terça-feira, 31 de dezembro de 2013

ESPECIAL MÚSICAS DO MUNDO

E a música especial de hoje é...
(Prenda d' Ano Novo)

BOLERO DE RAVEL/ DE MAURICE RAVEL

ANDRÉ RIEU/ LIVE IN AUSTRALIA
Poet'anarquista

EM RETROSPECTIVA

ESTÁ QUASE A FAZER 1 ANO
FOI ASSIM A ENTRADA DE 2013 PELO MUNDO
Poet'anarquista

QUASE LÁ... (EM 2014)

Está por horas a Entrada do Novo Ano
Quase lá... (em 2014)
Poet'anarquista

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

STEVE HACKETT - «Kim»
Kim by Steve Hackett on Grooveshark
Poet'anarquista

MONUMENTAL RAVINA

Voando através da monumental ravina
Pairo entre as paredes cavernosas
Numa floresta densa de musgo e líquen…
A alma agarra o último sopro de vida
Deixando-se ir ao sabor do vento.
Sonhos dispersos percorrem o tempo
Onde a vida não foi ainda esquecida
E, no instante, tudo parece estar bem (!?)
Afasto-me nas águas que correm frondosas
Esperando esse momento final em surdina…

Matias José

OUTROS CONTOS

«História de Alibe, o Persa», por François Fénelon.

«História de Alibe, o Persa»
O Rei Xá Abbas Presidindo Banquete

53- «HISTÓRIA DE ALIBE, O PERSA»

O Xá Abbas, rei da Pérsia, durante uma viagem, distanciou-se de todo o seu séquito a fim de passar pelo campo sem ser reconhecido e para aí apreciar o povo em toda a sua liberdade natural; levou consigo apenas um de seus cortesãos. “Não conheço absolutamente, disse-lhe o soberano, os verdadeiros costumes dos homens; tudo o que de nós se aproxima está disfarçado. É a arte, e não a simples natureza, que se nos apresenta. Quero estudar a vida rústica e ver essa espécie de homens que é tão desprezada, embora sejam o verdadeiro sustentáculo de toda sociedade humana. Estou enfadado de ver palacianos que me observam para me surpreender com lisonjas; preciso ver agricultores e pastores que não me conheçam”.
       
Passou ele, com seu confidente, por muitas aldeias onde havia danças e maravilhava-se ao encontrar, longe dos palácios, prazeres tranqüilos e nada dispendiosos. Fez uma refeição numa cabana e, como estivesse com muita fome, após haver andado mais que de costume, os simples alimentos que aí encontrou souberam-lhe melhor que todas as finas iguarias de sua mesa. Ao passar numa campina matizada de flores, marginada por límpido regato, avistou um pastorzinho que tocava flauta à sombra de um grande olmo, junto a seus carneiros; aproximou-se dele, observou-o, achou-lhe uma fisionomia agradável, um ar simples e ingênuo, mas nobre e gracioso.
       
Os trapos que o pastor vestia em nada empanavam o brilho de sua beleza. O rei julgou, a principio, que fosse alguém de nascimento ilustre que se houvesse disfarçado, mas soube pelo pastor que seu pai e sua mãe habitavam uma aldeia próxima e que seu nome era Alibe.
       
A medida que o soberano o interrogava, ia apreciando nele um espírito firme e sensato. Seus olhos eram vivos e nada possuíam de violento ou selvagem; a voz era doce, insinuante e própria para sensibilizar. O rosto nada possuía de rústico, mas sua beleza não era uma beleza indolente, afeminada. O pastor, de dezesseis anos aproximadamente, não sabia que era assim como os outros o viam; julgava pensar, falar, ser, enfim, como todos os outros pastores de sua aldeia; mas, sem educação, aprendera tudo que a razão ensina àqueles que a ouvem. O soberano, depois de conversar com ele familiarmente, sentiu-se encantado; foi por ele informado das condições dos povos, de tudo que os reis nunca vêm a saber da multidão de bajuladores que os rodeia. De vez em quando se ria da ingenuidade daquela criança que se expressava com absoluta liberdade; era uma grande novidade para o rei ouvir alguém falar tão espontaneamente. Fez sinal ao cortesão que o acompanhava para não dizer quem ele era; porque temia que Alibe perdesse num instante toda a sua naturalidade e seu encanto, caso soubesse com quem falava.
       
“Bem vejo, dizia o príncipe ao cortesão, que a natureza não é menos bela nas condições mais humildes que nas mais eminentes. Jamais filho algum de rei me pareceu melhor nascido que este guardador de carneiros; sentir-me-ia muito feliz em ter um filho tão belo, tão sensato, tão amável. Parece-me apto para tudo e, caso se tenha o cuidado de instruí-lo, certamente será, algum dia um grande homem; quero que seja educado junto a mim.”
       
O rei levou Alibe, que muito surpreso ficou quando soube a quem havia agradado. Ensinaram-lhe a ler, a escrever, a cantar e deram-lhe depois professores das artes e ciências que adornam o espírito. A princípio ficou um tanto maravilhado com a corte, e a grande modificação do seu destino lhe afetou um tanto o coração. Sua idade e a valia de que desfrutava, reunidas, alteraram um pouco sua sabedoria e sua moderação; ao invés do seu cajado, da sua flauta e do seu traje de pastor, vestiu um traje de púrpura bordado a ouro com um turbante coberto de pedrarias. Sua beleza superou tudo que a corte possuía de mais agradável; ele se tornou apto para os negócios mais sérios e mereceu a confiança de seu senhor que, conhecendo o gosto requintado de Alibe por todas as magnificências de um palácio, acabou dando-lhe um cargo muito importante na Pérsia, qual seja o de guardar tudo que o príncipe possui em pedrarias e em alfaias de valor.
      
 Durante toda a vida do grande xá Abas, a valia de Alibe não cessou de aumentar. A medida que ele ia alcançando idade mais madura, mais se lembrava de sua condição antiga e muitas vezes dela sentia saudade: ‘Ó belos dias, dizia consigo, dias inocentes, dias em que desfrutei uma alegria pura e sem perigo, dias depois dos quais outros não tive tão aprazíveis, será que não vos tornarei a ver? Aquele que de vós me privou, ao me dar tantas riquezas, privou-me de tudo.” Quis rever sua aldeia; comoveu-se em todos os lugares onde outrora dançara, cantara, tocara flauta com seus companheiros. Fez algum bem a todos os seus parentes e amigos; mas almejou-lhes como principal felicidade, que jamais deixassem a vida campestre e nunca experimentassem as desditas da corte.
       
Tais desditas ele as sentiu, após a morte do seu bom senhor o xá Abas. A este sucedeu o filho, xá Sefi. Cortesãos invejosos e dominados pela ambição acharam meios e modos de preveni-lo contra Alibe: “Ele abusou, diziam, da confiança do falecido rei; acumulou tesouros imensos e desviou muitas coisas de altíssimo valor, das quais era o depositário.” 0 xá Sefi era jovem e príncipe; tanto não era necessário para ser crédulo, desatento e incauto. Teve a vaidade de querer parecer reformar aquilo que o rei seu pai fizera, e julgar melhor que ele. A fim de ter um pretexto de destituir Alibe de seu cargo, pediu-lhe, a conselho de seus cortesãos invejosos, que lhe levasse uma cimitarra guarnecida de diamantes, de imenso valor, que o rei seu avô costumava cingir nos combates. 0 xá Abas mandara outrora tirar dessa cimitarra todos os seus belos diamantes e Alibe provou, com boas testemunhas, que tal coisa fora feita por ordem do falecido rei, antes de lhe ser dado o cargo.
       
