«Memento Mori»
1117- «MEMENTO MORI»
Sua mulher sempre costumava dizer que você chegaria atrasado
a seu próprio funeral. Lembra-se disso? A piadinha dela por você ser tão lerdo
-sempre atrasado, sempre esquecendo coisas, mesmo antes do incidente.
Neste momento você provavelmente se indaga se chegou
atrasado ao dela.
Você esteve lá, disso pode ter certeza. É para isso que
serve a foto -aquela, pregada à parede ao lado da porta. Não é usual tirar
fotos em um funeral, mas alguém, seus médicos, suponho, sabiam que você não se
lembraria. Eles a ampliaram bastante e a puseram bem aí, próxima à porta, de
forma que você não pudesse deixar de olhá-la sempre que se levantasse para
procurá-la.
O cara na foto, esse com as flores? É você. E o que você
está fazendo? Está lendo a lápide, tentando descobrir de quem é o funeral em
que está, da mesma forma que você a está lendo agora, tentando descobrir por
que alguém pôs a foto próxima à porta. Mas por que se preocupar em ler algo de
que você não lembrará?
Ela se foi, foi para sempre, e você deve estar sofrendo
neste instante, ao ouvir a notícia. Acredite em mim, sei como você se sente.
Você deve estar um desastre. Mas dê uns cinco minutos, talvez dez. Talvez você
possa seguir por toda uma meia hora antes de esquecer.
Mas você esquecerá -eu garanto. Mais alguns minutos e você
se dirigirá à porta procurando-a novamente, desabando quando encontrar a foto.
Quantas vezes você precisa ouvir a notícia até que alguma outra parte de seu
corpo que não esse seu cérebro arrebentado comece a lembrar?
Desgosto infinito, raiva infinita. Inúteis sem direcção.
Talvez você não possa entender o que aconteceu. Não posso dizer que entendo,
também. Amnésia reversa. É isso que diz o aviso. Doença de CRS. Seu chute vale
tanto quanto o meu.
Talvez você não possa entender o que lhe aconteceu. Mas você
se lembra do que aconteceu com ela, não? Os médicos não querem falar a
respeito. Não respondem às minhas perguntas. Não acham certo que um homem em
suas condições ouça essas coisas. Mas você se lembra do suficiente, não?
Lembra-se do rosto dela.
É por isso que estou escrevendo a você. Fútil, talvez. Não
sei quantas vezes você terá que ler isso antes de me escutar. Não sei nem mesmo
há quanto tempo você está trancado nesse quarto. Você também não sabe. Mas a
sua vantagem em esquecer é que você se esquecerá de se assumir como uma causa
perdida.
Mais cedo ou mais tarde você vai querer fazer algo a
respeito. E, quando o fizer, terá de confiar em mim, porque sou o único que
pode ajudá-lo.
Earl abre um olho depois do outro para ver uma faixa de
azulejos brancos no tecto, interrompida por um aviso escrito à mão colado bem
sobre a sua cabeça, grande o suficiente para que ele possa lê-lo da cama.
Um rádio-relógio está tocando em algum lugar. Ele lê o
aviso, pisca, lê novamente e então dá uma olhada no quarto. É branco,
avassaladoramente branco, desde as paredes e cortinas ao mobiliário
institucional e aos lençóis. O rádio-relógio toca de cima da mesa branca sob a
janela com cortinas brancas. Neste momento, Earl provavelmente percebe que está
deitado sobre seu edredom branco.
Ele já está usando seu roupão e chinelos.
Ele se deita e lê novamente o aviso colado ao teto. Ele diz, em maiúsculas cruas: "Este é o seu quarto. É um quarto em um hospital. É aqui que você mora, agora".
Earl se levanta e olha em volta. O quarto é grande para um
quarto de hospital - um linóleo vazio se estende da cama em três direcções. Duas
portas e uma janela. A vista também não ajuda muito -algumas árvores no centro
de um gramado bem aparado que termina em uma bifurcação de asfalto com duas
faixas de largura. As árvores, à excepção dos pinheiros, estão nuas -começo da
primavera ou final do outono ou um ou outro.
