«Os Nove Triliões de Nomes de Deus», por Arthur C. Clarke.
«Os Nove Triliões de Nomes de Deus»
Deus/ JPGalhardas
1254- «OS NOVE TRILIÕES DE NOMES DE DEUS»
— Esta é uma petição um tanto incomum — disse o doutor
Wagner, com o que esperava ser um comentário plausível. — Que eu recorde, é a
primeira vez que alguém pediu um computador para um mosteiro tibetano. Eu não
gostaria de me mostrar inquisitivo, mas me custa pensar que em seu… hum…
estabelecimento haja aplicações para semelhante máquina. Poderia me explicar o
que tentam fazer com ela?
— Com muito prazer — respondeu o lama, arrumando a túnica de
seda e deixando cuidadosamente a um lado a régua de cálculo que tinha usado
para efectuar a equivalência entre as moedas. — Seu computador Mark V pode
efectuar qualquer operação matemática rotineira que inclua até dez cifras.
Entretanto, para nosso trabalho estamos interessados em letras, não em números.
Quando tiverem sido modificados os circuitos de produção, a máquina imprimirá
palavras, não colunas de cifras.
— Não compreendo…
— É um projecto em que estivemos trabalhando durante os
últimos três séculos; de fato, desde que se fundou o lamaísmo. É algo estranho
para seu modo de pensar; assim espero que me escute com mentalidade aberta
enquanto o explico.
— Naturalmente.
— Na realidade, é muito singelo. Estamos fazendo uma lista
que conterá todos os possíveis nomes de Deus.
— O que quer dizer?
— Temos motivos para acreditar — continuou o lama,
imperturbável — que todos esses nomes se podem escrever com não mais de nove
letras em um alfabeto que idealizamos.
— E estiveram fazendo isto durante três séculos?
— Sim; supúnhamos que nos custaria ao redor de quinze mil
anos completar o trabalho.
— Oh! — exclamou o doutor Wagner, com expressão um tanto
aturdida.—Agora compreendo por que quiseram alugar uma de nossas máquinas. Mas
qual é exactamente a finalidade deste projecto?
O lama vacilou durante uma fracção de segundo e Wagner se
perguntou se o tinha ofendido. Em todo caso, não houve indicação alguma de
zanga na resposta.
— Chame-o ritual, se quiser, mas é uma parte fundamental de
nossas crenças. Os numerosos nomes do Ser Supremo que existem: Deus, Jehová,
Alá, etcétera, só são etiquetas feitas pelos homens. Isto encerra um problema
filosófico de certa dificuldade, que não me proponho discutir, mas em algum
lugar entre todas as possíveis combinações de letras que se podem fazer estão
os que se poderiam chamar verdadeiros nomes de Deus. Mediante uma permutação
sistemática das letras, tentamos elaborar uma lista com todos esses possíveis
nomes.
— Compreendo. começaram com o AAAAAAA… e continuaram até o
ZZZZZZZ…
— Exactamente, embora nós utilizemos um alfabeto especial
próprio. Modificando os tipos eletromagnéticos das letras, arruma-se tudo; e
isto é muito fácil de fazer. Um problema bastante mais interessante é o de
desenhar circuitos para eliminar combinações ridículas. Por exemplo, nenhuma
letra deve figurar mais de três vezes consecutivas.
— Três? Certamente quer você dizer dois.
—Três é o correto. Temo que me ocuparia muito tempo explicar
porque, mesmo que você entendesse nossa linguagem.
— Estou seguro disso — disse Wagner, apressadamente — Siga.
— Por sorte, será coisa singela adaptar seu computador a
esse trabalho, posto que, uma vez sendo programado adequadamente, permutará
cada letra por turno e imprimirá o resultado. O que nos demoraria quinze mil
anos se poderá fazer em cem dias.
