«Ave César! Io Saturnália!»
Pintura de Lawrence Alma-Tadema (1880)
ANO NOVO: VIDA NOVA!
Análises históricas apontam a Saturnália romana como
raiz das comemorações de fim de ano atuais. Esses rituais envolviam um
clima festivo de libertação da ordem social, de inversão das relações
hierárquicas, de intensa troca de banquetes, visitas e presentes.
Janeiro é um mês propício para tratar do sentido das complexas
práticas que nos acompanham nas chamadas festas de fim de ano. O Natal e a
festa do réveillon são o ponto alto de um ciclo mais amplo de rituais em que a
grande questão da fugacidade do tempo é tematizada.
Os nascimentos de Cristo e do Ano Novo são a face benfazeja
de uma inquietação mais ampla com a continuidade da vida, que se pode
considerar iniciada em fins de outubro e princípios de novembro, com o
Dia das Bruxas (Halloween) e o Dia dos Mortos, passando pelo Dia de São Nicolau
e pelo Dia de Reis e se estendendo até o carnaval e a consequente quaresma.
É forte o simbolismo cristão no nível mais explícito desse
longo ciclo, mas a sequência se alimenta de outras fontes de significado,
algumas de muito longo curso histórico, outras bem mais recentes.
São muitas as análises históricas que sublinham o
enraizamento dessas comemorações nos rituais da Saturnália romana, ocupadas pelo
cristianismo com a nova referência simbólica do nascimento do Deus
Filho. Esses rituais eram os mais intensos do ciclo anual romano, envolvendo um
clima festivo de liberação da ordem social, de inversão das relações
hierárquicas, de intensa troca de banquetes, visitas e presentes.
A celebração se estendia ao longo de dezembro e antecedia
imediatamente o dia do solstício de inverno (no hemisfério norte), considerado
o Dies Natalis do Sol Invictus (o dia de nascimento do sol invicto),
início do novo ano, em cuja homenagem se acendiam numerosas velas de cera.
Algumas das características dessa celebração ainda se
encontram em nosso próprio ciclo contemporâneo, sobretudo no que toca a
estrutura central de um ‘rito de passagem’. A expressão foi usada como
título de uma obra clássica do sociólogo franco-alemão Arnold Van Gennep, o
primeiro a descrever suas propriedades formais universais.
Os ritos de passagem permitem às culturas coordenar as
transformações da vida humana em um processo simbólico de acesso sucessivo a
novos patamares de identidade – como os bem notórios rituais de puberdade.
Os ritos procedem sempre em um esquema triádico: separação, suspensão e
reagregação.
No modo mais habitual, um neófito é afastado de sua vida
regular, colocado em vigília em lugar ermo e submetido a alimentação ou hábitos
diferentes, para então retornar, renovado, investido de uma nova e melhor
condição.
Interrompe-se a rotina do trabalho, alteram-se as regras
habituais da convivência social, procede-se a numerosas atividades
preparatórias do período de suspensão.
Em nossas festas de fim de ano, a separação não consiste num
afastamento físico, mas moral. Interrompe-se a rotina do trabalho, alteram-se
as regras habituais da convivência social, procede-se a numerosas atividades
preparatórias do período de suspensão – inclusive enchendo os corredores dos shoppings.
E assim ocorrem as festas, suspensas num halo mágico de
convivências, comensalidades, dádivas, intensificação dos contatos entre todas
as redes – antes os cartões; hoje as mensagens na internet. Há comidas e bebidas
cerimoniais, há roupas especiais, há gestos, canções e decorações que não devem
ser vividas fora do período de suspensão.
E há finalmente a reintegração na rotina da vida cotidiana, com a
leitura dos jornais do dia 1º, a relatar as peripécias da grande farra
coletiva, a lembrar como as dimensões regulares da vida humana continuaram
a pulsar enquanto se entoava o «Noite Feliz» ou se ouvia o último DJ no palco
público do réveillon e a nos convocar para o próximo e imperdível ciclo de
festas.
Fonte: ciênciahoje.uol.com.br/