Quando os inimigos de Alibe viram que não mais podiam servir-se desse pretexto para perdê-lo, aconselharam ao xá Sefi que lhe pedisse para fazer, dentro de quinze dias, um inventário rigoroso de todas as alfaias preciosas, cuja guarda lhe incumbia. Ao cabo de quinze dias, pediu para ver pessoalmente todas as coisas. Alibe abriu-lhe todas as portas e mostrou-lhe tudo que ele guardava. Nada faltava: tudo estava limpo, bem arrumado e conservado com muito zelo. 0 rei, muito surpreso de encontrar por toda parte tanta ordem e cuidado, quase modificara sua disposição a favor de Alibe, quando avistou, na extremidade de uma grande galeria cheia de esplêndidas alfaias; uma porta de ferro, com três enormes fechaduras. “‘É aí, disseram-lhe ao ouvido os cortesãos invejosos, que Alibe escondeu todas as coisas preciosas que desviou. 

“Logo o rei gritou encolerizado: “Que guardou aí? Mostre-mo!”
       
A essas palavras Alibe atirou-se a seus pés, suplicando-lhe, em nome de Deus, que não lhe tirasse o que ele possuía de mais precioso sobre a terra: Não é justo que eu perca num momento o que me resta e que representa meu derradeiro recurso, após haver trabalhado tantos anos junto ao rei seu pai. Tirai, se quiserdes, o restante, mas deixai-me isso.”
       
O rei não teve a menor dúvida de que se tratava de um tesouro mal adquirido que Alibe reunira; falou em tom mais alto e fez absoluta questão de que lhe abrissem a portar. Afinal, Alibe, que estava com a chave, abriu-a pessoalmente. Depararam apenas com o cajado, a flauta e o traje de pastor que Alibe possuíra outrora, e que muitas vezes revia com júbilo, receoso de esquecer sua primitiva condição: “Eis, disse, ó grande rei, os preciosos restos de minha antiga felicidade; nem a fortuna, nem vosso poder, puderam privar-me deles; eis meu tesouro que conservo para me enriquecer, quando me tiverdes tornado pobre. Retomai tudo o mais, deixai-me estas queridas lembranças de meu primeiro estado; ei-los, meus verdadeiros bens, que jamais me faltarão. Ei-los, estes bens singelos, inocentes, sempre caros àqueles que sabem contentar-se com o necessário, porque não se atormentam absolutamente com o supérfluo; ei-los, estes bens que nunca me causaram um instante de dificuldade; ó queridos instrumentos de uma vida simples e feliz! Só a vós amo, convosco é que desejo viver e morrer. Porque foi preciso que outros bens enganadores me viessem iludir e perturbar minha vida? Eu vo-las restituo, grande rei, todas as riquezas que me vierem de vossa liberalidade; conservo apenas as que possuía quando o rei vosso pai, veio, com suas mercês, tornar-me infortunado.”
       
O rei, ao ouvir essas palavras, compreendeu a inocência de Alibe e indignando-se com os cortesãos que o quiseram perder, expulsou-os. Alibe tornou-se o seu principal auxiliar e foi incumbido dos negócios mais reservados. Mas todos os dias tornava a ver seu cajado, sua flauta e seu antigo traje, que conservava sempre prontos em seu tesouro, a fim de retomá-los, mal o destino inconstante perturbasse a sua situação. Morreu, na extrema velhice, sem nunca ter querido, nem mandado punir seus inimigos, nem reunir fortuna alguma, deixando apenas a seus parentes o com que viverem na condição de pastor, que lhe pareceu sempre a mais segura e a mais feliz.

François Fénelon

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

FALTA 1 DIA...

Contagem decrescente
Falta 1 dia...

Sorte e Saúde para o Novo Ano!
Poet'anarquista

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

THE CHARLIE DANIELS BAND
«Dueling Banjos»

OUTROS CONTOS

«Feliz Ano Novo», por Rubem Fonseca.

«Feliz Ano Novo»
Fogo-de-artifício, por CatmaSutra

52- «FELIZ ANO NOVO»

Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no reveillon. Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.

Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros.

Pereba entrou no banheiro e disse, que fedor.

Vai mijar noutro lugar, tô sem água.

Pereba saiu e foi mijar na escada.

Onde você afanou a TV, Pereba perguntou.

Afanei, porra nenhuma. Comprei. O recibo está bem em cima dela. Ô Pereba! você pensa que eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada no meu cafofo?

Tô morrendo de fome, disse Pereba.

De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de sacanagem.

Não conte comigo, disse Pereba. Lembra-se do Crispim? Deu um bico numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele aí, fudidão, andando de muleta.

Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser.

Acendemos uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda. Mudamos de canal, prum bang-bang, Outra bosta.

As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o ano novo dançando com os braços pro alto, já viu como as branquelas dançam? Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem mesmo é mostrar a boceta mas não têm culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam os maridos. Você sabia que a vida delas é dar a xoxota por aí?

Pena que não tão dando pra gente, disse Pereba. Ele falava devagar, gozador, cansado, doente.

Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma punheta. Fecha os olhos e manda brasa.

Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente rica e eu fudido.

Zequinha entrou na sala, viu Pereba tocando punheta e disse, que é isso Pereba?

Michou, michou, assim não é possível, disse Pereba.

Por que você não foi para o banheiro descascar sua bronha?, disse Zequinha.

No banheiro tá um fedor danado, disse Pereba. Tô sem água.

As mulheres aqui do conjunto não estão mais dando?, perguntou Zequinha.

Ele tava homenageando uma loura bacana, de vestido de baile e cheia de jóias.

Ela tava nua, disse Pereba.

Já vi que vocês tão na merda, disse Zequinha.

Ele tá querendo comer restos de Iemanjá, disse Pereba.

Brincadeira, eu disse. Afinal, eu e Zequinha tínhamos assaltado um supermercado no Leblon, não tinha dado muita grana, mas passamos um tempão em São Paulo na boca do lixo, bebendo e comendo as mulheres. A gente se respeitava.

Pra falar a verdade a maré também não tá boa pro meu lado, disse Zequinha. A barra tá pesada. Os homens não tão brincando, viu o que fizeram com o Bom Crioulo? Dezesseis tiros no quengo. Pegaram o Vevé e estrangularam. O Minhoca, porra! O Minhoca! crescemos juntos em Caxias, o cara era tão míope que não enxergava daqui até ali, e também era meio gago - pegaram ele e jogaram dentro do Guandu, todo arrebentado.

Pior foi com o Tripé. Tacaram fogo nele. Virou torresmo. Os homens não tão dando sopa, disse Pereba. E frango de macumba eu não como.

Depois de amanhã vocês vão ver. Vão ver o que?, perguntou Zequinha.

Só tô esperando o Lambreta chegar de São Paulo.

Porra, tu tá transando com o Lambreta?, disse Zequinha.

As ferramentas dele tão todas aqui.

Aqui!?, disse Zequinha. Você tá louco.

Eu ri.

Quais são os ferros que você tem?, perguntou Zequinha. Uma Thompson lata de goiabada, uma carabina doze, de cano serrado, e duas magnum.

Puta que pariu, disse Zequinha. E vocês montados nessa baba tão aqui tocando punheta?

Esperando o dia raiar para comer farofa de macumba, disse Pereba. Ele faria sucesso falando daquele jeito na TV, ia matar as pessoas de rir.

Fumamos. Esvaziamos uma pitu.

Posso ver o material?, disse Zequinha.

Descemos pelas escadas, o elevador não funcionava e fomos no apartamento de Dona Candinha. Batemos. A velha abriu a porta.

Dona Candinha, boa noite, vim apanhar aquele pacote.

O Lambreta já chegou?, disse a preta velha.

Já, eu disse, está lá em cima.

A velha trouxe o pacote, caminhando com esforço. O peso era demais para ela. Cuidado, meus filhos, ela disse.

Subimos pelas escadas e voltamos para o meu apartamento. Abri o pacote. Armei primeiro a lata de goiabada e dei pro Zequinha segurar. Me amarro nessa máquina, tarratátátátá!, disse Zequinha.

É antiga mas não falha, eu disse.

