«O Urso», por William Faulkner.
«O Urso»
Conto de William Faulkner
831- «O URSO»
Tinha dez anos. Mas aquilo já começara antes, muito antes do
dia em que – afinal – escreveu a idade com dois algarismos e viu pela primeira
vez o campo de caça onde seu pai, o Major Spain, o velho General Compson e os
outros passavam duas semanas todo mês de novembro e outras duas todo mês de
junho.
Então, já herdara deles – sem nunca o ter visto sequer – o
medonho urso da pata aleijada numa armadilha. O urso que, numa área de quase
cento e cinquenta quilómetros de circunferência, ganhara direito a um nome, a
um tratamento, como um homem.
Há muitos anos que ele ouvia a história, a lenda dos
celeiros roubados, de leitões e cevados, de vitelos levados inteiros para a
floresta e devorados; de armadilhas e fossos desfeitos e cães mutilados ou
mortos; de chumbadas de caçadeiras e até de carabinas atiradas quase à
queima-roupa com menos resultado do que se fosse um punhado de ervilhas atirado
por uma criança. Histórias de um corredor de ruína e destruição, que começava
antes do seu nascimento e através do qual corria, não muito depressa mas com a
deliberação implacável e irresistível de uma locomotiva, o vulto hirsuto e
medonho. O urso.
Já antes de ver o urso ele lhe surgia tal como era,
especialmente nos sonhos. Muito antes de ter sequer avistado os bosques onde o animal
deixava a sua pegada torta, era capaz de descrevê-lo, felpudo, enorme, de olhos
vermelhos, antes grande do que maldoso, grande demais para os cães que tentavam
acossá-lo, para os cavalos que tentavam derrubá-lo, para os homens e as balas
que o perseguiam, grande demais para a própria região a que estava limitado.
Parecia vê-lo inteiro, muito antes de ter visto a solidão selvagem e condenada,
de orlas constantemente e covardemente cortadas e roídas por homens com
machados e arados, que tinham medo dela por ser selvagem, homens que sem conta
e sem nome uns para os outros na região onde o próprio urso ganhara um nome.
Viu-o, mesmo, muito antes de imaginar a região através da qual corria não só um
animal mortal mas um sabe Deus o quê, indomável e invencível, vindo de um tempo
já morto; um fantasma, epítome e apoteose daquela vida selvagem que o enxame de
homens covardes lacerava numa fúria de ódio e de terror, como pigmeus em torno
das patas de um elefante sonolento, e sobre o velho urso solitário, indomável e
só, viúvo sem filhos e só, absolvido da mortalidade e só.
Até os dez anos de idade, quando chegava o mês de novembro,
o rapaz via o carroção com os cães, as camas, a comida, as armas, o pai, o
negro Jim da Tennie e o índio Sam Fathers (filho de uma escrava e de um chefe
de índios Chicksaw), todos partindo pela estrada para a vila, para Jefferson,
onde o Major e os outros se reuniam. No entender do rapaz, aos sete, oito e
nove anos, eles não iam ao Vale Fundo para caçar ursos ou veados. Iam para ter
um encontro com o urso, que nem sequer pensavam em matar. Tanto é que voltavam
após duas semanas de caça, sem troféus, sem peles nem cabeças. Nem ele esperava
por elas. Nem temia que o carroção trouxesse alguma coisa. Acreditava que
quando fizesse dez anos e o pai o levasse também à caça nas duas semanas de
novembro, ele seria apenas um dos participantes, com o pai, o Major e o General
Compson, com os outros, com os cães que tinham medo de o acossar e as
caçadeiras que nem sangue lhe faziam: seria mais um no cortejo anual de
homenagem à imortalidade do velho urso.
Até que ouviu os cães. Foi na segunda semana da sua primeira
caçada. Ficou parado ouvindo, com o Sam Fathers, de encontro a um enorme
carvalho, ao lado do cruzamento que vigiava já por nove manhãs. Ouvira-os já
uma vez antes disso, numa das manhãs da semana anterior. Ouvira um murmúrio que
ecoava pelos bosques molhados, crescendo em vozes separadas, possíveis de
reconhecer e chamar pelo nome. Levantou a arma com o dedo no cão – tal como Sam
ensinara – e de novo ficou imóvel, enquanto o alarido, a corrida invisível, se
aproximava, passava, morria ao longe. Quase lhe parecia ver o veado macho,
fulvo, cor de fumo, retesado pela velocidade, voando, desaparecendo, os
bosques, a solidão cinzenta ainda a vibrar mesmo depois da algazarra dos cães
ter desaparecido.
– Agora solte o cão – disse Sam.
– Você já sabia que eles não vinham pra´qui.