O doutor Wagner ouvia os débeis ruídos das ruas de
Manhattan, situadas muito abaixo. Estava em um mundo diferente, um mundo de
montanhas naturais, não construídas pelo homem. Nas remotas alturas de seu
longínquo país, aqueles monges tinham trabalhado com paciência, geração após
geração, enchendo suas listas de palavras sem significado. Havia algum limite
às loucuras da humanidade? Não obstante, não devia insinuar sequer seus
pensamentos. O cliente sempre tinha razão…
— Não há dúvida — replicou o doutor — de que podemos
modificar o Mark V para que imprima listas deste tipo. Mas o problema da
instalação e a manutenção já me preocupa mais. Chegar ao Tibete nos tempos
actuais não vai ser fácil.
— Nos encarregaremos disso. Os componentes são bastante
pequenos para se transportarem em avião. Este é um dos motivos de termos
escolhido sua máquina. Se você a pode fazer chegar à Índia, nós
proporcionaremos o transporte dali.
— E querem contratar dois de nossos engenheiros?
— Sim, para os três meses que devem durar o projecto.
— Não duvido de que nossa secção de pessoal lhes
proporcionará as pessoas idóneas. — O doutor Wagner fez uma anotação na
caderneta que tinha sobre a mesa — há outras duas questões… — antes de que
pudesse terminar a frase, o lama tirou uma pequena folha de papel.
— Isto é o saldo de minha conta do Banco Asiático.
— Obrigado. Parece ser… hum… adequado. A segunda questão é
tão corriqueira que vacilo em mencioná-la… mas é surpreendente a frequência com
que o óbvio se passa por cima. Que fonte de energia eléctrica tem vocês?
— Um gerador diesel que proporciona cinquenta kilowatts a
cento e dez volts. Foi instalado faz uns cinco anos e funciona muito bem. Faz a
vida no mosteiro muito mais cómoda, mas na realidade foi instalado para
proporcionar energia aos alto-falantes que emitem as preces.
— Certamente — admitiu o doutor Wagner. — Devia havê-lo
imaginado.
A vista do parapeito era vertiginosa, mas com o tempo se
acostuma a tudo. Depois de três meses, George Hanley não se impressionava pelos
dois mil pés de profundidade do abismo, nem pela visão remota dos campos do
vale semelhantes a quadros de um tabuleiro de xadrez. Estava apoiado contra as
pedras polidas pelo vento e contemplava com displicência as distintas
montanhas, cujos nomes nunca se preocupou de averiguar.
Aquilo, pensava George, era a coisa mais louca que lhe tinha
ocorrido jamais. O “Projeto Shangri-Lá”, como alguém o tinha batizado nos
longínquos laboratórios. Desde fazia já semanas, o Mark V estava produzindo
acres de folhas de papel cobertas de galimatias.
Pacientemente, inexoravelmente, o computador ia dispondo
letras em todas suas possíveis combinações, esgotando cada classe antes de
começar com a seguinte. Quando as folhas saíam das máquinas de escrever
electromagnéticas, os monges as recortavam cuidadosamente e as pregavam a uns
livros enormes. Uma semana mais e, com a ajuda do céu, teriam terminado. George
não sabia que escuros cálculos tinham convencido aos monges de que não
precisavam preocupar-se com as palavras de dez, vinte ou cem letras.
Um de seus habituais quebra-cabeças era que se produzisse
alguma mudança de plano e que o grande lama (a quem eles chamavam Sam Jaffe)
anunciasse de repente que o projecto se estenderia aproximadamente até o ano
2060 da Era Cristã. Eram capazes de uma coisa assim.
George ouviu que a pesada porta de madeira se fechava de
repente com o vento, enquanto Chuck entrava no parapeito e se situava a seu
lado. Como de costume, Chuck ia fumando um dos charutos puros que lhe tinham
feito tão popular entre os monges; parece que eles estavam completamente
dispostos a adoptar todos os menores e grande parte dos maiores prazeres da
vida. Isto era uma coisa a seu favor: podiam estar loucos, mas não eram tolos.
Aquelas frequentes excursões que realizavam à aldeia abaixo, por exemplo…
— Escuta, George — disse Chuck, com urgência. — Soube algo
que pode significar um problema.
— O que aconteceu? Não funciona bem a máquina? — Esta era a
pior contingência que George podia imaginar. Era algo que poderia atrasar a
volta e não havia nada mais horrível. Tal como ele se sentia agora, a simples
visão de um anúncio de televisão lhe pareceria maná caído do céu. Pelo menos,
representaria um vínculo com sua terra.
