
essencial, a fé, além de uma educação um pouco mais esmerada, pois, bem vistas
as coisas, tratava-se de um anjo, ainda que numa fase de iniciação, e num
rápido gesto de enfado, descriou-o.
O segundo anjo era, sem dúvida, um sujeito mais cordato e
delicado. Muito loiro e frágil. Muitíssimo anjo. Tinha uma cabeleira
comprida, que gostava de trazer sempre limpa e entrançada, num gracioso
rabo-de-cavalo. Aprendeu a voar mais depressa do que o primeiro, com uma
técnica original, que deixava os pássaros envergonhados. Porém, quando Deus lhe
pediu que tirasse as asas e se lançasse assim, inteiramente nu, de um penhasco
altíssimo, também ele recusou.
– Ai Deus! Saiba o Senhor que isso eu não faço. Com o seu
perdão, faço qualquer coisa, qualquer coisa, entende?, faço qualquer coisa, mas
isso não faço, não.
Disse aquilo com voz trémula e humilde, sem sombra de
arrogância, de forma que o Criador se apiedou dele e o deixou ir. O anjo pintou
as asas de cor-de-rosa choque e juntou-se a um bando de flamingos. Dizem que
ainda hoje é possível ver, em certos crepúsculos inflamados, nalgum palude
perdido de África, um anjo voando, com singular elegância, entre uma nuvem de
flamingos. Voando e rindo. Eu nunca o vi, mas pode ser.
O terceiro anjo fê-lo Deus mais prático e destemido. Usava
um bigode curvo e era respeitoso e de poucas palavras. Voava sem esforço, mas
também sem agrado. Pousava nos ramos das mangueiras, ou de outras árvores
igualmente altas e frondosas, e era capaz de ficar por ali, sentado, tardes inteiras,
a cofiar o forte bigode, a comer mangas e a fruir a sombra fresca e o canto das
aves. Quando Deus lhe pediu que subisse ao penhasco e que tirasse as asas e
saltasse, não o contestou. Não disse nada. Voou até ao penhasco, tirou as asas
e saltou. Ficou claro, naquele trágico instante, que o que lhe sobrava em
disciplina faltava-lhe em fé. Ou melhor, como Deus lhe tentou explicar enquanto
ele caía, vertiginosamente, de encontro ao gume feroz das rochas, lá muito em
baixo, o problema é que colocara toda a sua fé no instrumento ao invés de a
colocar no objectivo. O impacto foi devastador.
O Senhor Deus ficou desgostoso com o novo desaire. Levou
muito tempo a recuperar-se. Por fim tentou de novo. Saiu-lhe, à quarta
tentativa, um anjo alegre, até um pouco simplório, que gostava sobretudo de
cantar e de dançar, artes, aliás, que ele próprio havia inventado. Para voar
não parecia possuir grande talento. Todavia, quando Deus lhe sugeriu que
tirasse as asas e tentasse voar sem elas, usando o esforço da fé, ele apenas
perguntou, atordoado:
– E é possível?
Depois largou as asas, espreitou o fundo abismo, fechou os
olhos, e imaginou que por dentro do seu corpo outras asas se desenrolavam e
batiam. Foi com essas, um tanto torto, um outro tanto tonto, que se ergueu no
céu.
Deus alegrou-se. Depois dele fez muitos outros anjos,
legiões e legiões, mas poucos, muito poucos foram capazes de imitar o número
quatro. Diz-se que esse anjo sem asas se passeia entre nós, como uma espécie de
agente secreto. Um observador num campo de batalha. Uma testemunha incógnita.
Provavelmente o anjo número dois é mais feliz.
José Eduardo Agualusa