Cada centímetro da mesa está coberto com "post-its", blocos de papel, listas bastante organizadas, manuais de referência de psicologia, fotos emolduradas. Em cima da bagunça há algumas palavras cruzadas feitas pela metade. O rádio-relógio cavalga uma pilha de jornais dobrados. Earl bate no botão "snooze" e pega um cigarro do maço colado com fita adesiva à manga de seu roupão. Ele apalpa os bolsos vazios de seu pijama à procura de fogo. Vasculha papéis sobre a mesa, olha rapidamente dentro das gavetas. Finalmente encontra uma caixa de fósforos colada à parede ao lado da janela. Outro aviso está colado logo acima da caixa de fósforos.
Ele diz, em letras amarelas berrantes: "Cigarro?
Procure algum aceso antes, estúpido".
Earl ri do aviso, acende o cigarro e dá uma longa tragada. Colada à janela diante dele está outra folha de fichário intitulada "Seu Horário".
O horário planeia as horas, cada hora, em blocos: das 22h às
8h diz "volte a dormir". Earl olha o rádio-relógio: 8h15. Pela luz lá
fora, deve ser de manhã. Ele checa o relógio de pulso: 10h30. Encosta o relógio
no ouvido e escuta. Dá duas ou três voltas de corda e o ajusta com o
rádio-relógio.
De acordo com o horário, todo o bloco das 8h às 8h30 diz
"escove os dentes". Earl ri novamente e caminha até o banheiro.
A janela do banheiro está aberta. Enquanto sacode os braços
para se aquecer, ele nota o cinzeiro no parapeito. Um cigarro está apoiado no
cinzeiro, queimando continuamente e deixando um longo dedo de cinza. Ele franze
a testa, apaga a bituca velha e a substitui pelo novo cigarro.
A escova de dentes já está com uma pasta branca. A torneira
é de apertar - uma dose de água a cada pressão. Earl empurra a escova contra a
bochecha e a mexe para a frente e para trás enquanto abre o armário do espelho.
As prateleiras estão plenas de embalagens de dose única de vitaminas,
aspirinas, antidiuréticos. O colutório também é em dose única, uma dose de
líquido azul em uma garrafa plástica lacrada. Só a pasta de dentes é de tamanho
normal. Earl cospe a pasta da boca e a substitui pelo colutório. Ao guardar a
escova ao lado da pasta, ele percebe um pequenino papel colocado entre a
prateleira de vidro e o fundo metálico do armário. Ele cospe o fluido azul
aguado na pia e pressiona o botão para enxaguá-lo. Ele fecha o armário e sorri
para seu reflexo no espelho.
"Quem precisa de meia hora para escovar os dentes?"
O papel foi dobrado e reduzido a um tamanho minúsculo com
toda a precisão de um bilhete de amor de uma criança da sexta série. Nele está
escrito:
"Se você ainda pode ler isto, então você é uma porra de
um covarde".
Earl fita perplexo o papel e então o lê novamente. Ele o
vira. Atrás está escrito:
"PS: Depois de ler isto, esconda-o novamente".
Earl lê ambos os lados novamente e então dobra-o novamente e
o guarda sob a pasta de dentes.
Talvez então ele perceba a cicatriz. Ela começa logo abaixo
da orelha, sinuosa e grossa, e desaparece abruptamente sob o seu cabelo. Earl
vira a cabeça e acompanha com o canto do olho o avanço da cicatriz. Ele a segue
com a ponta do dedo e então olha para baixo, para o cigarro queimando no
cinzeiro. Um pensamento o domina e ele corre para fora do banheiro.
Ele é pego na porta de seu quarto, uma mão sobre a maçaneta.
Duas fotos estão coladas à parede ao lado da porta. O que chama primeiro a
atenção de Earl é a ressonância magnética, uma moldura preta brilhante para
quatro janelas no crânio de alguém. Com caneta marca-texto a figura foi
intitulada "Seu Cérebro". Earl a fita. Círculos concêntricos de
diferentes cores. Ele consegue distinguir os grandes globos que são seus olhos
e, atrás deles, os dois lobos de seu cérebro. Rugas macias, círculos,
semicírculos. Mas bem lá no meio de sua cabeça, circulado com marca-texto, se
afunilando desde sua nuca como um verme em um damasco, está algo diferente.
Deformado, quebrado, mas inequívoco. Uma mancha escura, no formato de uma flor,
bem no meio de seu cérebro.
