«Dois Ovos ao fim da Tarde», por Fernando Namora.
«Dois Ovos ao fim da Tarde»
O Ovo ou Urutu, por Tarsila do Amaral/ 1928
723- «DOIS OVOS AO FIM DA TARDE»
(Conto verídico sobre o pintor Luís Dourdil)
Quando o homem saiu de casa, pensou apenas em que lhe
saberia bem ir a pé até ao fundo da Alameda. Não eram muitas as vezes em que
podia voltar as costas ao autocarro e dar-se a esse apetecido exercício. Sem o
aguilhão do relógio. Sem moer-se com atrasos. Tinha um emprego que o enjaulava
das tantas da manhã (que cedo acordavam as manhãs!) às tantas da tarde (que
ronceiras eram as tardes!), com as nádegas pregadas a um banco alto, o cavalete
na frente, a mão contrafeita a sujar papéis de olhos fechados, a cidade espalmada
nos vidros da janela como um rosto triste (mas a tristura era dele, que a via
tão perto e tão distante), e quando, enfim, se abriam as portas da prisão pouco
mais tempo lhe restava do que, num rufo, tomava a bica no café mais próximo. Depois
vinha o jornal lido no autocarro, o jantar e o serão que não chegava a nada
para o muito que lhe daria gosto fazer. A mulher nem se atrevia a propor um
passeio. Sabia respeitar aquela necessidade de iludir o sonho e tricotava
enquanto ele, numa nuvem de cigarros, refundia, noite após noite, o que
começara na véspera. Havia os domingos, é certo, mas os domingos eram a ressaca
da semana: a indolência merecida ou desenganada, o pequeno almoço na cama, a
música do rádio, a matiné no cinema do bairro e, sobretudo, o fastio das ruas
em que a vida se adiava. A verdade é que, quando chegava o Verão, sentia as
juntas perras, a moleza pegada ao corpo e, debalde, fugia ao langoroso convite
dos cadeirões das esplanadas. Valia-lhe ser um peso pluma. Mas agora que, por
um acaso da sorte e valendo-se de um duvidoso atestado de doença, interrompera
o emprego para aceitar aquele trabalho, não desperdiçaria o ensejo de um pouco
de marcha diária, já que da sua casa à Alameda nem dois quilómetros distavam. Marchar,
numa rotina de sedentarismo (tanto os da alma como os dos músculos) também
sabia a libertação. O homem, pois, saiu de casa a foi ao atravessar a rua que
se lembrou dos ovos. Sem os ovos, nada feito. Estudara as coisas com rigorosa
minúcia. Desavezado a certos lugares, e como nunca acompanhara a mulher nas compras,
voltou atrás e gritou para cima, pelos roufenhos do intercomunicador:
- Maria, onde poderei encontrar ovos?
A mulher, com risos na voz, elucidou-o:
-Fica-te em caminho. Na Charcutaria "Pôr do Sol".
A Charcutaria "Pôr do Sol". Essa, conhecia ele. Ali a dois passos. Tomava
lá café, nada mau, e só um herege podia ficar indiferente à exuberância da
apetitosa montra, desde chourições aos papos de anjo de Amarante. Ovos, numa
luxaria daquelas? A ideia intimidava-o. Entrou, porém armando-se com o alibi de
precisar de cigarros, para o caso de se sentir em apuros. Viu-se, por momentos,
aturdido com o labirinto de escaparates, mas logo um senhor mavioso, que o
observara de longe, destes para quem "o cliente tem sempre razão", veio
desembaraça-lo de hesitações.
-Tem a bondade. Vossa Excelência que deseja?
Adiou a resposta com um distraído ou ainda perturbado:
-Boa tarde.
-Boa tarde a Vossa Excelência. Deseja então...
-Ovos.
-Com certeza. Tem por onde escolher.
-Queria dos melhores.
O lojista, que parecia passado a ferro de cima a baixo, assentiu numa
reverência e, guiando o cliente até uma pilha de tabuleiros, apontou com a mão
esmerada:
-Aqui os tem Vossa Excelência.
O homem pegou num dos ovos, rodou-o vagarosamente entre os dedos, avaliou-lhe o
peso e, quando ia a apreciá-lo contra a luz, o lojista interrompeu-o, já numa
ênfase um tudo-nada agastada:
-São de primeira qualidade.Com carimbo. Vêm directamente de Albarraque, do
produtor. Ovos saloios- e diluiu o olhar impaciente pelo que se passava em
redor.
O pormenor do carimbo é que pareceu impressionar o cliente. Pois, lá estava o
carimbo. Para quem não estivesse afeito aos códigos de mercancia, poderia
parecer outra coisa, mas eram mesmo letras, números-um carimbo. Ficava a saber
que por aí, se conheciam os ovos de confiança.
-Bem, já vejo que são bons. E suponho que frescos.
-Sem dúvida.
O lojista aguardou uma ordem, ou seja, que o freguês mandasse embalar a
quantidade desejada, e, de raspão, atentou em que ele nada trazia consigo, nem
um saquinho disfarçado que servisse para transportar os ovos. Mais que ia dizer-lhe
para mandar a encomenda a casa.