– Sabia. Quero que aprenda o que deve fazer quando não
disparar. É depois que se perde a oportunidade de atirar que acontecem
desastres aos homens e aos cães. Seja como for – disse depois – não passava de
um veado.
E agora, na décima manhã, ouviu outra vez os cães. Aprontou
a espingarda comprida e pesada – como Sam ensinara – ainda antes que o índio
desse ordem. Mas desta vez não havia veado, nem coro de cães a correr sobre um
rastro fácil. Era um latir fatigante, uma oitava acima, com qualquer coisa de
indeciso e até de abjeto; que parecia não se mover e levava tempo enorme para
ficar longe do alcance do ouvido. E que então deixava no ar um eco agudo,
levemente histérico, quase lamentoso, humano. Aquilo não podia ser a
perseguição a qualquer animal fugitivo, cor de fumo, herbívoro. E o Sam, que
lhe ensinara a armar a espingarda antes de mais nada, a tomar posição de onde
pudesse ver tudo e depois não se mexer nem bulir na espingarda, viera para o
lado dele. O rapaz ouvia o índio respirando sobre o seu ombro e via a curva
arqueada das narinas do velho.
– Ah – disse Sam – nem se dá ao trabalho de correr. Vem
andando.
– É o velho Ben – a voz do rapaz estava excitada. – Mas tão
aqui em cima?
– Faz isso todos os anos – disse o índio. – Uma vez.
Provavelmente para ver quem veio este ano, se é gente que sabe atirar ou não.
Para ver se já temos o cão capaz de acossá-lo e meter-lhe os dentes. Vai levar
os cães todos ao rio e depois mandá-los para trás.
O menino ficou ouvindo. Sam disse vamos voltar e depois
disse, mais para si próprio:
– Vai ver o aspecto deles, quando chegarem de volta ao
acampamento.
Quando chegaram ao acampamento os cães já estavam lá, dez
deles, encolhidos atrás da cozinha. O rapaz e o índio acocoraram-se para
espreitar na escuridão onde estavam amontoados, silenciosos, de olhos
reluzentes que acendiam e apagavam. E nem um único som. Só aquele
pressentimento de qualquer coisa mais forte do que um cão e não apenas um
animal ou fera. Nada houvera diante daquele latir abjeto e quase doloroso senão
a solidão selvagem.
E quando o undécimo cão chegou, ao meio-dia, todos olharam,
até o velho tio Ash – que se dizia cozinheiro antes de mais nada. E Sam
tratou-o com terebentina e massa de untar os eixos, passando mãos cheias na
orelha em tiras e na espádua. E para o rapaz, o autor de tudo aquilo continuou
a ser a solidão selvagem que castigara com uma pancada leve a temeridade do
cão. Aquilo não parecia obra de uma criatura viva, mortal.
– Tal e qual um homem – disse Sam. – Tal e qual. Foi
demorando, demorando o mais possível, adiando a ocasião de ter coragem, sabendo
perfeitamente que mais tarde ou mais cedo teria de ganhar coragem para poder
continuar merecendo o nome de cão; e sabendo antecipadamente o que lhe
aconteceria, quando a coragem chegasse.
Nessa tarde, montado na mula caolha do carroção, que não se
importava com o cheiro de sangue (nem, como lhe contaram, com o dos ursos), e
com Sam ao lado montado na outra, cavalgaram durante mais de três horas naquele
dia de inverno. Não seguiram nenhuma senda, nenhum atalho que ele percebesse.
Em pouco tempo estavam num lugar desconhecido para eles. Então, compreendeu
porque é que Sam lhe dera a mula menos espantadiça. A outra parou, tentou
voltar a fugir. Mesmo quando o índio desceu e agarrou as rédeas, bem curto, ela
continuou bufando, puxando, querendo voltar. Sam incitava a mula a correr,
gritando com ela, porque não queria arriscar amarrá-la.
Finalmente, ela
avançou, bufando sempre. O rapaz não teve dificuldade com a sua, mas também
desceu e segurou as rédeas, curto.
De pé, ao lado de Sam, no escuro da tarde que morria, olhos
no tronco apodrecido e virado, estripado e riscado de marcas de garras, o rapaz
viu na terra molhada, ao lado, a pegada da enorme pata de dois dedos, torta.
Agora sabia que cheiro sentira quando fora olhar os cães encolhidos debaixo da
cozinha. Pela primeira vez compreendeu que o urso que via antes, que aparecia
nos seus sonhos desde que se conhecia como gente e que devia ter existido antes
nos sonhos do pai, do Major e até do velho General Compson, que esse urso era
um animal mortal. E que – pensou – se eles tinham partido todos os anos no mês
de novembro para a caçada sem esperanças de voltar com o troféu, não era porque
este não pudesse ser abatido, mas porque até aqui eles não tiveram ainda
verdadeiras esperanças de caçá-lo.