Ele se abaixa para olhar a outra foto. É a foto de um homem segurando flores, em pé ao lado de um túmulo recente. O homem está abaixado, lendo a lápide. Por um momento isso parece uma sala de espelhos ou o começo de um desenho do infinito: um homem abaixado, olhando para o homem menor, abaixado, lendo a lápide. Earl olha a foto por um longo tempo. Talvez ele comece a chorar. Talvez ele só encare silenciosamente a foto. Por fim ele volta à cama, se joga, fecha bem os olhos, tenta dormir.
O cigarro queima continuamente no banheiro. Um circuito no
rádio-relógio termina de contar até dez e ele começa a tocar de novo.
Earl abre um olho depois do outro para ver uma faixa de
azulejos brancos no tecto, interrompida por um aviso escrito à mão colado bem
sobre a sua cabeça, grande o suficiente para que ele possa lê-lo da cama.
Você não pode mais ter uma vida normal. Você precisa saber
disso. Como você pode ter uma namorada, se não puder lembrar o nome dela?
Também não pode ter filhos, se não quiser que eles cresçam com um pai que não
os reconhece. Com certeza não pode ter um emprego. Não há muitas profissões por
aí que valorizem o esquecimento.
Prostituição, talvez. Política, com certeza.
Não. Sua vida acabou. Você é um homem morto. A única coisa
que os médicos esperam fazer é ensiná-lo a ser menos oneroso aos enfermeiros. E
provavelmente nunca o deixarão ir para casa, onde quer que isso seja.
Então a pergunta não é "ser ou não ser", porque
você não é. A pergunta é se você quer fazer algo a respeito. Se vingança
importa para você.
Importa para a maioria das pessoas. Por algumas semanas elas
planeiam, esquematizam, fazem o necessário para igualar o placar. Mas a
passagem do tempo é tudo o que é necessário para erodir esse impulso inicial.
Tempo é furto, não é o que dizem? E o tempo eventualmente convence a maioria de
nós de que o perdão é uma virtude.
Convenientemente, a covardia e o perdão parecem idênticos de
uma certa distância. O tempo rouba a sua coragem.
Se o tempo e o medo não são suficientes para dissuadir as pessoas da vingança delas, então sempre há a autoridade, balançando a cabeça levemente e dizendo: "Nós entendemos, mas você é superior por deixar isso para lá. Por se erguer acima disso. Por não afundar ao nível deles". "E além disso", diz a autoridade, "se você tentar alguma coisa estúpida, nós o trancaremos em um quartinho".
Mas eles já o puseram em um quartinho, não é? Só que não
trancaram de verdade nem o vigiam muito cuidadosamente, porque você é aleijado.
Um cadáver. Um vegetal que provavelmente não se lembraria de comer ou de cagar
se não houvesse alguém para recordá-lo. E, quanto à passagem do tempo, bem,
isso não se aplica mais a você realmente, não é? Só os mesmos dez minutos, de
novo e de novo. Então como você pode perdoar, se não consegue se lembrar de
esquecer?
Você devia ser do tipo que deixaria isso para trás, não?
Antes. Mas você não é o homem que costumava ser. Nem metade. Você é uma fracção.
É o homem dez-minutos.
É claro, a fraqueza é forte. É o impulso primário. Você provavelmente
preferiria sentar em seu quartinho e chorar. Viver em sua finita colecção de
memórias, polindo cada uma delas cuidadosamente. Meia vida passada, atrás do
vidro e pregada em cortiça como uma colecção de insectos exóticos. Você gostaria
de viver atrás desse vidro, não gostaria?
Preservado em formol.
Você gostaria, mas não pode, pode? Não pode por causa da
última peça de sua colecção. A última coisa de que você se lembra. O rosto dele.
O rosto dele e sua mulher, pedindo-lhe sua ajuda com os olhos.
E talvez você possa ficar com isso quando acabar. Sua
pequena colecção. Eles podem trancá-lo novamente em outro quartinho e você pode
viver o resto de sua vida no passado. Mas apenas se você possuir um pedacinho
de papel em sua mão que diga que você o pegou.
Você sabe que estou certo. Sabe que há um monte de trabalho
a ser feito. Pode parecer impossível, mas, se todos fizermos a nossa parte,
descobriremos alguma coisa. Mas você não tem muito tempo. Tem cerca de dez
minutos, na verdade. Então tudo recomeça. Portanto, faça algo com o tempo que
tem.