-Quantas dúzias?
-Quero dois.
-Disse duas?
-Dois. Dois ovos.
-Vossa Excelência manda.
A imperturbabilidade do lojista era um modelo de controlo profissional das
emoções. De calo no ofício. E também de natural fidalguia, perfeitamente
compatível com uma actividade que alguns tinham por servil. Um senhor, enfim. Chamou
a empregada para embrulhar os dois ovos e agradeceu como se tivesse tratado de
uma compra choruda.
O homem esteve a trabalhar toda a tarde...
No dia seguinte, a cena da compra simplificou-se.
O senhor de falas corteses viu-o do balcão, antecipou-se a um marçano, talvez
para que não houvesse perda de tempo e inquiriu:
-Hoje, Vossa Excelência deseja...
-Os ovos. Dois. Com carimbo.
Enquanto os escolhia no tabuleiro, o lojista repetiu:
-Dois. Com carimbo. Ei-los. Mais nada?
-Mais nada.
O outro franziu a testa ainda lisa. Só a testa. Mas, ao convidar o freguês a
acompanhá-lo na cariciosa mirada pelos artigos expostos, via-se que lhe era
difícil aceitar o vexame de uma compra que não justificava que alguém pusesse
os pés na mais ordinária das lojas.
-Temos um esplêndido queijo de Azeitão. Talvez Vossa Excelência...Mas se
prefere da Serra...
-Não quero queijo.
-Ou fiambre. Não encontra que se compare.
-Apenas os ovos.
-Vossa Excelência manda.
À despedida, foi com um tempero de discreta ironia que o senhor afável
perguntou:
-Vossa Excelência ficou satisfeito com os ovos de ontem?
-Eram perfeitos.
-Ainda bem. Nunca tivemos uma reclamação.
E o mesmo diálogo com a ocasional variante de meias palavras de embuçada
intenção, nos dias que se seguiram. Mas, à quarta vez, depois de o lojista o
seduzir em vão com atuns, salpicões, alheiras de Mirandela, intrigado com a
história dos ovos... bastar-se com os ovos em três jantares sucessivos? (e o
almoço, com mil diabos?) e nem ao menos se consolar com um naco de presunto ou
uma talhada de queijo!...Por isso, o estranho cliente era uma carga de ossos.
-Boa tarde.
-Boas tardes a Vossa Excelência.
-Dois ovos como os de ontem.
-Ou como os de anteontem...
Sorriam ambos. A resvalar para uma intimidade constrangida.
E estavam naquilo, à mesma hora. E, por ser à mesma hora, o lojista já o
esperava à porta.
-Os dois ovinhos do costume, não é verdade?
-Dois.
-A que horas fecha a charcutaria?
-Às dez, caro senhor.
-Então passarei a vir à roda das nove.
O lojista passou a mão branda pelos cabelos grisalhos, que a brilhantina
escurecia e domesticava. Encorajava-se a um reparo.
-Vossa Excelência desculpará a impertinência: mas porque não leva de cada vez
uma dúzia de ovos, uma dúzia ou outra quantidade qualquer, evitando o incómodo
de...
-Prefiro assim.
-Vossa Excelência manda.
Os gestos do lojista, porém, a custo dissimulavam o nervosismo, para não dizer
a irritação. Aguardava o cliente à hora prevista...
-Vossa Excelência tem frigorífico?
-Tenho, mas porque me pergunta?
-É que se permite uma sugestão, poderia abastecer-se com uma quantidade
razoável de ovos, visto que, no frigorífico, conservam-se muitos dias.
-Bem sei. Mas quero-os bem frescos. Dois de cada vez.
-Vossa Excelência é casado? Perdoe o atrevimento.
-Atrevimento? De modo nenhum! Sou casado, sou. Há uns bons anos.
-E janta, portanto, em casa.
-Quase sempre.
-Ah.
E não ousou ir mais longe. Em cada dia que entre ambos se insinuava uma
convivência de ambiguidades, o lojista avançava em passo miúdo na tentativa de
decifrar o mistério...
-Pelo que deduzo, Vossa Excelência gosta muito de ovos.
-Nem por isso.
Era demais. Aquilo excedia o que a curiosidade e a compostura de um homem
poderiam suportar. Sentia-se humilhado. Sentia-se humilhado desde o primeiro
dia, para que negá-lo? Embrulhou os ovos à má cara, despediu o freguês sem a saudação habitual. Porém num repente, foi sobre ele antes que passasse a
porta, e disse:
-Então os ovos são para alguém da família...
-Não, são para mim.
O lojista mais não pôde que abrir a boca...
-Na vez seguinte, o lojista escolheu com enfatuado desvelo os dois ovos...
-Sabe Vossa Excelência que tenho prazer em vender ovos? É que, para mim são um
pitéu. Omelete com salsa...
-Pois eu nem com salsa nem sem ela.
-Ah.