– Amanhã – disse ele.
– Tentaremos amanhã – emendou Sam. – Mas ainda não temos cão.
– Temos onze. Contamos esta manhã.
Só é preciso um. Mas não está aqui. Talvez não esteja em
parte alguma. A única maneira é ele dar de cara, por acidente, com alguém que
esteja armado.
– Não seria comigo. Seria o Walter, ou o Major, ou…
– Podia ser – disse o índio. – Amanhã tenha muito cuidado.
Porque ele é matreiro. É por isso que ainda não morreu. Se estiver cercado e
tiver de escolher alguém a quem atacar, escolherá você.
– Por quê? – perguntou o rapaz.
– Como é que ele vai saber… Você quer dizer que ele já me
conhece, sabe que é a primeira vez que venho, que ainda não tive tempo de… –
parou novamente e olhou para Sam bem nos olhos. O rosto do velho nada revelava,
a não ser quando sorria. Depois disse humildemente, sem espanto algum: – Foi a
mim que ele veio observar. E não foi preciso vir aqui mais de uma vez, não é?
Na madrugada seguinte saíram do acampamento três horas antes
de amanhecer o dia. Desta vez foram montados, porque era muito longe para ir a
pé. Até os cães foram na carripana. Mais uma vez o nascer do dia cinzento o
surpreendeu em um lugar que nunca vira antes. Sam indicou o lugar onde devia
ficar, e depois o deixou. Com a espingarda na mão – a espingarda que era grande
demais para ele porque não era dele e sim do Major, e que apenas disparara uma
vez, num cepo, no primeiro dia, para conhecer o coice e aprender a carregá-la –
encostou-se a uma árvore-de-borracha, ao lado de um riacho cuja água negra e
tranquila escorria sem ruído através de um canavial, atravessava uma aberta e
se metia outra vez entre as canas onde, invisível, um pássaro (o enorme
pica-pau que os negros chamam senhor-pra-deus) matraqueava num tronco morto.
Era um posto como qualquer outro, apenas incidentalmente
diferente do que ocupara todas as manhãs durante dez dias. Um território novo
para ele e, no entanto, tão estranho quanto esse outro que, ao fim de duas
semanas começara a acreditar que conhecia ligeiramente. O mesmo isolamento, a
mesma solidão que seres humanos apenas atravessaram sem alterar, sem deixar
marcas, nem cicatrizes, que se mantinha exatamente como a devia ter encontrado
no primeiros dos antepassados índios de Sam, ao chegar e olhar em volta, de
cacete ou machado de pedra, ou zagaia de osso em punho. Diferente apenas
porque, acocorado ao pé da cozinha, sentira o cheiro dos cães encolhidos e
acovardados diante dela. E porque vira em tiras a espádua e a orelha do que
fora obrigado a ter coragem para merecer (segundo Sam) o nome de cão. E porque,
na véspera, vira na terra úmida ao lado do tronco riscado, a marca da pata.
Não ouviu os cães. Não chegou a ouvir o latido deles. Ouviu
apenas o matraquear do pica-pau parar de repente. E soube que o urso estava
olhando para ele. Não chegou a vê-lo. Não podia saber se ele estava à sua
frente ou nas costas. Não se mexeu. Nas mãos a inútil espingarda, que nem
sequer armara e que agora não valia a pena armar, sentindo na saliva aquele
travo metálico que conhecia agora porque sentira o cheiro do urso quando
espreitara os cães encolhidos debaixo da cozinha.
Depois, foi-se embora. Tão repentinamente como se
interrompera, o martelar seco e monótono do pica-pau recomeçou. E depois de
algum tempo o rapaz pensou que ouvia os cães, mas só pensou, sem ouvir. Vinha
da floresta um murmúrio, quase que nenhum ruído, mas de repente aquele ruído
encheu a floresta até o alcance do ouvido do rapaz e de novo se afastou,
morrendo ao longe.
Não se aproximaram dele. Se era um urso o que perseguiam,
seria outro urso.
Sam saiu do canavial e atravessou o riacho, seguido pelo cão
ferido na véspera. O bicho vinha sem fazer barulho, quase rastejando, como um
perdigueiro. Veio e agachou-se junto à perna de Sam, tremendo, os olhos bem
abertos para o canavial.
– Não o vi. – disse o rapaz; e repetiu – não o vi, Sam.
Sua voz não tremia, mas havia um tom estranho, emocionado.
Sam respondeu, calmo:
– Eu sei. Quem veio aqui foi ele mesmo. E você nem pode
dizer de que lado ele veio, não é?
– Não, eu…
– Ele é matreiro – explicou Sam – matreiro demais.
Olhou para o cão, que tremia fraca e continuamente junto ao
joelho do rapaz. Da espádua retalhada escorriam algumas gotas de sangue fresco.
