«A Carta», por Vergílio Ferreira.
«Carta»
A Carta/ Johannes Vermeer
1121- «CARTA»
Eis que te procuro agora como nunca, te espero agora como
nunca. Se tu visses… A casa fica no meio das oliveiras e de um quintal de
verdura. O tempo não passa por ela distraído, e demora-se sempre um pouco.
Quando é pela primavera, há flores nas macieiras e pintainhos novos pelo pátio.
E quando é o Verão, há as manhãs solenes, e quando é o Outono, o ouro das
colheitas. Lembro essas manhãs e o brilho fresco da água pelas noites
sufocantes de Julho, e o frémito da terra na hora do recomeço. Meu pai, quando parti,
disse-me:
— Volta.
Minha mãe olhava-me em silêncio, dorida, e todavia serena
como se detivesse o fio do meu destino, ou soubesse, da sua carne, que tudo
estava certo com a vida: o nascer, o partir, o morrer.
— Volta — repetiu ainda meu pai.
Eis que volto, enfim, nesta tarde de Inverno, e o ciclo se
fechou. Abro as portas da casa deserta, abro as janelas e a varanda. No quintal
as ervas crescem com as sombras, as oliveiras têm a cor escura do céu. Em
baixo, no chão húmido ao pé da loja, há restos de ferragem enferrujada: um
sacho sem cabo, um aro de pipa, um regador. Meu pai amava a terra. Lembro-me de
o ajudar a podar o pequeno corrimão de videiras, de lhe ir encher o regador
para o cebolo novo. Minha mãe olhava-nos da varanda e os três sabíamos uns dos
outros no silêncio dos corações. Pensei, sofri, lutei. Mas de tudo o que
aconteceu é como se nada me tivesse acontecido. Alguém me incumbiu do que fiz,
muito antes de eu nascer, quando outros homens, outra gente, acabavam a tarefa
que eu havia de começar. Essa tarefa deixo-a aos que vierem depois. De tudo,
ficou-me apenas esta voz humilde que ouço, que ouço.
— Se voltares — tu o dizias.
Aqui estou. Acendo lenha no fogão e as chamas crescem como
uma memória antiga. Silêncio bom. Como outrora. Como quando nada tínhamos já a
dizer, e estávamos cheios, todavia, da presença um do outro. Estendo as minhas
mãos ao calor, e olho, e escuto. O lume enche-as de sangue, acende-as por
dentro como brasas. Tu dizias:
— Ninguém conhece as suas mãos. Só talvez as dos outros. É
bom ter as tuas aqui, com os dedos todos submissos.
Estranhas noites estas de Inverno, sem um rumor. Só os cães
ladram das quintas. Discutem pela noite fora até adormecerem. Ouço um já rouco,
lá nos confins da noite, agora a falar sozinho, decerto para ter a última
palavra. Houve um cão outrora cá em casa. Numa manhã de chuva, achámo-lo à
porta da cozinha, todo ensopado, a tiritar. Minha mãe não gostava de cães.
— Sujam tudo, roem tudo.
Enxuguei-o, dei-lhe pão, pus-lhe um nome. Minha mãe
resignou-se. Os caçadores levavam-no à caça porque tinha bom faro. Um dia, não
sei como, mataram-no com um tiro. Era um cão perdigueiro. Tinha um olhar
humano.
A chama apaga-se, a pirâmide de carvões desmorona-se. Os
cães adormecem enfim, sob o grande céu de estrelas. Não há lua. Nem vento. Só
as estrelas vibram no céu negro de veludo. Se tu viesses. Eu te imagino, desde
o fundo do meu cansaço, silenciosa e grave como esta hora final, como um apelo
obscuro vindo do abismo do tempo. Um halo de sombra coroa o teu olhar, a tua
presença é quente como o fluido da ternura. Tudo em vão, tudo em vão. Ou não
bem isso, não bem isso. Alguma coisa me ficara esperando talvez, desde antes e
antes, qualquer coisa que eu trazia do lado de lá da vida. Eis que a encontro e
me fala e floresce no sangue e procuro reconhecê-la na tua face. Aqui ao pé do
fogão há uma cadeira de braços. Minha mãe sentava-se nela, meu pai nesta em que
escrevo. Pelas noites de vento, olhavam o lume, deixavam-se adormecer… Tu
dizias:
— É bom terem já dito tudo e reconhecerem-se ainda.
Abro de novo a varanda para a noite, o ar gela-me a face
como um espelho. Ao fundo do quintal havia uma figueira grande. Minha mãe
franjeava xailes e cintas para fora. E eu atava as cintas e balouçava-me na
figueira.
— Ah, tu acabas por deitar a figueira abaixo. E já rompeste
duas cintas.
Numa noite brava de Inverno, a figueira caiu. E minha mãe
dizia sempre, daí em diante, que fora de eu me balouçar…
Tanta coisa aconteceu e eu recordo e eu recupero não talvez
na lembrança, não talvez, mas num apelo indistinto e longínquo e angustiante
como o silêncio desta noite. Olho ainda o frémito das estrelas sobre a aridez
fria da terra. E penso: «Qualquer coisa vai acontecer de misterioso e grande,
qualquer coisa miraculosa se anuncia como a vinda de um Deus.»
— Sim, a esperança é talvez a melhor parte da vida.
Tu o dizias. Eis que porém a minha esperança tem agora a cor
do cansaço e da resignação. E de tudo o que pensei e quis que brotasse da
terra, de tudo o que foi novo e me comoveu, da agitação do meu sangue, do
clamor com que fiquei rouco, da fúria, do choro, da alegria, de tudo o que me
deu a conhecer os meus dentes, os meus ossos, as minhas pobres vísceras — a
forma que se desenha e que me envolve agora tem o volume quente do seio da
piedade. Se amanhã quando me erguesse e pensasse que havia ainda um dia árido a
vencer, e outra noite, e outro dia, e quantos dias e quantas noites o tempo
guarda para mim, eu de manhã te encontrasse preparando o fogão e o aroma da
casa, e te sentasses nesta cadeira ao lado, e os dois nos esquecêssemos de
falar, até um dia, até um dia, e nos deixássemos enfim adormecer…
Vergílio Ferreira