«O Quarteto dos Agostinhos», por Eveline Sambraz.
Vila Viçosa/ Paço Ducal
«Convento e Igreja dos Agostinhos»
Vila Viçosa/ Terreiro do Paço
Desenho por D. Carlos de Bragança/ 1885
76- «O QUARTETO DOS AGOSTINHOS»
(1ª Parte - Peças Soltas no Interior da Circunferência)
Agora, quando apenas resto eu para contar a história,
passados que vão muitos anos sobre o nosso último encontro, é altura de dar a
conhecer melhor este quarteto que tomou o nome “dos Agostinhos”. É preciso
olhar para uma velha fotografia, com mais de sessenta anos, para que as
palavras possam fluir e completar aquilo que a imagem, só por si, não consegue
transmitir. Ali estamos as quatro, fazendo pose para o fotógrafo, com os nossos
vestidos de tecido estampado, meias brancas, curtas, e sapatos rasos. Sorrisos
de orelha a orelha. Nos nossos quinze anos, simultaneamente inocentes e
travessos. Como cenário, o jardim dos Agostinhos. Ainda se vê, no lado direito
da fotografia, um bom pedaço do muro do lago. Foi nesse dia que assumimos o
nome “dos Agostinhos”.
Lago do Jardim dos Agostinhos
O Cisne
Antes, o nome do grupo era um pouco mais complexo –
“Quarteto a Perder-se nas Brumas dos Caminhos” – Complexo, mas com lógica. Eu
explico: A Eva Potra, a intelectual do grupo, tinha ido buscar o nome ao verso
de um soneto da Florbela. Dizia a Eva que, tendo todas nós nascido em 1930, ano
da morte da poeta, fazia todo o sentido adoptar esse nome para designar o
quarteto. E assim nos chamámos durante três anos. Mas havia que simplificar as
coisas. Afinal, quem éramos nós para ir buscar o nome a um verso daquela Poeta?!
***
(ERRANTE
Meu coração da cor dos rubros vinhos
Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.
Meu coração o místico profeta,
O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura...
Meu coração não chega lá decerto...
Não conhece o caminho nem o trilho,
Nem há memória desse sítio incerto...
Eu tecerei uns sonhos irreais...
Como essa mãe que viu partir o filho,
Como esse filho que não voltou mais!
Florbela Espanca)
***
E foi no dia em que tirámos essa foto no jardim dos Agostinhos que, a nós
próprias, atribuímos o novo nome. Já conhecem o nome de uma das integrantes do
grupo, a Eva, a nossa intelectual, conforme já foi dito. Não lhe atribuo essa
qualidade com ironia. Era um título merecido. Mais tarde haveria de fazer
carreira no mundo das letras. Mas cada coisa a seu tempo e em seu lugar. Lá
mais para a frente, voltaremos a falar da Eva Potra. Vou agora apresentar-lhes as restantes:
Chibía Milongo, azougada, muito irrequieta, lindíssima, era
a mais bonita do grupo. Nascida em Angola, vivia com os avós na parte velha da
vila, no interior da muralha. A Carmen Pazadiñas, espanhola de nascimento,
filha de refugiados da guerra civil de Espanha, vivia com uma família portuguesa que a tinha
recolhido. E eu, Eveline Sambraz, que serei a narradora desta história.
«O Quarteto dos Agostinhos»
«Eva * Chíbia * Carmen * Eveline»
Grupo de amigas tertulianas
(Os instrumentos só para a pose fotográfica)
Como
curiosidade quero acentuar que sou a única alentejana do grupo. E a única que aqui
nasceu e que aqui sempre viveu. Todas as outras, logo que completaram os
estudos possíveis no colégio da Vila, rumaram para outros futuros: A Eva, foi
para belas artes, em Lisboa. Aí, fez arquitectura, mas rapidamente começou a
escrever e a meter-se na política, deixando a arquitectura para outros. Presa
várias vezes, não foram poucas as ocasiões em que a visitei na prisão. A Chibía
regressou a Angola no início da década de sessenta, aonde também se deixou
imbuir pelo espírito nacionalista e passou a integrar um dos movimentos de
libertação que lutavam contra a presença portuguesa naquela colónia. Quanto à
Carmen Pazadiñas, voltou para Villanueva del Fresno, para se juntar aos membros
da sua família que escaparam à razia da guerra civil espanhola. Aí viveu
durante o resto da vida. Que não foi longa, aliás. Ah .... e eu .... que,
tirando o curso no Magistério, me tornei professora e durante quase quarenta anos de ensino,
sempre em escolas da vila ou arredores, me passaram pelas aulas centenas ou
mesmo milhares de alunos. Pois aqui têm todas as integrantes deste quarteto. A
todas elas, eu incluída, dedicarei mais algumas linhas, afim de que possam
conhecê-las melhor, lá mais para a frente, durante a narrativa.
«Rufino»
Caricatura (?), por JPGalhardas
O curioso é que
o quarteto esteve quase a ser um quinteto. O quinto elemento teria sido do sexo
masculino. Exactamente. O Rufino esteve prestes a fazer parte do grupo, mas a
gozação a que outros companheiros dele o submeteram impediu-o de fazer parte da
tertúlia. Nessa época, fazer parte de um grupo de raparigas, era assim uma
espécie de fraqueza e ele não esteve para aturar aquilo. Era, nessa altura, o
rapaz mais interessante de Vila Viçosa. Todas estávamos apaixonadas por ele e
hoje penso que a sua entrada no grupo teria sido um motivo de ciumeiras e discórdia
entre nós. Manteve-se afastado, mas sempre acompanhou, à distância, as nossas
actividades. Acabou por casar com a Chibía Milongo, e embora o casamento não
tivesse resultado, acompanhou-a quando ela quis regressar a Angola. Morreu por
lá. Está enterrado em Lubango, antiga cidade de Sá da Bandeira. Também voltarei
a referi-lo durante esta narrativa pois talvez seja ele o mais interessante
caso de vida. Como decerto já se aperceberam, éramos um grupo de raparigas que,
curiosas das coisas da vida, procurámos, dentro das limitações que a sociedade
calipolense dessa época oferecia, ver um pouco para além dessa mesma sociedade.
Não que a vila não oferecesse motivos de interesse. Era mesmo um exemplo de
povoação do interior, sendo apontada como modelo daquilo que o Alentejo tinha
de melhor. Já nessa altura possuía uma grande unidade fabril que, dependendo
das épocas do ano, dava trabalho a muitas dezenas ou mesmo centenas de pessoas.
Possuía bons estabelecimentos de ensino, que atraíam alunos das povoações em
volta e tinha uma vida associativa muito intensa, com várias sociedades,
artísticas e culturais, a rivalizarem entre si. Desde já aviso que não é minha
intenção fazer aqui uma análise da vida social de Vila Viçosa nessa altura,
apenas pretendo, com o que atrás ficou dito, recriar o contexto em que se
desenvolveu a amizade e relação daquele grupo de raparigas. E do que, sendo do
meu conhecimento, se passou antes. Assim como do que se passou a seguir.
Eveline Sambraz
(Continuação...)