Earl abre os olhos e pisca na escuridão. O rádio-relógio
está tocando. Ele diz 3h20, e o luar através da janela significa que deve ser
de madrugada. Earl tacteia em busca do abajur, quase derrubando-o. Uma luz
incandescente preenche o quarto, pintando os móveis de metal de amarelo, as
paredes de amarelo, também os lençóis. Ele se deita e olha para a faixa de
azulejos amarelos no tecto em cima dele, interrompida por um aviso escrito à mão
colado no tecto. Ele lê o aviso duas, talvez três vezes e então pisca e olha
para o quarto à sua volta.
É um quarto despojado. Institucional, talvez. Há uma mesa
embaixo da janela. A mesa está vazia com excepção do barulhento rádio-relógio.
Earl provavelmente se dá conta, nesse instante, de que está completamente
vestido. Ele está até usando sapatos, sob o lençol. Ele sai da cama e vai até a
mesa. Nada na sala sugere que alguém more lá ou que jamais tenha morado, excepto
um ou outro pedaço de fita adesiva colado na parede aqui e ali. Nenhuma foto,
nenhum livro, nada. Através da janela ele pode ver a lua cheia brilhando no
gramado bem aparado.
Earl bate no botão "snooze" do rádio-relógio e
olha por um momento para as duas chaves presas com fita adesiva nas costas de
sua mão. Ele coça a fita enquanto perscruta dentro das gavetas vazias. No bolso
esquerdo do casaco ele encontra um maço de notas de US$ 100 e uma carta em um
envelope lacrado. Ele averigua o restante do quarto e o banheiro. Pedaços de
fita adesiva, bitucas de cigarro. Nada mais.
Earl brinca distraidamente com o calombo da cicatriz em seu
pescoço e volta à cama. Deita-se e olha para o tecto e para o aviso nele colado.
O aviso diz: "Levante-se, saia imediatamente. Essas pessoas estão tentando
matá-lo". Earl fecha os olhos.
Tentaram ensiná-lo a fazer listas no primário, lembra-se? Na
época em que sua agenda eram as costas da sua mão. E, se os seus compromissos
saíssem no banho, bem, eles não se cumpririam. Sem objectivo, disseram. Sem
disciplina. Então eles tentaram fazer com que você escrevesse tudo em um lugar
mais permanente.
É claro, seus professores primários molhariam as calças de
rir se pudessem vê-lo agora. Porque você se tornou o produto exacto das aulas de
organização que eles davam. Porque você não consegue nem mijar sem consultar
uma de suas listas.
Eles tinham razão. Listas são a única saída dessa bagunça.
Eis a verdade: as pessoas, mesmo as pessoas normais, nunca
são apenas uma pessoa, com algumas características. Não é simples assim.
Estamos todos à mercê do sistema límbico, nuvens de electricidade vagando
através do cérebro. Cada homem é quebrado em 24 fracções de uma hora e quebrado
de novo dentro dessas 24 fracções. É uma pantomima diária, um homem cedendo o
controle ao próximo: os bastidores lotados de medíocres clamando por sua vez
sob os holofotes. Cada semana, cada dia. O homem raivoso passa o bastão ao
calado, que o passa ao viciado em sexo, ao introvertido, ao conversador. Cada
homem é uma multidão, uma corrente de idiotas.
Essa é a tragédia da vida. Porque por alguns minutos de cada
dia cada homem se torna um génio. Momentos de lucidez, insight, como quiser
chamar. As nuvens se abrem, os planetas ficam numa linhazinha organizada e tudo
se torna óbvio. "Eu deveria parar de fumar", talvez, ou "veja só
como eu poderia ganhar US$ 1 milhão rapidamente" ou "isso e aquilo
são a chave da felicidade eterna". Essa é a miserável verdade. Por alguns
instantes, os segredos do universo se abrem para nós. A vida é um truque barato
de salão.
Mas então o génio, o "savant", tem de passar os
controles para o próximo cara da fila, provavelmente o cara que quer só comer
batatas fritas, e insight e brilho e salvação são confiados a um imbecil ou a
um hedonista ou a um narcoléptico.
