«Cinco Escritos Morais»
Umberto Eco
1129- «CINCO ESCRITOS MORAIS»
[Excerto]
“Quando o outro entra em cena”
Procure… para o bem da discussão e do conforto em que
acredita, aceitar, mesmo que por um só instante, a hipótese de que Deus não
exista: que o homem, por um erro desajeitado do acaso, tenha surgido na Terra
entregue a sua condição de mortal e, como se não bastasse, condenado a ter
consciência disso e que seja, portanto, imperfeitíssimo entre os animais. […]
Esse homem, para encontrar coragem para esperar a morte,
tornou-se forçosamente um animal religioso, aspirando construir narrativas
capazes de fornecer-lhe uma explicação e um modelo, uma imagem exemplar. E
entre tantas que consegue imaginar – algumas fulgurantes, outras terríveis,
outras ainda pateticamente consoladoras – chegando à plenitude dos tempos, tem,
num momento determinado, a força religiosa, moral e poética de conceber o
modelo do Cristo, do amor universal, do perdão aos inimigos, da vida ofertada
em holocausto pela salvação do outro.
Se fosse um viajante proveniente de galáxias distantes e
visse-me diante de uma espécie que soube propor-se tal modelo, admiraria,
subjugado, tanta energia teogónica e julgaria redimida esta espécie miserável e
infame, que tantos horrores cometeu, apenas pelo fato de que conseguiu desejar
e acreditar que tal seja a verdade. Abandone agora também a hipótese e deixe-a
para os outros: mas admita que, se Cristo fosse realmente apenas o sujeito de
um conto, o fato de que esse conto tenha sido imaginado e desejado por bípedes
implumes que sabem apenas que não sabem, seria tão milagroso (milagrosamente
misterioso) quanto o fato de que o filho de um Deus real tenha realmente
encarnado.
Este mistério natural e terreno não cessaria de perturbar e
adoçar o coração de quem não crê.
Umberto Eco
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