Zequinha pegou a magnum. Jóia, jóia, ele disse. Depois segurou a doze, colocou a culatra no ombro e disse: ainda dou um tiro com esta belezinha nos peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, pra jogar o puto de costas na parede e deixar ele pregado lá.

Botamos tudo em cima da mesa e ficamos olhando. Fumamos mais um pouco.

Quando é que vocês vão usar o material?, disse Zequinha.

Dia 2. Vamos estourar um banco na Penha. O Lambreta quer fazer o primeiro gol do ano.

Ele é um cara vaidoso, disse Zequinha.

É vaidoso mas merece. Já trabalhou em São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Vitória, Niterói, pra não falar aqui no Rio. Mais de trinta bancos.

É, mas dizem que ele dá o bozó, disse Zequinha.

Não sei se dá, nem tenho peito de perguntar. Pra cima de mim nunca veio com frescuras.

Você já viu ele com mulher?, disse Zequinha.

Não, nunca vi. Sei lá, pode ser verdade, mas que importa?

Homem não deve dar o cu. Ainda mais um cara importante como o Lambreta, disse Zequinha.

Cara importante faz o que quer, eu disse.

É verdade, disse Zequinha.

Ficamos calados, fumando.

Os ferros na mão e a gente nada, disse Zequinha.

O material é do Lambreta. E aonde é que a gente ia usar ele numa hora destas?

Zequinha chupou ar fingindo que tinha coisas entre os dentes. Acho que ele também estava com fome.

Eu tava pensando a gente invadir uma casa bacana que tá dando festa. O mulherio tá cheio de jóia e eu tenho um cara que compra tudo que eu levar. E os barbados tão cheios de grana na carteira. Você sabe que tem anel que vale cinco milhas e colar de quinze, nesse intruja que eu conheço? Ele paga na hora.

O fumo acabou. A cachaça também. Começou a chover. Lá se foi a tua farofa, disse Pereba.

Que casa? Você tem alguma em vista?

Não, mas tá cheio de casa de rico por aí. A gente puxa um carro e sai procurando.

Coloquei a lata de goiabada numa saca ele feira, junto com a munição. Dei uma magnum pro Pereba, outra pro Zequinha. Prendi a carabina no cinto, o cano para baixo e vesti uma capa. Apanhei três meias de mulher e uma tesoura. Vamos, eu disse.

Puxamos um Opala. Seguimos para os lados de São Conrado. Passamos várias casas que não davam pé, ou tavam muito perto da rua ou tinham gente demais. Até que achamos o lugar perfeito. Tinha na frente um jardim grande e a casa ficava lá no fundo, isolada. A gente ouvia barulho de música de carnaval, mas poucas vozes cantando. Botamos as meias na cara. Cortei com a tesoura os buracos dos olhos. Entramos pela porta principal.

Eles estavam bebendo e dançando num salão quando viram a gente.

É um assalto, gritei bem alto, para abafar o som da vitrola. Se vocês ficarem quietos ninguém se machuca. Você aí, apaga essa porra dessa vitrola!

Pereba e Zequinha foram procurar os empregados e vieram com três garções e duas cozinheiras. Deita todo mundo, eu disse.

Contei. Eram vinte e cinco pessoas. Todos deitados em silêncio, quietos, como se não estivessem sendo vistos nem vendo nada.

Tem mais alguém em casa?, eu perguntei.

Minha mãe. Ela está lá em cima no quarto. É uma senhora doente, disse uma mulher toda enfeitada, de vestido longo vermelho. Devia ser a dona da casa.

Crianças?

Estão em Cabo Frio, com os tios.

Gonçalves, vai lá em cima com a gordinha e traz a mãe dela.

Gonçalves?, disse Pereba.

É você mesmo. Tu não sabe mais o teu nome, ô burro? Pereba pegou a mulher e subiu as escadas.

Inocêncio, amarra os barbados.

Zequinha amarrou os caras usando cintos, fios de cortinas, fios de telefones, tudo que encontrou.

Revistamos os sujeitos. Muito pouca grana. Os putos estavam cheios de cartões de crédito e talões de cheques. Os relógios eram bons, de ouro e platina. Arrancamos as jóias das mulheres. Um bocado de ouro e brilhante. Botamos tudo na saca.

Pereba desceu as escadas sozinho.

Cadê as mulheres?, eu disse.

Engrossaram e eu tive que botar respeito.

Subi. A gordinha estava na cama, as roupas rasgadas, a língua de fora. Mortinha. Pra que ficou de flozô e não deu logo? O Pereba tava atrasado. Além de fudida, mal paga. Limpei as jóias. A velha tava no corredor, caída no chão. Também tinha batido as botas. Toda penteada, aquele cabelão armado, pintado de louro, de roupa nova, rosto encarquilhado, esperando o ano novo, mas já tava mais pra lá do que pra cá. Acho que morreu de susto. Arranquei os colares, broches e anéis. Tinha um anel que não saía. Com nojo, molhei de saliva o dedo da velha, mas mesmo assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma dentada, arrancando o dedo dela. Enfiei tudo dentro de uma fronha. O quarto da gordinha tinha as paredes forradas de couro. A banheira era um buraco quadrado grande de mármore branco, enfiado no chão. A parede toda de espelhos. Tudo perfumado. Voltei para o quarto, empurrei a gordinha para o chão, arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha, brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha. Foi um alívio, muito legal. Depois limpei o cu na colcha, botei as calças e desci.

Vamos comer, eu disse, botando a fronha dentro da saca. Os homens e mulheres no chão estavam todos quietos e encagaçados, como carneirinhos. Para assustar ainda mais eu disse, o puto que se mexer eu estouro os miolos.

Então, de repente, um deles disse, calmamente, não se irritem, levem o que quiserem não faremos nada.

Fiquei olhando para ele. Usava um lenço de seda colorida em volta do pescoço.

Podem também comer e beber à vontade, ele disse.

Filha da puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles, nós não passávamos de três moscas no açucareiro.

Como é seu nome?

Maurício, ele disse.

Seu Maurício, o senhor quer se levantar, por favor?

Ele se levantou. Desamarrei os braços dele.

Muito obrigado, ele disse. Vê-se que o senhor é um homem educado, instruído. Os senhores podem ir embora, que não daremos queixa à polícia. Ele disse isso olhando para os outros, que estavam quietos apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, como quem diz, calma minha gente, já levei este bunda suja no papo.
Inocêncio, você já acabou de comer? Me traz uma perna de peru dessas aí. Em cima de uma mesa tinha comida que dava para alimentar o presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e carreguei os dois canos.

Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede? Ele se encostou na parede. Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho para cá. Aí. Muito obrigado.

Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar um panetone.

Viu, não grudou o cara na parede, porra nenhuma.

Tem que ser na madeira, numa porta. Parede não dá, Zequinha disse.

Os caras deitados no chão estavam de olhos fechados, nem se mexiam. Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba.

Você aí, levante-se, disse Zequinha. O sacana tinha escolhido um cara magrinho, de cabelos compridos.

Por favor, o sujeito disse, bem baixinho. Fica de costas para a parede, disse Zequinha.
Carreguei os dois canos da doze. Atira você, o coice dela machucou o meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula.

Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira.

Eu não disse? Zequinha esfregou ó ombro dolorido. Esse canhão é foda.

Não vais comer uma bacana destas?, perguntou Pereba.

Não estou a fim. Tenho nojo dessas mulheres. Tô cagando pra elas. Só como mulher que eu gosto.

E você... Inocêncio?

Acho que vou papar aquela moreninha.

A garota tentou atrapalhar, mas Zequinha deu uns murros nos cornos dela, ela sossegou e ficou quieta, de olhos abertos, olhando para o teto, enquanto era executada no sofá.

Vamos embora, eu disse. Enchemos toalhas e fronhas com comidas e objetos.

Muito obrigado pela cooperação de todos, eu disse. Ninguém respondeu.