O único jeito de sair dessa bagunça, obviamente, é se
assegurar de que você controla os idiotas em que você se torna. Pegar a sua
corrente, segurá-los pela mão e os liderar. E o melhor modo de fazê-lo é com
uma lista.
É como uma carta que você escreve a si mesmo. Um plano
geral, desenhado pelo cara que pode ver a luz, feito de passos simples o
suficiente para que o resto dos idiotas compreenda. Siga os passos de um a cem.
Repita o quanto for necessário.
Seu problema é um pouco mais agudo, mas fundamentalmente o
mesmo.
É como aquela coisa de computador, a "sala
chinesa". Lembra-se? Um cara está sentado em uma salinha, espalhando
cartas em que estão escritas letras que ele não compreende, colocando-as uma de
cada vez em uma sequência de acordo com as instruções de outra pessoa. Elas
deveriam formar uma piada em chinês. O cara não fala chinês, é claro. Ele
apenas segue as instruções.
Há algumas diferenças em sua situação, é claro: você saiu da
sala em que o puseram, então toda a empreitada tem de ser portátil. E o cara
dando as instruções -ele é você, também, só que uma versão anterior de você. E
a piada que você está contando, bem, ela tem um final. Só que eu não acredito
que alguém vá achá-lo muito engraçado.
Portanto, essa é a ideia. Tudo o que você tem de fazer é
seguir suas instruções. Como subir uma escada ou descer outra. Um passo de cada
vez. Descendo pelos itens da lista. Simples.
E o segredo, é claro, de qualquer lista é mantê-la em um
lugar em que você terá de vê-la.
Ele pode ouvir o ruído através de suas pálpebras. Ele tenta
alcançar o rádio-relógio, mas não pode mexer seu braço.
Earl abre seus olhos para ver um homem grande abaixado sobre
ele. O homem o olha, incomodado, e retoma seu trabalho. Earl olha em torno.
Escuro demais para um consultório médico.
Então a dor inunda seu cérebro, bloqueando as outras
perguntas. Ele se move de novo, tentando puxar seu antebraço para longe, aquele
que parece que está queimando. O braço não se move, mas o homem o olha outra
vez com censura. Earl se arruma na cadeira para ver por sobre o topo da cabeça
do homem.
O barulho e a dor vêm ambos de um revólver na mão do homem
-um revólver com uma agulha onde deveria haver um cano. A agulha está cavando a
carne do lado interno do antebraço de Earl, deixando uma trilha de letras
cheias atrás dela.
Earl tenta se reposicionar para obter uma visão melhor, para
ler as letras em seu braço, mas não consegue. Ele se deita e olha para o tecto.
Finalmente o tatuador desliga o barulho, limpa o antebraço
de Earl com um pedaço de gaze e vai até os fundos buscar um folheto que diz
como lidar com uma possível infecção. Talvez mais tarde ele conte à sua mulher
sobre aquele cara e seu pequeno bilhete. Talvez sua mulher o convença a chamar
a polícia.
Earl olha para o braço. As letras sobem pela pele, pingando
um pouco. Elas vão desde logo atrás da pulseira do relógio de Earl até a parte
interna de seu cotovelo. Earl pisca para a mensagem e a lê novamente.
Ela diz, em maiúsculas cuidadosas: "Eu estuprei e matei
sua mulher".
Hoje é seu aniversário, por isso lhe trouxe um presentinho. Eu teria apenas lhe comprado uma cerveja, mas quem sabe onde isso terminaria?
Então em vez disso eu trouxe um sino. Eu acho que posso ter
tido que penhorar seu relógio para comprá-lo, mas para que diabos você
precisava de um relógio?
Você deve estar se perguntando: "Por que um
sino?". Na verdade, eu acredito que você vá se perguntar isso cada vez que
o encontrar em seu bolso. Há muitas dessas cartas, agora. Cartas demais para
que você possa cavá-las retrospectivamente cada vez que quiser saber a resposta
a uma pergunta qualquer.
É uma piada, em realidade. Uma peça. Mas pense deste modo:
eu não estou tanto rindo de você quanto estou rindo com você.
Gosto de pensar que, cada vez que você o tirar de seu bolso
e se indagar "por que eu tenho este sino?", uma pequena parte de
você, um pedacinho de seu cérebro quebrado, vai lembrar e rir, como eu estou
rindo agora.