— Não, não é nada disso. — Chuck se instalou no parapeito, o
que não era habitual nele, porque normalmente lhe dava medo o abismo. — Acabo
de descobrir qual é o motivo de tudo isto.
— O que quer dizer? Eu pensava que sabíamos. —
Certo, sabíamos o que os monges estão tentando fazer. Mas
não sabíamos por quê. É a coisa mais louca…
— Isso já o tenho ouvido — grunhiu George.
— … mas o velho me acaba de falar com clareza. Sabe que
acode cada tarde para ver como vão saindo as folhas. Pois bem, esta vez parecia
bastante excitado ou, pelo menos, mais do que está acostumado a estar
normalmente. Quando lhe disse que estávamos no último ciclo, me perguntou, no
seu inglês tão fino, se eu tinha pensado alguma vez no que tentavam fazer. Eu
disse que eu gostaria de sabê-lo… e então me explicou.
— Segue; vou captando.
— O caso é que eles acreditam que, quando tiverem feito a
lista de todos os nomes, e admitem que há uns nove triliões, Deus terá
alcançado seu objectivo. A raça humana terá acabado aquilo para o qual foi
criada e não haverá sentido algum em continuar. Certamente, a ideia mesma é
algo assim como uma blasfémia.
— Então que esperam que façamos? Suicidar-nos?
— Não há nenhuma necessidade disto. Quando a lista estiver
completa, Deus entra em acção e simplesmente acaba com todas as coisas!
— Oh, já compreendo! Quando terminarmos nosso trabalho, terá
lugar o fim do mundo.
Chuck deixou escapar uma risadinha nervosa.
— Isto é exactamente o que disse ao Sam. E sabe o que
ocorreu? Olhou-me de um modo muito estranho, como se eu tivesse falado alguma
estupidez na classe, e disse: “Não se trata de nada tão corriqueiro como isso”.
George esteve pensando durante uns momentos.
— Isto é o que eu chamo uma visão ampla do assunto — disse
depois. — Mas o que supõe que deveríamos fazer a respeito? Não vejo que isso
signifique a mais mínima diferença para nós. Ao fim e ao cabo, já sabíamos que
estavam loucos.
— Sim… mas não te dá conta do que se pode passar? Quando a
lista estiver acabada e o plano final não der certo, ou não ocorra o que eles
esperam, seja o que for, podem nos culpar do fracasso. É nossa máquina a que
estiveram usando. Esta situação eu não gosto nem um pouco.
— Compreendo — disse George, lentamente. — Faz sentido. Mas
esse tipo de coisas ocorreu outras vezes. Quando eu era um menino, lá em
Louisiana, tínhamos um pregador louco que uma vez disse que o fim do mundo
chegaria no domingo seguinte. Centenas de pessoas acreditaram e algumas até
venderam suas casas. Entretanto, quando nada aconteceu, não ficaram furiosas,
como se poderia esperar. Simplesmente decidiram que o pregador tinha cometido
um engano em seus cálculos e seguiram acreditando. Parece-me que alguns deles
acreditam ainda.
— Bom, mas isto não é Louisiana, se por acaso ainda não se
deu conta. Nós não somos mais que dois e monges os há a centenas aqui. Eu lhes
tenho afecto e sentirei pena pelo velho Sam quando vir seu grande fracasso, mas,
de todos os modos, gostaria de estar em outro lugar.
— Isto desejo eu há semanas. Mas não podemos fazer nada até
que o contrato tenha terminado e cheguem os transportes aéreos para nos levar.
Claro que — disse Chuck, pensativamente — sempre poderíamos recorrer a uma
ligeira sabotagem.
— Como? Isso pioraria as coisas!
— Creio que não. Veja: funcionando as vinte e quatro horas
do dia, tal como está fazendo, a máquina terminará seu trabalho dentro de
quatro dias a partir de hoje. O transporte chegará dentro de uma semana. Pois
bem, tudo o que precisamos fazer é encontrar algo que tenha de ser reparado
quando fizermos uma revisão, algo que interrompa o trabalho durante um par de
dias. Nós damos um jeito, certamente, mas não muito às pressas. Se calcularmos
bem o tempo, estaremos no aeroporto quando o último nome for impresso. Então,
já não nos poderão agarrar.