No dia seguinte o lojista aguardava-o junto ao balcão acompanhado de uma
senhora e um rapazola de uns catorze anos..., o grupo que parecia posar para um
retrato, fitava-o com uma avidez imbuída de censura e reserva. Quanto ao lojista,
entre o acusador e o triunfante: "Eu não vos dizia? É este."
Aproximou-se
de voz melada e irónica:
-Os dois ovinhos do costume, claro está.
-Aqui tem Vossa Excelência. Bom proveito.
No dia seguinte...
-Perdoe Vossa Excelência: gostaria de confessar uma curiosidade.
-Estou a ouvi-lo.
-Bom o caso é este: os ovos, os dois ovos diários, não são para o senhor comer,
não são para ninguém comer, pois foi o senhor a dizê-lo; então para que servem?
-Muito simples: para pintar.
O lojista recuou, varado pela zombaria..., apontou o dedo trémulo...
-Diz Vossa Excelência que são para pintar. Tem graça. Carradas de graça. Para
pintar de amarelo, bem entendido.
-De azul. Ou de violeta, vermelho, negro. -E após ter sublinhado uma pausa, falando
espaçadamente e com uma deslavada inocência:-Mas às vezes também de amarelo, de facto.
Olhando à roda, não fosse alguém reparar no diálogo, o lojista retorquiu, sem
já moderar o sarcasmo:
-De azul, de preto, de violeta. Pintando!
-Com ovos.
-O senhor, o senhor! -Estava prestes a pôr de banda todo o resguardo nas suas
reacções. Estava preste a esquecer, pela primeira vez na vida, que um cliente é
um cliente. Mesmo sendo tonto ou lunático. Ou provocador. -Mas pintar aonde?
-Numa parede. No fundo da Alameda. Naquelas obras ao lado do Cinema.
-Ao lado do...No fundo da Alameda.
Há um tapume. É nessas obras.
-Mas isso é um café.
Vai ser Grande. O maior de Lisboa.
-A pintar.
-Com ovos, sim. O senhor pode ir lá ver.
-E vou. Quando?
-Quando quiser. Agora mesmo.
O lojista ainda incrédulo disse: -E poderei ir depois de fechar a charcutaria?
-Claro que pode, agora já sabe o sítio.
-Então lá estarei.
O homem divertido, foi saboreando a conversa ao longo da rua. Chegou à Alameda
sem dar por isso. Começou a preparar a emulsão no almofariz. Aquilo servido
numa travessa passaria por maionese. De um lado a gema de ovo misturada com o
óleo de linhaça; do outro o friso de latas com os pigmentos. Como estes eram
uma poeira seca, aderiam ao pincel molhado na emulsão. Nada de colas. Estudara
a técnica com todo o vagar. Lera alfarrábios, fizera experiências. A gema de
ovo fora até ao século XVI um dos veículos das tintas. Os antigos não eram
tolos. Para eles a arte começava na oficina. Interessara-lhes a gema de ovo,
cuja albumina ligava perfeitamente a água ao óleo. Pintura com séculos de
confirmação, resistindo às maiores usuras. Tinha de resultar. Mas quanto fizera
sofrer o pobre lojista! Exagerara. Sem premeditação, é certo empurrado pelas
circunstâncias, pelos espantos, pelos tais laconismos. No entanto, talvez o
enigma tivesse agitado a monotonia daquele viver. Batiam à porta, devia ser
ele. Disse para o ajudante:
-Vai abrir que certamente é o senhor dos ovos.
-Procuro uma pessoa que pinta aí nas obras..., sentiu-se engolido por um túnel
de surpresas: andaimes, o esgazeamento de luzes cruas. Não viu logo o seu cliente, porque este sumia-se no poleiro de
cavaletes. Mas de lá lhe chegou uma voz familiar:
-Trepe a essa mesa, é mais fácil.
Levantou a cabeça para o alto, na direcção das lâmpadas que tinham o feitio de
olhos de rã. Uma vasta parede de cal e areia, por onde progredia, uma labareda
de cores, a incendiar os esboços de carvão, representando pessoas com o ar
extasiado de quem aguarda um cometa no céu. Ei-los, os vermelhos, os azuis, os
amarelos. Aceitou a mão que o ajudava. O cliente vestia um fato de macaco e, na
face encovada, ondeava a magia das sombras.
-Repare- dizia-lhe o pintor, numa inflexão paciente e bem humorada-, repare
nesse almofariz. E nas cascas dos ovos. É assim que se faz a mistura. Um pouco
de pó vermelho e aí temos o pincel a fazer das suas.
O visitante permanece silencioso. Esforça-se por recuperar a sua personalidade
de lojista...
-Razão tinha Vossa Excelência. Dois ovos por dia, claro. Não precisava de mais.
Desculpe ter duvidado. Confesso que ainda me sinto confuso. Vender ovos para
alguém pintar! -Apoiou-se no estrado, fitando o cliente com serena admiração:
-Tenho a honra de estar falando com...
-Luís Dourdil, pintor.
-Agradecido a Vossa Excelência. O pior é que a minha mulher não vai acreditar.
Fernando Namora