Saímos. Entramos no Opala e voltamos para casa.

Disse para o Pereba, larga o rodante numa rua deserta de Botafogo, pega um táxi e volta. Eu e Zequinha saltamos.

Este edifício está mesmo fudido, disse Zequinha, enquanto subíamos, com o material, pelas escadas imundas e arrebentadas.

Fudido mas é Zona Sul, perto da praia. Tás querendo que eu vá morar em Vilópolis?

Chegamos lá em cima cansados. Botei as ferramentas no pacote, as jóias e o dinheiro na saca e levei para o apartamento da preta velha.

Dona Candinha, eu disse, mostrando a saca, é coisa quente.

Pode deixar, meus filhos. Os homens aqui não vêm.

Subimos. Coloquei as garrafas e as comidas em cima de uma toalha no chão. Zequinha quis beber e eu não deixei. Vamos esperar o Pereba.

Quando o Pereba chegou, eu enchi os copos e disse, que o próximo ano seja melhor. 

Feliz Ano Novo.

Rubem Fonseca

domingo, 29 de dezembro de 2013

FALTAM 2 DIAS...

Contagem decrescente
Faltam 2 dias...

Sorte e Saúde para o Novo Ano!
Poet'anarquista

OUTROS CONTOS

«Eveline», por James Joyce.

Corria o ano de 1916, dia 29 de Dezembro. O poeta, romancista e contista James Joyce, publicava «Retrato do Artista enquanto Jovem», nos Estados Unidos. O conto «Eveline» recorda o extraordinário autor irlandês, grande precursor do modernismo na língua inglesa. Boa leitura!
Poet'anarquista
 «Eveline»
O Roubo da Jóia, por JPGalhardas

51- «EVELINE»

Estava sentada à janela, vendo a noite invadir a avenida. Sua cabeça inclinava-se contra as cortinas e em suas narinas estava o cheiro de cretone empoeirado. Estava cansada.

Poucas pessoas passavam. O homem da última casa passou rumo ao lar; ela escutou seus passos sobre o pavimento de concreto e depois esmagando o trecho cinza que ficava antes das novas casas vermelhas. Antigamente havia um campo lá, onde eles brincavam todas as tardes com outras crianças. Então um homem de Belfast comprou a área e construiu casas nela – não casas pequenas e marrons como as suas, mas radiantes casas com tetos brilhantes. As crianças da avenida costumavam brincar juntas naquela área – os Devines, os Waters, os Dunns, pequeno Keogh, o aleijado, ela e seus irmãos e irmãs. Ernest, no entanto, nunca brincava: ele já era bastante crescido. Seu pai freqüentemente os enxotava do campo com uma vara; mas geralmente o pequeno Keogh conseguia impedir e os alertava quando via seu pai vindo. Ainda assim, eles pareciam ter sido felizes então. Seu pai não era tão mau; e, além disso, sua mãe estava viva. Aquilo foi há muito tempo; ela e seus irmãos e irmãs estavam agora todos crescidos; sua mãe estava morta. Tizzie Dunn estava morta, também, e os Waters tinham voltado para a Inglaterra. Tudo muda. Agora ela iria embora, como os outros, deixaria seu lar.

Lar! Olhou o quarto em volta, revendo todos os objetos familiares que havia espanado uma vez por semana durante tantos anos. Talvez ela nunca mais visse novamente aqueles objetos familiares dos quais nunca sonhara ser separada. E ainda assim, durante todos aqueles anos, ela nunca descobrira o nome do padre cuja fotografia amarelada pendia na parede, sobre o harmônio quebrado ao lado de um impresso colorido com promessas à Abençoada Maria Margarete Alacoque. Ele havia sido um colega de escola de seu pai. Toda vez que ele mostrava a fotografia a um visitante, falava com casualidade:

 – Ele está em Melbourne.

 Ela consentira em ir embora, em deixar sua casa. Era aquela uma decisão inteligente? Tentou pesar os dois lados da questão. Em casa, de qualquer forma, ela tinha abrigo e comida. Claro, tinha que trabalhar duro tanto em casa quanto no emprego. O que diriam dela na Loja quando descobrissem que havia fugido com um parceiro? Diriam que era uma tola, talvez; e seu lugar seria preenchido através de um anúncio. A senhorita Gavan ficaria satisfeita. Ela sempre lhe aborrecera, especialmente quando havia gente ouvindo.

– Senhorita Hill, não vê que essas damas estão esperando?
– Apresse-se, senhorita Hill, por favor.

Ela não derramaria muitas lágrimas por deixar a Loja.

 Em sua nova casa, em um distante e desconhecido país, não seria assim. Ela estaria casada – ela, Eveline. As pessoas lhe tratariam com respeito. Não seria tratada como o fora sua mãe. Mesmo agora, embora tivesse dezenove anos, às vezes se sentia em perigo por conta da violência do pai. Sabia que era aquilo que lhe havia causado palpitações. Quando estavam crescendo, ele nunca implicara com ela, como costumava fazer com Harry e Ernest, porque ela era uma garota; mas ultimamente ele começara a ameaçá-la e dizer o que seria capaz de lhe fazer em nome de sua mãe morta. E agora não havia ninguém para protegê-la. Ernest estava morto e Harry, que vivia na igreja trabalhando com ornamentos, estava sempre em algum ponto distante do país. Além disso, os inevitáveis bate-bocas sobre dinheiro nas noites de sábado haviam começado a cansá-la incrivelmente. Ela sempre dava todo seu salário – sete shillings – e Harry sempre mandava o que podia, mas o problema era conseguir qualquer dinheiro de seu pai. Ele dizia que ela desperdiçava dinheiro, que não tinha juízo, que não daria seu dinheiro arduamente conseguido para ser jogado na rua, e muito mais, porque geralmente ele estava muito mal nas noites de sábado. No final ele acabava dando o dinheiro e perguntando se ela pensava em comprar a jantar de domingo. Então ela tinha que correr o mais rápido possível para fazer as compras, segurando firme sua bolsa de couro enquanto abria caminho a cotoveladas pela multidão e retornava tarde pra casa com seu pacote de provisões. Ela tinha trabalho para manter a casa unida e cuidar para que as duas crianças deixadas sob seus cuidados fossem regularmente à escola e se alimentassem regularmente. Era um trabalho duro – uma vida dura –, mas agora que ela estava perto de ir embora, não a via como uma vida totalmente indesejável.

 Estava perto de explorar outra vida com Frank. Frank era muito amável, viril, generoso.  Iria embora com ele na embarcação noturna e seria sua esposa e viveriam em Buenos Aires, onde ele tinha uma casa à espera. Como ela lembrava bem a primeira vez que o havia visto! Ele estava alojado em uma casa na estrada principal que ela costumava visitar. Parecia há poucas semanas. Ele estava ao portão, o chapéu pontudo para trás e o cabelo tombado sobre o rosto de bronze. Então se conheceram. Ele ia encontrá-la fora da Loja toda noite e a acompanhava até em casa. Levou-a para ver “A Garota Boêmia”, e ela se sentiu exultante, sentada numa parte do teatro em que não costumava sentar. Ele gostava muito de música e cantava um pouco. As pessoas sabiam que eles estavam flertando e, quando ele cantava sobre a moça que ama um marinheiro, ela sempre se sentia prazerosamente inquieta. Ele costumava chamá-la Poppens, por diversão. No começo tinha sido excitante para ela o simples fato de ter um amigo, de modo que começou a gostar dele. Ele contava histórias de países distantes. Começara como empregado de convés, ganhando um pond por mês num navio da Allan Line que ia ao Canadá. Contou-lhe os nomes dos navios em que esteve e os diferentes serviços que fizera. Navegara pelo Estreito de Magellan e contou-lhe histórias dos terríveis patagónios. Disse que assentou em Buenos Aires e tinha voltado ao antigo país apenas para umas férias. Claro, o pai de Eveline descobrira o caso entre os dois e proibiu a filha de falar com Frank.