Tornou a falar:
– É grande demais. Ainda não temos cão para ele. Talvez um
dia, e não acredito que seja ainda na próxima primavera. Mas um dia…
Então, tenho de ver esse bicho, tenho de vê-lo, pensou o
rapaz.
Se, pelo menos, visse o urso… Porque se não visse, parecia a
ele que aquilo continuaria sempre como continuara com o pai e o Major (que era
mais velho do que o pai), e até com o velho General Compson (que em 1865 já
tinha idade suficiente para comandar uma brigada). Se não o visse agora, aquilo
continuaria sempre da mesma maneira, na próxima vez e na seguinte, e depois, e
depois, e depois. Não queria admitir ele próprio e o urso mergulhados no limbo
de onde emergia o tempo, tornando-se eles próprios tempo: o velho urso,
absolvido da mortalidade, e ele, partilhando um pouco, bastante, dessa
absolvição. E agora sabia qual era aquele cheiro dos cães encolhidos e aquele
travo na saliva. Reconhecia o medo. Tenho de ver esse bicho, tenho de ver,
pensou de novo. Sem medo mas sem muita esperança.
Foi em julho do ano seguinte. Tinha onze anos. Estavam outra
vez no acampamento, festejando os aniversários do Major e do General Compson.
Embora o primeiro tivesse nascido em setembro e o outro pertinho do inverno e
dez anos depois, encontravam-se sempre durante duas semanas para pescar, atirar
aos esquilos e ao peru selvagem e perseguir com os cães, à noite, os texugos e
os gatos bravos. Isto é: o rapaz, mais Boon Hogganbeck e os negros é que faziam
isso; não só o Major e o General (que passavam as duas semanas sentados numa
cadeira de balanço, diante de uma enorme panela de ferro, mexendo e provando e
discutindo com o velho Ash a melhor maneira de fazer a panelada, e vendo o Jim
da Tennie passando aguardente do garrafão para a caneca de lata e da caneca de
lata para o estômago), mas até o pai e o Walter Ewell, que ainda eram bastante
moços, desdenhavam esses passatempos e apenas atiravam aos perus selvagens para
fazer apostas de pontaria.
Ou, pelo menos, o pai e os outros julgavam que ele ia à caça
dos esquilos. Até o terceiro dia pensou que o Sam Fathers também o julgava.
Saía do acampamento todas as manhãs logo depois do almoço, agora, com a sua
própria espingarda, presente de Natal. Voltou à árvore da beira do riacho, onde
estivera naquela manhã. Olhando a bússola que o velho General Compson lhe dera,
partiu deste ponto, em círculos. Sem saber, estava aprendendo a ser um batedor
melhor do que o vulgar. No segundo dia encontrou até o tronco gadanhado onde
vira pela primeira vez a pegada torta. A madeira estava agora quase
completamente desfeita. E voltara com inacreditável rapidez e um abandono
apaixonado e quase visível para a terra que dera origem à árvore.
Percorria agora os bosques de verão, verdes e frondosos (se
havia diferença era por causa da obscuridade maior do que a nebulosidade
cinzenta de novembro). O sol, mesmo quando estava a pino, apenas salpicava a
terra aqui e ali, que nunca secava por completo e por isso vivia coberta de
serpentes: cobras-d´água, mocassins, cascavéis, todas da cor da sombra malhada
e que portanto ele nem sempre via, a não ser quando se moviam, se se moviam. E
cada vez ele voltou mais tarde. No terceiro dia, ao passar ao crepúsculo pela
pequena estacaria que cercava o estábulo de madeira onde Sam dava guarda aos
cavalos, preparando-os para a noite, o índio disse:
– Ainda não procurou como deve ser.
Parou. Durante um momento não respondeu. Depois, calmamente,
cedendo pacificamente como aquelas represas em miniatura que as crianças fazem
nos riachos, disse:
– Fui até a árvore. Cheguei a encontrar outra vez aquele
tronco. Eu…
– Acho que fez bem. Se calhar, ele tem até andado a
espiá-lo. Não viu a pegada dele?
– Não – confessou o rapaz – não vi. Não pensei…
– É a arma – explicou Sam.
Parou ao lado da sebe; imóvel, o velho, o índio de ganga
desbotada e puída e com o chapéu de palha de cinco cêntimos que fora a marca da
escravidão da raça negra e agora era a insígnia de sua liberdade, estava
olhando firme. O acampamento, o terreno desbravado, a casa, o barracão, e o seu
pequeno equipamento com que o Major esgravatava de leve a solidão selvagem,
tudo se dissolvia no crepúsculo, voltando à escuridão imemorial da floresta.
A arma, a arma – pensou o rapaz.