— Eu não gosto da ideia—disse George. —Seria a primeira vez
que abandonaria um trabalho. Além disso, provocaria suspeitas. Não; vamos ficar
e aceitar o que venha.
— Sigo sem gostar disso — disse, sete dias mais tarde, enquanto
os pequenos mas resistentes cavalinhos de montanha os levavam para baixo,
serpenteando pela estrada. — E não pense que fujo porque tenho medo. O que
passa é que sinto pena por esses infelizes e não quero estar junto a eles
quando se derem conta de quão tolos foram. Pergunto-me como o vai tomar Sam.
— É curioso — replicou Chuck — mas quando lhe disse adeus
tive a sensação de que sabia que nós partíamos de seu lado e que não lhe
importava, porque sabia também que a máquina funcionava bem e que o trabalho
ficaria muito em breve acabado. Depois disso… claro que, para ele, já não há
nenhum depois…
George se voltou na cadeira e olhou para trás, atalho acima.
Era o último sítio de onde se podia contemplar com clareza o mosteiro. A
silhueta dos escarrachados e angulares edifícios se recortava contra o céu
crepuscular: aqui e lá se viam luzes que resplandeciam como as ponteiras do
flanco de um transatlântico. Luzes eléctricas, certamente, compartilhando o
mesmo circuito que o Mark V. Quanto tempo seguiriam compartilhando?,
perguntou-se George. Destroçariam os monges o computador, levados pelo furor e
pelo desespero? Ou se limitariam a ficar tranquilos e começariam de novo todos
os seus cálculos?
Sabia exactamente o que estava passando no alto da montanha
naquele mesmo momento. O grande lama e seus ajudantes estariam sentados,
vestidos com suas túnicas de seda e inspeccionando as folhas de papel, enquanto
os monges principiantes as tiravam das máquinas de escrever e as pregavam aos
grandes volumes. Ninguém diria uma palavra. O único ruído seria o incessante
golpear das letras sobre o papel, porque o Mark V era por si completamente
silencioso, enquanto efectuava seus milhares de cálculos por segundo. Três meses
assim, pensou George, eram já de subir pelas paredes.
— Ali está! — gritou Chuck, assinalando abaixo para o vale.
— Não é belo!?
Certamente era, pensou George. O velho e amolgado dc3 estava
no final da pista, como uma miúda cruz de prata. Dentro de duas horas os
levaria para a liberdade e a sensatez. Era algo assim como saborear um licor de
qualidade. George deixou que o pensamento lhe enchesse a mente, enquanto o
cavalinho avançava pacientemente.
A rápida noite das alturas do Himalaia quase se lhes jogava
em cima. Felizmente, o caminho era muito bom, como a maioria dos da região, e
eles foram equipados com lanternas. Não havia o menor perigo, só certo
desconforto causado pelo frio intenso. O céu estava perfeitamente iluminado
pelas estrelas familiares e amistosas. Pelo menos, pensou George, não haveria
risco de que o piloto não pudesse descolar por causa das condições do tempo.
Esta tinha sido sua última preocupação.
Começou a cantar, mas em pouco parou. O vasto cenário das
montanhas, brilhando por toda parte como fantasmas brancos e encapuçados, não
animava a esta expansão. De repente, George consultou seu relógio.
— Estaremos ali dentro de uma hora — disse, voltando-se para
Chuck. Depois, pensando em outra coisa, acrescentou: — Pergunto-me se o
computador terá terminado seu trabalho. Estava calculado para esta hora.
Chuck não respondeu; assim George se voltou completamente
para ele. Pôde ver a cara do Chuck; era um oval branco voltado para o céu.
— Olhe — sussurrou Chuck.
George elevou a vista para o espaço. Sempre há uma última
vez para tudo. Viram… sem nenhuma comoção… que as estrelas se apagavam.
Arthur C. Clarke