– Eu conheço esses caras marinheiros, ele disse.

Certo dia ele brigou com Frank e, depois disso, ela tinha que encontrar seu amor secretamente.

A noite se aprofundou na avenida. O branco das duas cartas em seu colo ficou indistinto. Uma era para Harry; a outra era para seu pai. Ernest tinha sido seu preferido, mas também gostava de Harry. Seu pai estava envelhecendo; ele sentiria sua falta. Às vezes ele podia ser amável. Não fazia muito tempo, quando ela estivera de cama por um dia, ele lera uma história de fantasma e fizera torradas. Num outro dia, quando sua mãe era viva, eles foram todos para um piquenique na Colina Howth. Lembrava do pai mexendo no chapéu da mãe para fazer as crianças rirem.

O tempo estava se esgotando, mas ela continuava sentada à janela, dobrando a cabeça contra a cortina da janela, inalando o cheiro de cretone empoeirado. De algum lugar da avenida ela podia ouvir um órgão tocando. O ar lhe era familiar. Estranho que ele retornasse exatamente naquela noite, para lembrá-la das promessas à mãe, a promessa de manter a casa unida o máximo que pudesse. Lembrava da última noite da mãe doente; ela estava novamente no quarto escuro no outro lado da sala, e lá fora podia ouvir um melancólico som da Itália. O tocador do órgão tinha sido mandado embora e deram-lhe seis pence. 

Lembrava do pai aprumando-se de volta ao quarto:

– Malditos italianos, vindo até aqui!

Enquanto meditava, a comovente visão do estado da mãe acabou por enfeitiçar o seu ser – aquela vida de sacrifícios triviais encerrando-se na loucura final. Arrepiou-se ao ouvir novamente a mãe pronunciar com uma insistência ridícula:

– Derevaun Seraun! Derevaun Seraun!

Ergueu-se em um repentino impulso de terror. Escapar! Tinha que escapar! Frank a salvaria. Ele lhe daria vida, talvez amor, também. Ela queria viver. Por que tinha que ser infeliz? Tinha direito à felicidade. Frank a envolveria nos braços. Ele a salvaria.

* * *

Ela estava no meio da multidão em movimento no porto de North Wall. Ele segurou sua mão, e ela sabia que ele estava lhe falando, dizendo repetidamente algo sobre a passagem. O porto estava cheio de soldados com malas marrons. Através das amplas entradas dos barracos ela vislumbrou o preto da embarcação, que estava ao lado do muro do cais. Não respondeu nada. Sentiu a face pálida e gélida e, do labirinto de seu sofrimento, rogou a Deus para lhe indicar o caminho, para mostrar qual era sua missão. A embarcação soltou na névoa um silvo triste. Se ela partisse, amanhã estaria no mar com Frank, navegando rumo a Buenos Aires. Suas passagens estavam reservadas. Seria possível a ela voltar atrás, depois de tudo que ele tinha feito? Seu sofrimento despertou uma náusea em seu corpo e ela continuou movendo os lábios em uma fervorosa e silenciosa prece.

Um sino tiniu em seu coração. Ela o sentiu tomar sua mão:

– Venha!

Todos os mares do mundo tombaram em seu peito. Ele tentava levá-la rumo a eles: ele a afogaria. Ela agarrou com ambas as mãos a grade de ferro.

– Venha!

Não! Não! Não! Era impossível. Em frenesi, suas mãos apertavam o ferro. Do meio dos mares ela soltou um grito de angústia!

 – Eveline! Evvy!

 Ele passou da barreira e lhe disse para segui-lo. Ordenaram-no seguir em frente, mas ele ainda a chamava. 

Ela lhe dirigiu um rosto branco, passivo, como um animal indefeso. Seus olhos não davam nenhum sinal de amor ou despedida ou agradecimento.

James Joyce

«BAILE NA ROÇA», POR CÂNDIDO PORTINARI

Assinalando a data do seu nascimento (29 de Dezembro de 1903), recorda-se mais uma vez neste espaço o grande pintor brasileiro Cândido Portinari, com a publicação da obra «Baile na Roça». Boas-festas para João Cândido Portinari e familiares, são os votos sinceros do Poet'anarquista. Muita saúde, acima de tudo!
Poet'anarquista
«Baile na Roça»
Cândido Portinari

Bom Ano Novo Pintura!
Poet'anarquista

ESPECIAL MÚSICAS DO MUNDO

E a música especial de hoje é...
(Especialíssima d'Ano Novo!)

«ORQUESTRA FILARMÓNICA DE VIENA»

CONCERTO DE ANO NOVO/ OS STRAUSS
Poet'anarquista

sábado, 28 de dezembro de 2013

FALTAM 3 DIAS...

Contagem decrescente
Faltam 3 dias...

Sorte e Saúde para o Novo Ano!
Poet'anarquista

CONTAGEM DECRESCENTE

Quase lá...
Faltam 3 dias para 2014

Sorte e Saúde para o Novo Ano!
Poet'anarquista

OUTROS CONTOS

«Um Pequeno Conto de Ano Novo», por Jacinto Lucas Pires.

«Um pequeno conto de Ano Novo»
Ano Novo, por Renot

50- «UM PEQUENO CONTO DE ANO NOVO»

Na noite de 31 de Dezembro Tristão acorda em sobressalto. Sonhava com um carrossel de cores quando um estrondo lhe atravessou a cabeça fazendo-o erguer da cama grande.

Tudo naquele quarto lhe parece grande e estrangeiro, paredes, portas, armários, mas o que sente não é exactamente medo. Mais uma saudade das cores do sonho. Ali, agora, tudo escuro e enevoado, como nos sonhos falsos dos filmes. Ele vira-se, desce da cama. Um miúdo de três anos e meio com uma cara clara e grandes, espantosos, olhos pretos.

No corredor, quadros com imagens de caça. Tristão pensa como são feios os rostos sem sobrancelhas dos cavaleiros. Para não ver mais nenhum, olha para baixo enquanto anda. Os pés descalços na madeira fria. Quando encontra uma porta, empurra-a.

A meio da sala, dá conta de ir a chorar baixinho. Esperava encontrar alguém depois da porta, mas não há ninguém. Nem a mãe, nem o pai. E, à medida que vai avançando para a outra porta, adensa-se o medo estremunhado no coração do miúdo. Por um lado, o choro ecoando naquele espaço. Por outro, o terror das coisas, tão quietas e imprecisas. A cadeira fora do lugar, o cinzeiro sujo. Tristão sente que, agora acordado, está dentro de um lugar muito mais vago e nevoento do que antes, quando sonhava. Um lugar vago e escuro e nevoento que é tal e qual um pesadelo.

Outra porta: luz, música. Homens com laços debaixo do queixo, mulheres com pescoços nus. Mostram-se espantados e alegres ao verem-no, mas são maus actores. E a luz é violenta, e alguém dá uma gargalhada grossa, e há o estrondo de bombas lá fora. Tristão não chora mais. Está em pânico, olhos perdidos. Vai atirar-se para o chão e enrolar-se sobre si próprio, fechado a qualquer palavra ou gesto, repetindo para dentro "não, não".

Mas o mordomo da empresa de organização de eventos vale o seu peso em ouro. Pousa a garrafa de champanhe, pega no miúdo. Sorri aos convidados e sai com ele para a janela, para ver o fogo-de-artifício. "Estás a ver? É isto o barulho", diz-lhe.

E Tristão serena porque pensa que aquelas cores explodindo na noite são tão parecidas com as do sonho, tão parecidas, que afinal talvez seja aquilo a "realidade".

Jacinto Lucas Pires

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

NICK DRAKE - «Pink Moon»
Pink Moon by Nick Drake on Grooveshark
Poet'anarquista

LUA ROSA

Eu vi escrito e vi dizerem
A lua rosa está a caminho
E nenhum de vocês ficará tão soberbo
A lua rosa vai pegar todos vocês
É uma lua rosa
É uma rosa rosa rosa rosa lua rosa...