– Assuste-se – disse o índio. – Isso não se pode evitar. Mas
não tenha medo. Não há bicho nenhum na floresta que nos possa fazer mal, desde
que não esteja cercado ou que não fareje que estamos com medo. Um urso ou um veado,
tal qual como um homem corajoso, precisam do medo dos covardes.
A arma, a arma – pensou o rapaz.
– Você tem de escolher – disse Sam.
Deixou o acampamento antes de nascer o dia, muito antes de
tio Ash acordar nos seus cobertores do chão da cozinha e acender o fogo para
fazer o almoço. Levou só a bússola e a vara para as serpentes. Sabia o caminho
até um quilômetro antes de precisar da bússola. Sentou-se num cepo, com a
invisível bússola na mão (também ainda invisível), enquanto os ruídos secretos
da noite – interrompidos com os seus movimentos – de novo se esgueiravam e se
interrompiam de vez. E os mochos se calaram para dar lugar ao despertar dos
pássaros da manhã. Ah, já vi a bússola. Continuou rápida e silenciosamente a
caminhada. Conhecia cada vez melhor a floresta, mas não tinha consciência
disso.
Ao nascer, o sol levantou um veado e a fêmea, fazendo-os
sair da cama. Ficaram a uma distância curta, e ele viu bem até o reflexo nos
olhos deles, e ouviu o barulho que os rabinhos brancos faziam batendo no mato.
Depois viu a fêmea saltar e o veado saltar atrás dela mais velozmente do que
julgara possível. Batia a floresta na direcção devida, contra o vento, como Sam
ensinara. Não era que isto agora tivesse alguma importância. Abandonara a
espingarda. De sua própria vontade e resolução não aceitaria compromissos,
escolhas, mas sim uma condição em que tinham sido anulados não só o até agora
inviolável anonimato do urso como todas as antigas regras e vantagens do
caçador e da presa.
Não teria medo, nem mesmo no momento em que o terror o
tomasse por completo, sangue, pele, entranhas, ossos, memória da eternidade
antes de se tornar memória sua – tudo, menos a lucidez aguda, clara, imortal,
que o distinguia daquele urso e de todos os outros ursos e veados que havia de
matar com a humildade e o orgulho da sua perícia e resistência. A lucidez a que
Sam se dirigira quando se encostara à estacaria, na véspera, à boca da noite.
Ao meio-dia ultrapassara de muito o pequeno riacho. Nunca
penetrara até tão longe na região nova e desconhecida. Já não caminhava só pelo
velho relógio de prata, pesado, volumoso, que pertencera ao avô. Quando
finalmente parou, foi a primeira vez que o fez depois de se ter levantado, de
madrugada, do tronco em que estivera sentado quando consultara a bússola.
Estava bastante longe. Saíra do acampamento fazia nove horas. Dali a nove horas
a noite teria caído há uma hora. Mas não pensava nisso. Pensou: “Bom; está bem;
mas então?” E parou durante um momento, parecendo estranho e minúsculo no meio
da solidão verde e sobranceira, respondendo à própria pergunta antes de ela se
ter formulado e terminado. Era o relógio, a bússola, a vara – os três aparelhos
inanimados que durante nove horas ele usara contra a solidão selvagem. Pendurou
cuidadosamente o relógio e a bússola num arbusto, encostou o pau ao lado deles
e entregou-se completamente a ela.
Durante as últimas duas ou três horas não caminhara muito
depressa. Não andava mais depressa agora, já que a distância não tinha
importância. E estava tentando não perder o rumo da árvore em que deixara a
bússola, procurando descrever um círculo que o fizesse voltar a ela ou, pelo
menos, se interceptasse a si próprio, já que a direção não tinha importância
agora. Mas não encontrou a árvore, e fez o que Sam lhe ensinara: descreveu novo
círculo na direção oposta, para que os dois percursos se interceptassem mais
longe. No entanto, não cruzou as suas próprias pegadas e acabou encontrando a
árvore mas num lugar errado, sem o arbusto, a bússola, o relógio; e nem a árvore
era a mesma, porque ao lado dela havia um cepo baixo. Fez o que Sam Fathers lhe
ensinara a fazer em seguida e em último lugar.
Ao sentar-se no cepo viu a pegada torta, o medonho corte
aleijado que se enchia de água, mesmo diante dos seus olhos. Quando olhou para
cima a solidão uniu-se, solidificou-se, e a clareira, a árvore procurada,
o arbusto, o relógio, a bússola, refulgiam batidos por um raio de sol.
E viu então o urso.
Não apareceu de parte alguma: estava ali, simplesmente
imóvel, sólido, firmado nas manchas quentes da tarde verde e sem brisa, não tão
grande como o sonhara, mas tão grande como esperava, desmedido, recortado na
obscuridade pintalgada, olhando para o rapaz que, sentado no cepo, lhe devolvia
o olhar.
Depois moveu-se. Não fez barulho. Não se apressou.
Atravessou a clareira caminhando durante um instantinho sob a luz crua do sol.
Quando chegou ao outro lado parou outra vez e olhou-o por cima do ombro,
enquanto o rapaz, no seu respirar tranquilo, inspirou e expirou três vezes.
E desapareceu.
Não caminhou para a floresta, para o mato. Desvaneceu-se,
voltou a dissolver-se na solidão, como um peixinho que o rapaz vira um dia
afundar-se e desaparecer na fundura negra da lagoa sem um único movimento das
barbatanas.
Será no próximo outono – pensou.
Mas não foi no próximo outono, nem no seguinte, nem no
outro. Tinha então 14 anos. Matara o seu primeiro veado e Sam Fathers
marcara-lhe a cara com o sangue; e no ano seguinte matou um urso. Mas já antes
disso tornara-se tão competente na floresta como muitos adultos que tem
experiência. Num raio de 50 quilómetros, a partir do acampamento, não havia
território que não conhecesse, riacho, outeiro, árvore ou atalho. Era capaz de
conduzir qualquer pessoa a qualquer ponto sem hesitação, e trazê-la de volta. Conhecia
pistas de caça que nem mesmo Sam Fathers conhecia. Aos 13 anos descobrira a
cama de um veado, às escondidas do pai pediu a carabina a Walter Ewell,
deitou-se à espera de o sol raiar e matou o veado quando ele voltava à cama,
pois Sam lhe contara como faziam os velhos índios Chicksaw.
Mas não o urso velho. Embora agora já lhe conhecesse melhor
as pegadas do que as suas próprias, e não só a pegada da pata aleijada. Quando
via uma das outras três era capaz de reconhecê-la imediatamente. Não só pelo
tamanho – havia outros ursos dentro desses 50 quilómetros, capazes de deixar
marcas tão grandes – era mais do que isso.
Se Sam Fathers fora o seu aio e os coelhos e esquilos do
quintal da casa o seu jardim de infância, então a solidão selvagem percorrida
pelo velho urso era para ele o colégio e o próprio urso velho, há tanto tempo
viúvo e sem filhos que se tornara o ingénito pai dele próprio, a sua
universidade. Mas nunca mais vira o urso.
Sabia agora encontrar a pegada torta quase sempre que bem
entendesse, a vinte, quinze ou dez quilómetros, e por vezes nesses três anos,
enquanto esperava, ouvira os cães na pista do urso, por acaso. Na segunda vez
pareceram seguir a pista, ladrando alto, abjectamente, quase humanos de
histerismo, como naquela primeira manhã de dois anos atrás. Mas nunca o urso.
Lembrava-se daquela tarde de três anos atrás, a clareira, ele, o urso, imóveis
na terra pintalgada e quieta; e parecia-lhe que aquilo nunca acontecera, que
também aquilo fora sonho. Mas tinha acontecido. Tinham-se olhado, emergidos
daquela solidão velha como a terra, sincronizados naquele instante por qualquer
coisa mais forte do que a carne e os ossos que os envolviam. E tinham tocado,
afiançado e afirmado qualquer coisa mais duradoura do que a frágil teia de
ossos e carne que um breve acidente podia destruir.
Até que tornou a vê-lo.
Precisamente pelo fato de não pensar noutra coisa, já se
esquecera de procurar por ele. Andava ainda com a carabina de Walter Ewell: viu
o urso atravessar o fundo de um comprido túnel, corredor que um tornado
varrera, atravessando mais por entre a rede de troncos e ramos do que correndo
sobre eles, como faria uma locomotiva, correndo com uma rapidez de que nunca o
julgara capaz, quase tão depressa como um gamo, porque um gamo passaria a maior
parte daquele tempo no ar; mais rápido do que faz uma pessoa para acertar as
miras da carabina. E compreendeu então qual fora o seu erro durante aqueles
três anos. Sentou-se num cepo, vacilante e trêmulo, como se nunca tivesse visto
a floresta, nem o que havia dentro dela, perguntando a si mesmo, com um espanto
incrédulo, como pudera ter esquecido o que o velho índio lhe dissera e o urso
confirmara no dia seguinte e voltara a reafirmar agora, depois de passados três
anos.
Agora sim, compreendia o que lhe disseram Sam Fathers a
respeito do cão necessário, de um cão em que a importância não estava no
tamanho. E quando sozinho em abril (não havia escola nessa altura: os filhos
dos lavradores trabalhavam no cultivo da terra e o pai dera-lhe, finalmente,
licença, com a condição de voltar em quatro dias), quando voltou, tinha o cão.