Nick Drake

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

OUTROS CONTOS

«A Menina dos Fósforos», por Hans Christian Andersen.

«A Menina dos Fósforos»
Ilustração: Rachel Isadora

49- «A MENINA DOS FÓSFOROS»

 Fazia tanto frio! A neve não parava de cair no leste europeu, e a gélida noite aproximava-se. Aquela era a última noite de dezembro, véspera do dia de Ano Novo. Perdida no meio do frio intenso e da escuridão uma pobre menina seguia pela rua afora,  a cabeça descoberta e os pés descalços. É certo que ao sair de casa trazia um par de chinelos, mas estes não duraram muito tempo, porque eram uns chinelos que já tinham pertencido à mãe, e ficavam-lhe tão grandes, pesados e encharcados de neve que a menina os perdeu quando teve de atravessar a rua, correndo, para fugir de um bonde. Um dos chinelos desapareceu no meio da neve, e o outro foi apanhado por um garoto que o levou, pensando fazer dele um berço para a irmã mais nova brincar.
                 
Por isso, a menina seguia com os pés descalços e já roxos de frio; levava no bolso dianteiro do avental uma quantidade de fósforos, e estendia um maço deles a todos que passavam, oferecendo: — Quer comprar fósforos bons e baratos? — Mas o dia lhe tinha sido adverso. Ninguém comprara os fósforos, e, portanto, ela ainda não conseguira ganhar um tostão sequer. Sentia fome e frio, e estava com a cara pálida e as faces encovadas. Pobre criança! Os flocos de neve caíam-lhe sobre os cabelos compridos e loiros, que se encaracolavam graciosamente em volta do pescoço magrinho; mas ela nem pensava nos seus cabelos encaracolados. Através das janelas, as luzes vivas e o cheiro delicioso da carne assada chegavam à rua, porque era véspera de Ano Novo. Nisso, sim, é que ela pensava, o que lhe enchia de água a boca. 

                Sentou-se no chão e encolheu-se no canto de uma varanda. Sentia cada vez mais frio, mas não tinha coragem de voltar para casa, porque não vendera um único maço de fósforos, e não podia apresentar nem uma moeda; e o padrasto, malvado, seria capaz de lhe bater. E afinal, em casa também não havia calor. A família morava numa meia-água, um barraco, e o vento metia-se pelos buracos das telhas, apesar de terem tapado com farrapos e palha as fendas maiores. Tinha as mãos quase paralisadas com o frio. Ah, como o calorzinho de um fósforo aceso lhe faria bem! Se  tirasse um, um só palito, do maço, e o acendesse na parede para aquecer os dedos...! Pegou num fósforo e: Fcht!, a chama espirrou e o fósforo começou a queimar ! Parecia a chama quente e viva de uma vela, quando a menina a tapou com a mão.
                Mas, que luz era aquela? A menina imaginou que estava sentada em frente de uma lareira cheia de ferros rendilhados, com um guarda-fogo de cobre reluzente. O lume ardia com uma chama tão intensa, e dava um calor tão bom...!  Mas, o que se passava? A menina estendia já os pés para se aquecer, quando a chama se apagou e a lareira desapareceu. E viu que estava sentada sobre a neve, com a ponta do fósforo queimado na mão.
                 
Riscou outro fósforo, que se acendeu e brilhou, e o lugar em que a luz batia na parede tornou-se transparente como vidro. E a menina viu o interior de uma sala de jantar onde a mesa estava coberta por uma toalha branca, resplandecente de louças delicadas, e mesmo no meio da mesa havia um ganso assado, com recheio de ameixas e puré de batatas, que fumegava, espalhando um cheiro apetitoso. Mas, que surpresa e que alegria! De repente, o ganso saltou da travessa e rolou para o chão, com o garfo e a faca espetados nas costas, até junto da menina. O fósforo apagou-se, e a pobre menina só viu na sua frente a parede negra e fria.
                 
Acendeu um terceiro fósforo. Imediatamente se viu ajoelhada debaixo de uma enorme árvore de Natal. Era ainda maior e mais rica do que outra que tinha visto no último Natal, através da porta envidraçada, em casa de um rico comerciante. Milhares de velinhas ardiam nos ramos verdes, e figuras de todas as cores, como as que enfeitam as vitrines das lojas, pareciam sorrir para ela. A menina levantou ambas as mãos para a árvore, mas o fósforo apagou-se, e todas as velas de Natal começaram a subir, a subir, e ela percebeu então que eram apenas as estrelas a brilhar no céu. Uma estrela maior do que as outras desceu em direção à terra, deixando atrás de si um comprido rastro de luz.
                 
«Foi alguém que morreu», pensou para consigo a menina; porque a avó, a única pessoa que tinha sido boa para ela, mas que já não era viva, dizia-lhe à vezes: «Quando vires uma estrela cadente, um meteorito, é uma alma que vai a caminho do céu.»
                 
Esfregou ainda mais outro fósforo na parede: fez-se uma grande luz, e no meio apareceu a avó, de pé, com uma expressão muito suave, cheia de felicidade!

— Avó! — gritou a menina — leva-me contigo! Quando este fósforo se apagar, eu sei que já não estarás aqui. Vais desaparecer como a lareira, como o ganso assado, e como a árvore de Natal, tão linda. Riscou imediatamente o punhado de fósforos que restava daquele maço, porque queria que a avó continuasse junto dela, e os fósforos espalharam em redor uma luz tão brilhante como se fosse dia. Nunca a avó lhe parecera tão alta nem tão bonita. Tomou a neta nos braços e, soltando os pés da terra, no meio daquele resplendor, voaram ambas tão alto, tão alto, que já não podiam sentir frio, nem fome, nem desgostos, porque tinham chegado ao reino de Deus.

                 Mas ali, naquele canto, junto do portal, quando rompeu a manhã gelada, estava caída uma menina, com as faces roxas, um sorriso nos lábios… morta de frio, na última noite do ano. O dia de Ano Novo nasceu, indiferente ao pequenino cadáver, que ainda tinha no regaço um punhado de fósforos. — Coitadinha, parece que tentou aquecer-se! — exclamou alguém. Mas nunca ninguém soube quantas coisas lindas a menina viu à luz dos fósforos, nem o brilho com que entrou, na companhia da avó, no Ano Novo.

Hans Christian Andersen

ESPECIAL MÚSICAS DO MUNDO

E a música especial de hoje é...
(27 Dezembro de 1901, nasce a cantora e actriz alemã, Marlene Dietrich)

MARLENE DIETRICH - «Lili Marleen»
Lili Marleen by Marlene Dietrich on Grooveshark
Poet'anarquista

LILI MARLEEN

Em frente ao quartel
Diante do portão
Havia um poste com um lampião
E se ele ainda estiver lá
Lá desejamos nos reencontrar
Queremos junto ao lampião ficar
Como outrora, Lili Marlene.

Nossas duas sombras
Pareciam uma só
Tínhamos tanto amor
Que todos logo percebiam
E toda a gente ficava a contemplar
Quando estávamos junto ao lampião
Como outrora, Lili Marlene.

Gritou o sentinela
Que soaram o toque de recolher
(Um atraso) pode te custar três dias
Companheiro, já estou indo
E então dissemos adeus
Como gostaria de ir contigo
Contigo, Lili Marlene.

O lampião conhece teus passos
Teu lindo caminhar
Todas as noites ele queima
Mas há tempos se esqueceu de mim
E, caso algo ruim me aconteça
Quem vai estar junto ao lampião
Com você, Lili Marlene ?

Do tranquilo céu
Das profundezas da terra
Me surge como em sonho
Teu rosto amado
Envolto na névoa da noite
Será que voltarei para nosso lampião
Como outrora, Lili Marlene.