Era dele o animal, um rafeiro da espécie que os negros chamavam fyce, caçador
de ratos, ele próprio não muito maior do que um rato e possuidor daquela
valentia que há muito tempo deixara de ser coragem para ser temeridade.
Não precisou de quatro dias. De novo sozinho encontrou a
pista, na primeira manhã. Não era uma cilada; antes uma emboscada. Contou o
tempo do encontro quase como se se tratasse de um compromisso com um ser
humano. Na madrugada seguinte foram à pista, contra o vento; ele agarrando no
rafeiro amordaçado com uma saca e o Sam Fathers com dois cães amarrados por um
bocado de corda. Chegaram tão perto dele que o urso voltou sem correr – como se
estivesse surpreendido pelo alarido agudo e frenético do rafeiro solto –
voltando-se em defensiva, encostado ao tronco de uma árvore, plantado sobre as
patas traseiras. O rapaz pensou que ele nunca mais acabaria de se erguer, de
tão alto. E até os dois cães pareceram ganhar uma coragem desesperada ao
acompanharem o rafeiro que ia na corrida.
Só aí o rapaz compreendeu que o cão não ia parar. Saltou,
atirou fora a arma e correu. Quando alcançou e agarrou o rafeiro, que rodopiava
freneticamente tentando escapar, pareceu-lhe que estava debaixo dos pés do
urso. Sentia o cheiro muito forte, quente, espesso, do urso. Agachado, levantou
os olhos para o vulto que se elevava sobre ele, alto, forte e pesado como uma
carga de chuva e escuro como uma trovoada, familiar, tranquila e até
lucidamente familiar; até que se lembrou: fora assim que sempre sonhara com
ele.
Depois, desapareceu. Não o viu desaparecer. Ajoelhou-se
agarrando com as mãos o rafeiro frenético, ouvindo o vergonhoso latir dos cães
a afastar-se ao longe. Até que Sam veio para perto dele.
– Esta é a segunda vez que o urso vê você com uma espingarda
na mão. Desta vez não podia ter falhado o tiro.
O rapaz levantou-se, ainda agarrando o rafeiro. Mesmo nos
seus braços e longe do chão o animal gania furiosamente, aos puxões e repelões
para seguir o alarido longínquo dos dois cães, como um feixe de molas de aço. O
rapaz ofegava ligeiramente, mas desta vez não vacilava nem tremia.
– E não disparaste – disse o pai, espantado. – A que
distância estavas?
– Não sei, pai. Vi uma grande cicatriz na perna direta do
bicho. Isso vi. Mas então não tinha a espingarda.
– E quando tinhas a espingarda também não fizeste fogo. Por
quê?
Mas o rapaz não respondeu. E o pai não esperou que ele
respondesse. Atravessou o quarto por cima da pele do urso que o filho matara há
dois anos e da pele do outro maior que ele próprio matara antes de o seu filho
ter nascido; atravessou o quarto e foi em direcção à estante que ficava por
baixo da cabeça embalsamada do primeiro veado que o moço abatera. O pai chamava
aquele quarto de escritório e era ali que tratava todos os negócios da
plantação. Fora ali que o rapaz, aos 14 anos de idade, ouvira as mais
interessantes de todas as conversas. O Major ia lá e às vezes o velho General
Compson também; e Walter Ewell, Boon Hogganback, Sam Fathers e o Jim da Tennie,
que eram caçadores, conheciam os bosques e toda a caça que havia neles.
O rapaz ouvia a conversa, sem falar nem um pouquinho, mas à
escuta. E a conversa era a solidão selvagem, a enorme floresta, maior e mais
velha do que qualquer documento dos brancos, convencidos vaidosamente de que
tinham comprado parte dela, maior e mais velha do que qualquer documento dos
índios, inflexivelmente convencidos de que alguma vez tinham transmitido parte
dela. Mas a floresta pertencia aos homens, não brancos nem negros ou vermelhos,
mas simplesmente aos homens, aos caçadores com vontade e audácia para resistir
e a humildade para sobreviver; e aos cães e aos ursos e aos veados justapostos
e aliados contra ela, ordenados e impelidos pela solidão, na luta antiquíssima
e inadiável regida por antiquíssimas e inatingíveis regras que anulavam o
remorso e não permitiam quartel. As vozes eram tranquilas, graves, deliberadas
pela retrospecção, pela recordação, pela lembrança exata, enquanto ele se
acocorava ao pé do fogo com o Jim da Tennie, que só se metia para jogar mais
lenha e passar a garrafa de uns copos para os outros. Porque a garrafa estava
sempre presente: o passado um bocado parecia-lhe que aqueles duros instantes de
ânimo, esperteza, coragem, astúcia, rapidez, se concentravam naquele líquido
escuro que as mulheres, os rapazes, as crianças não bebiam, só os caçadores,
bebendo nele o sangue derramado, mas uma condenação do espírito mortal e
ardente, bebendo-o moderada, humildemente até, não com a baixa esperança do
pagão de obter as virtudes da astúcia, da força e da velocidade, mas em
saudação a elas.