Marlene Dietrich

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(27 de Dezembro de 2004, morre o guitarrista norte-americano, Hank Garland)

HANK GARLAND - «Sugarfoot Rag»

CARTOON versus QUADRA

O Natal dos Portugueses
HenriCartoon

«O NATAL DOS PORTUGUESES»

Dez. 2013
No dia 24, antes da meia-noite…

-Ora bolas, quem apagou a luz?
Sempre o mesmo nestas alturas…

Dez.2013
Depois a 25, pra quem se afoite…

«Portugueses, vergámos a cruz!»

-Estava bem melhor às escuras…
Tem dias em que prefiro a noite!!

POETA

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

LEONARD COHEN - «Democracy»
Democracy by Leonard Cohen on Grooveshark
Poet'anarquista

DEMOCRACIA

Está chegando através de um furo no ar
das noites na Praça Tiananmen
Está vindo a sensação
que isto não é exatamente verdadeiro
ou é real, mas não é exatamente lá
Das guerras contra, desordem
da noite e sirenes, dia
dos fogos dos sem-teto
das cinzas do gay:  Democracia
está vindo para os EUA

Ele está vindo através de uma racha na parede
numa inundação visionária de álcool
da conta surpreendentes
do Sermão da Montanha
que não tenho a pretensão de entender em tudo
Está vindo o silêncio
no cais da baía
do bravo, o negrito, o maltratado
coração do Chevrolet: Democracia
está vindo para os EUA

Está vindo da tristeza na rua
os lugares sagrados onde as raças se encontram
da cadeia homicida '
que desce em cada cozinha
para determinar quem será e quem vai comer
A partir dos poços de deceção
onde as mulheres se ajoelham para orar
para a graça de Deus no deserto aqui
e o deserto longe: Democracia
está vindo para os EUA

navegar, navegar no
Poderoso navio de Estado!
para as margens de necessidade
Passado os Recifes de ganância
Através das tempestades de ódio
navegar, navegar, navegar, navegar

Ele está vindo para a América primeiro
o berço do melhor e do pior
É aqui que temos o intervalo
e os mecanismos de mudança
e é aqui que tem a sede espiritual
É aqui a família está quebrada
e é aqui a palavra só
que o coração tem que abrir
de uma maneira fundamental: Democracia
está vindo para os EUA

Está vindo das mulheres e os homens
O bebé, vamos fazer amor de novo
Vamos descer tão fundo
rio vai chorar
e a montanha vai gritar Amém!
Ele está vindo como a inundação das marés
sob a influência lunar
imperial, misterioso
em ordem amorosa: Democracia
está vindo para os EUA

navegar, navegar em

Eu sou sentimental, se você sabe o que quero dizer
Eu amo o país, mas eu não posso suportar a cena
E eu sou nem de esquerda ou direita
Estou apenas a ficar em casa esta noite
se perder em que a tela sem esperança pouco
Mas eu sou teimoso como os sacos de lixo
que o tempo não pode decair
eu sou lixo, mas eu ainda estou segurando buquê
este pouco selvagem: Democracia
está vindo para os EUA

Leonard Cohen

OUTROS CONTOS

«O Medo», por Guy de Maupassant.

«O Medo»
Pormenor de «O Grito», por Edvard Munch

48- «O MEDO»

Depois de jantarmos, retornamos ao convés do navio. Diante de nós, a superfície lisa do Mediterrâneo refletia uma lua tranqüila. O enorme navio sulcava as águas sob um céu semeado de estrelas, e a esteira branca que deixava para trás brincava em espumas, parecendo retorcer-se em claridades tão buliçosas, que se poderia dizer que a luz da lua estava fervendo.

Seis ou sete homens permanecíamos ali, em silenciosa admiração, enquanto viajávamos para a África distante. O capitão retomou a conversa que havíamos tido durante o jantar:

— Sim, naquele dia eu tive medo. Meu navio permaneceu seis horas açoitado pelas ondas, com um penhasco encravado no ventre. Por sorte, à noite passou um navio mercante inglês, que nos viu e nos recolheu.

Então um dos presentes resolveu contestar a expressão usada pelo capitão. Era um homem alto, de cara bronzeada pelo sol, com aspecto grave; um desses homens que à primeira vista nos dão a impressão de haver percorrido vastos países desconhecidos em meio a incessantes perigos, e cujo olhar sereno parecia guardar, na sua profundidade, algo das estranhas paisagens que vira; um desses homens que adivinhamos dotado de têmpera extraordinária.

— Capitão, o Sr. diz que teve medo, mas não o creio. O Sr. parece enganar-se sobre a palavra e sobre a sensação que teve. Um homem enérgico como o senhor nunca sente medo diante do perigo. Sente emoção, nervosismo, ansiedade, mas medo é outra coisa.

— Discordo! Asseguro-vos que tive medo!

— Permita-me que lhe explique. Até os homens mais intrépidos podem ter medo. Mas o medo é algo espantoso, uma sensação atroz, como uma desintegração da alma, um espasmo horrível do pensamento e do coração, cuja simples recordação dá estremecimentos de angústia. Mas quando se é valente, isso não ocorre nem diante de uma batalha, nem diante da morte inevitável nem diante de nenhuma das formas conhecidas do perigo. Acontece em certas circunstâncias anormais, sob certas influências misteriosas e diante de riscos indefinidos. O verdadeiro medo é como uma reminiscência dos fantásticos terrores primitivos. Um homem que acredita em fantasmas, e que imagina ver um espectro na noite, deve experimentar o medo em todo seu espantoso horror.

Eu descobri o que de fato é o medo há uns dez anos, em pleno dia. E pude experimentá-lo também no último inverno, numa noite de dezembro. Na verdade, passei já por muitas situações, muitos reveses, muitas aventuras que pareciam mortais: em certa ocasião, uns ladrões me deixaram como morto; na América, fui condenado à forca por motivo de rebelião; na China, fui jogado ao mar, da proa de um navio. Cada vez que me julguei perdido, tomei minhas decisões imediatamente, sem vacilar, e até mesmo sem pensar. Mas isso não é o medo.

Observem, senhores, que entre os orientais a vida não conta para nada. Logo se resignam. As noites são claras, órfãs das sombrias inquietudes que atormentam os cérebros nos países frios. No Oriente pode-se conhecer o pânico, mas se ignora o medo. Vou narrar-lhes o que me aconteceu na África.

Percorria eu as grande planícies ao sul de Ouargla. É um dos mais estranhos países do mundo. Os senhores conhecem a areia fina, a areia lisa das intermináveis praias do oceano. Imaginem agora o próprio oceano convertido em areia, em meio a um furacão. Imaginem uma tempestade silenciosa das ondas imóveis de pó amarelo. Essas ondas desiguais são altas como montanhas, encrespadas como torrentes desencadeadas, mas maiores ainda, e estriadas como a ágata. Sobre esse mar furioso, mudo e sem movimento, o sol devorador do Sul lança sua chama implacável e direta. Tem-se que subir nessas ondas de cinza dourada, subir mais uma vez, mais outra, subir sem cessar, sem descanso e sem proteção. Os animais se atolam até os joelhos, e resvalam ao descer pela outra vertente das surpreendentes colinas.

Éramos dois amigos, escoltados por oito spahis seguidos de quatro camelos com seus cameleiros. Íamos por aquele deserto ardente sem falar, assolados pelo calor, pelo cansaço e pela sede. Subitamente um dos homens deu um grito, e todos paramos e permanecemos imóveis, surpreendidos por um inexplicável fenômeno que os viajantes dessas regiões perdidas conhecem bem. Em algum lugar, perto de nós, numa direção indeterminada, soava um misterioso tambor, o misterioso tambor das dunas. Soava claramente, ora mais vibrante ora menos, cessando e logo recomeçando seu som fantástico. Os árabes, espantados, olhavam-se uns aos outros. Um deles disse:

— A morte vem para cima de nós.

De repente meu companheiro, meu amigo quase como um irmão, caiu do cavalo, de bruços, mortalmente atingido pela insolação. Durante duas horas, enquanto eu procurava em vão salvá-lo, aquele tambor, sempre impossível de localizar, me aturdia os ouvidos com seu ruído monótono, intermitente, inexplicável. Então senti que o medo, o verdadeiro medo, o horrível medo, me penetrava até à medula dos ossos, diante daquele cadáver querido, naquela depressão vergastada pelo sol entre quatro montes de areia, enquanto o eco desconhecido nos lançava, a duzentas léguas do povoado francês mais próximo, o dobre rápido de um inatingível tambor. Naquele dia eu compreendi o que é ter medo. Mas houve uma outra vez em que compreendi melhor ainda…

— Perdão, senhor, mas o que era esse tambor? — interrompeu o capitão.

— Não sei. Ninguém sabe. Os oficiais que depararam com esse surpreendente ruído geralmente o atribuem ao eco aumentado, multiplicado, desmesuradamente insuflado pelas ondulações das dunas, de um granizo de areia que o vento lança contra uma mata de ervas secas, pois já se notou que o fenômeno sempre se produz nas proximidades de pequenas plantas queimadas pelo sol, duras como o pergaminho. Segundo essa teoria, aquele tambor nada mais seria do que uma espécie de reflexo ampliado desse som. Mas eu só vim a saber disso mais tarde.

Agora vou lhes contar minha segunda sensação de medo. Aconteceu no inverno passado, num bosque do Noroeste da França. O céu estava tão sombrio naquele dia, que a noite caiu duas horas mais cedo. Era meu guia um camponês, que caminhava ao meu lado por uma trilha estreita numa floresta de abetos. O vento arrancava dessas árvores uma espécie de alarido. Por entre as copas das árvores eu via as nuvens que corriam, como que fugindo de um cataclismo. Às vezes, ante uma forte lufada de vento, todo o bosque se inclinava no mesmo sentido, com um gemido de sofrimento, e o frio me invadia, apesar do meu passo rápido e da minha grossa roupa de lã.

Tínhamos que chegar à casa de um guarda florestal, para jantar e dormir. Não estava muito distante, e eu me encontrava ali como caçador. Meu guia às vezes levantava os olhos e murmurava: “Que tempo triste!” Falou-me sobre as pessoas para cuja casa nos dirigíamos. O pai havia matado um caçador furtivo, dois anos antes, e desde então andava preocupado, como que atormentado por uma lembrança. Seus filhos, já casados, moravam com ele.

A escuridão era profunda, e eu não via nada ao redor de mim. As ramagens de todas as árvores, ao agitar-se, enchiam a noite de um rumor incessante. Afinal vi uma luz, e meu guia chamou a uma porta. Ouvimos gritos de mulheres lá dentro. Logo depois, uma voz de homem, como que estrangulada, perguntou: “Quem está aí?” Meu guia se identificou, a porta se abriu e entramos.

A cena que vimos é impossível de esquecer. Um homem velho, de cabelos brancos e com olhar arregalado e fixo, como de louco, nos aguardava de pé no meio da cozinha, tendo na mão uma espingarda carregada. Dois rapazes com pedaços de pau guardavam a porta. Na obscuridade, percebemos duas mulheres ajoelhadas, com os rostos voltados para a parede. Identificamo-nos, explicamos o motivo de nossa presença ali, e então o velho largou a arma e deu ordens para que nos preparassem acomodações. As duas mulheres continuavam imóveis, então ele me explicou: “Há exatamente dois anos, numa noite como esta, eu matei um homem. Quando se completou um ano, ele veio chamar-me, e esta noite eu estou certo de que voltará novamente. Por isso estamos todos intranqüilos”.

Procurei tranqüilizá-los o melhor que pude, mas intimamente estava satisfeito por ter chegado exatamente naquela noite e presenciar aquele espetáculo de terror supersticioso. Contei algumas histórias, e acabei por acalmá-los quase por completo.

Perto da lareira, um cachorro velho e quase cego — um desses cães que nos lembram alguma pessoa conhecida — dormia com o focinho entre as patas. Fora, a tormenta açoitava a choupana. Por uma estreita vidraça eu via passar, projetadas por grandes relâmpagos, as sombras de árvores agitadas pelo vento. Apesar dos meus esforços, aquela gente estava dominada por um terror profundo. Cada vez que eu parava de falar, todos os ouvidos estavam atentos ao menor ruído. Cansado desses temores imbecis, eu já ia recolher-me quando o velho pulou da cadeira e pegou de novo a espingarda, balbuciando com voz trêmula: “Aí está! Aí está! Já o estou ouvindo!”

As duas mulheres voltaram a cair de joelhos, cobrindo os rostos, e os filhos pegaram de novo os seus paus. Já ia eu tentar novamente tranquilizá-los, quando o cachorro despertou bruscamente, levantou a cabeça, esticou o pescoço, olhando para a lareira com seu olhar quase apagado, e lançou um desses ganidos lúgubres, que fazem estremecer os caminhantes quando cruzam de noite locais ermos. Todos os olhos se voltaram para o animal, que permanecia agora imóvel sobre as patas, como obcecado por uma visão. O cão se pôs a ganir frente a algo invisível, desconhecido, espantoso sem dúvida, pois todo seu pelo estava eriçado. Lívido, o guarda gritou: “Ele o está farejando! Está farejando! Ele estava exatamente aí, quando o matei!”

As mulheres, como loucas, fizeram coro aos ganidos do cachorro. Um grande calafrio me percorreu a espinha. A visão do animal naquele lugar, naquela hora, em meio a pessoas apavoradas, era algo horrível. Durante uma meia hora o cão ganiu sem mover-se. Um medo espantoso me ia penetrando. Medo de quê? Lá sei eu. Era medo, pura e simplesmente.

Permanecemos imóveis, lívidos, à espera de um acontecimento horrendo, com o ouvido atento, o coração agitado, transtornados ao menor ruído. O cachorro se pôs a dar voltas ao redor da cozinha, farejando as paredes, sem cessar de gemer. O animal nos punha loucos. Então o meu guia se lançou sobre ele, numa espécie de paroxismo de terror furioso, agarrou-o, abriu uma porta de trás, que dava para uma espécie de cercado, e o lançou para fora da casa.

O cachorro se calou logo, e permanecemos algum tempo envoltos num silêncio ainda mais terrível. De repente, todos tivemos uma espécie de sobressalto: algo deslizava contra a parede externa, em direção ao bosque. Depois passou junto à porta, que pareceu apalpar com mãos trémulas. Novo silêncio durante uns dois minutos, que nos deixou aterrorizados. Depois voltou, roçando sempre a parede, como uma criança com suas unhas. Subitamente apareceu junto à vidraça uma cabeça branca, com dois olhos luminosos como os das feras, e emitiu um gemido — um murmúrio como de quem se lamenta.

Nesse momento se ouviu um ruído formidável. O velho havia disparado sua arma, e em seguida os filhos se precipitaram para a vidraça, cobrindo-a com o tampo de uma grande mesa que reviraram. Com o estrépito do inesperado disparo, senti tal angústia no coração, na alma e no corpo, que me imaginei prestes a perder os sentidos, disposto a morrer de medo. Continuamos ali até o amanhecer, incapazes de mover-nos, de dizer uma palavra, crispados, desvairados. Ninguém se atreveu a abrir a porta antes de entrever alguma claridade fora, pelas frestas das madeiras.

Ao lado do muro, junto à porta, jazia o corpo do velho cachorro, com o focinho desfeito por uma bala. Havia saído do cercado, e procurara abrir alguma passagem junto à porta.

Naquela noite eu não corri nenhum perigo. Mas preferiria voltar a enfrentar todos os riscos mais terríveis que já enfrentei, para não ter de viver aquele único minuto em que o tiro foi disparado na cabeça que surgiu na vidraça.

Guy de Maupassant