O pai voltou com o livro, sentou-se de novo, começou a abrir
as páginas.
– Escuta. – disse ele. Leu alto as cinco estâncias, com a
sua voz calma e ponderada, enchendo o quarto em que não havia fogo porque era
primavera. Depois levantou os olhos. O rapaz observava.
– Bem. – disse o pai – escuta.
Tornou a ler, mas desta vez só a segunda estrofe, até o fim,
até aos dois últimos versos. E fechou o livro, colocando-o a seu lado, na mesa.
– “Ela não pode morrer, embora tu não consigas ser feliz
como pretendes; eternamente a amarás e ela será bela” – repetiu.
– Ele fala de uma moça – disse o rapaz.
– De alguma coisa tinha de falar – respondeu o pai. E
acrescentou: – Falava da verdade. A verdade é eterna. A verdade é só uma.
Abrange todas as coisas sobre a terra. A honra, o orgulho, a piedade, a
justiça, a coragem, o amor. Compreendes agora?
O rapaz não sabia bem. Talvez tudo fosse mais simples do que
aquilo. Havia um velho urso, duro e implacável, não apenas para continuar a
viver, mas com o feroz orgulho da liberdade e da independência, suficientemente
orgulhoso para não sentir medo ou alarma ao vê-las ameaçadas. Mais: que “algumas
vezes, parecia até arriscar deliberadamente essa liberdade e independência para
melhor saborear, para incitar os seus fortes e velhos ossos e a carne a
manterem-se ágeis e capazes de as defender e conservar”.
Havia um velho, filho de uma escrava negra e de um rei
índio, herdeiro, por um lado, de um povo que aprendera a humildade no
sofrimento e a dignidade nessa resistência que sobrevive ao sofrimento e à
injustiça; e, pelo outro lado, da história de outro povo, mais antigo sobre
aquela terra do que o primeiro, mas que já não existia sobre ela senão na
fraternidade solitária do sangue estranho de um negro e do espírito selvagem e
invencível de um urso velho.
Havia um rapaz que queria aprender a humildade e o orgulho
para poder tornar-se destro e digno da floresta, mas que estava-se adestrando
tão rapidamente que temia não chegar nunca a tornar-se digno, por não ter
aprendido essa humildade e orgulho (embora tivesse tentado aprender), até que
um dia, de repente, descobriu que um velho incapaz de definir qualquer das duas
coisas o levara pela mão àquele ponto em que o urso velho e um cãozinho lhe
haviam revelado que, possuindo outra, possuiria ambas.
E havia um cãozinho, anónimo, sem raça, filho de todos,
adulto mas com menos de dois quilos e meio de peso, como que dizendo para si:
“Não posso ser perigoso, porque nada há muito mais pequeno do que eu; não posso
mostrar fúria porque diriam que é um ruído sem importância; não posso ser
humilde porque já estou demasiadamente próximo do chão para poder ajoelhar; não
posso ser orgulhoso, porque estaria demasiadamente longe dele para ser possível
ver quem produzia a sombra; e nem sequer sei que não vou para o céu, porque já
está decidido que a minha alma não é imortal. Só me resta, portanto, ter
coragem. Mas está bem. Terei coragem, mesmo que digam que é um ruído sem
importância”.
E pronto. Era simples, muito mais simples do que um homem,
num livro, falar da juventude de uma moça por quem nunca precisaria se afligir,
porque nunca lhe seria possível aproximar-se mais dela, ou necessário
afastar-se. Ouvira falar de um urso, acabara por ter idade para perseguir o
urso e por fim, com uma espingarda nas mãos, encontrara o velho urso e não
disparara.
Porque um cãozinho… Mas podia ter disparado muito antes de o
cãozinho ter corrido os trinta metros até ao urso que esperava; e o Sam Fathers
podia ter disparado em qualquer momento durante aquele interminável instante em
que o velho Ben estivera em cima deles, de pé nas patas traseiras.
Interrompeu-se. O pai observava-o gravemente através do
maduro crepúsculo primaveril do quarto. Quando falou, as palavras foram tão
calmas como o crepúsculo; não muito altas, porque seriam duradouras.
– Coragem, honra, dignidade – disse o pai – piedade, amor da
justiça e da liberdade. Tudo isso toca o coração; e o que o coração aceita
torna-se verdade até onde é possível conhecê-la. Compreendes agora?
O Sam, o velho Ben e o Nip, pensou o rapaz. E ele próprio
também tivera razão – o pai assim o dissera.
– Sim, pai. – disse ele.
William Faulkner