Além disso, você sabe a resposta. Era algo que você aprendeu
antes. Então, se pensar a respeito, saberá.
Nos velhos tempos, as pessoas eram obcecadas pelo medo de
serem enterradas vivas. Lembra-se, agora?
Não sendo a medicina aquilo que é hoje, não era incomum as
pessoas acordarem de repente em um caixão. Então os ricos faziam com que seus
caixões tivessem tubos para respiração. Pequenos tubos saindo pela lama acima
para que, se alguém acordasse em um lugar onde não deveria estar, não ficasse
sem oxigénio. Só que eles devem ter testado o sistema e percebido que se podia
gritar até ficar rouco pelo tubo, mas ele era muito estreito para poder levar o
ruído. Não era suficiente para chamar a atenção, pelo menos. Então uma cordinha
passava pelo tubo até um pequeno sino preso à lápide. Se um morto voltasse à
vida, tudo o que tinha que fazer era tocar o sininho até que alguém viesse e o
cavasse novamente.
Estou rindo agora, ao imaginar você em um ónibus ou em um
fast food, colocando a mão no bolso e encontrando seu sininho e se indagando de
onde ele veio, por que você o tem. Talvez você até o toque.
Feliz aniversário, amigo.
Eu não lembro quem descobriu a solução de nosso problema
mútuo, então não sei se devo parabenizar a você ou a mim. Uma pequena mudança
no estilo de vida, admito, mas uma solução elegante, mesmo assim.
Procure a resposta em você mesmo.
Parece algo saído de um cartão de aniversário. Não sei
quando você pensou nisso, mas eu lhe agradeço. Não que você saiba de que diabos
eu falo. Mas, honestamente, foi um verdadeiro "brainstorm". Afinal,
todos precisam de espelhos para que se lembrem de quem são. Você não é
diferente.
A vozinha mecânica faz uma pausa, depois se repete. Ela diz:
"São 8h. Esta é uma chamada de cortesia". Earl abre seus olhos e põe
o telefone no gancho. O telefone se apoia numa cabeceira de madeira vagabunda
que se estende por trás da cama, faz uma curva no canto e termina no minibar. A
TV ainda está ligada, bolhas cor de pele sacudindo umas às outras. Earl se
deita e se surpreende ao se ver, mais velho, bronzeado, o cabelo saindo da
cabeça como chamas solares. O espelho no teto está rachado, a prata
desaparecendo em manchas. Earl continua a se observar, perplexo com o que vê.
Está completamente vestido, mas as roupas são velhas, rasgadas em alguns
lugares.
Earl apalpa seu pulso esquerdo em busca do relógio, mas ele
não está lá. Ele pára de olhar o espelho para olhar seu braço. O pulso está
descoberto e a pele mudou para um bronzeado contínuo, como se ele nunca
houvesse possuído um relógio. A pele tem uma cor homogénea, com excepção da
flecha preta sólida na parte de dentro de seu pulso, apontando para a manga da
camisa. Ele olha para a flecha por um momento. Talvez não tente mais apagá-la,
esfregando-a. Ele enrola a manga de sua camisa.
A flecha aponta para uma frase escrita na parte de dentro do
braço de Earl. Earl lê a frase uma, talvez duas vezes. Outra flecha aparece no
começo da frase, apontando mais para cima em seu braço, desaparecendo sob a
manga enrolada. Ele desabotoa a camisa.
Olhando para seu peito, ele consegue ver as formas, mas não focalizá-las, então ele olha para o espelho em cima dele.
A flecha segue pelo braço de Earl, cruza seu ombro, desce
pela parte de cima de seu tronco, terminando em um retrato de um homem que
ocupa a maior parte de seu peito. É o rosto de um homem grande, que está
ficando careca, com bigode e cavanhaque. É um rosto particular, mas, como um
retrato falado, tem uma certa qualidade irreal.
O resto da parte de cima de seu tronco está coberto de palavras, frases, pedaços de informação e instruções, todas escritas para trás em Earl, e para a frente no espelho.
Enfim Earl se ergue, abotoa a camisa e vai até a mesa. Ele pega caneta e um pedaço de papel da gaveta, se senta e começa a escrever.
Não sei onde você estará quando ler isto. Não sei nem se vai
se incomodar em ler isto. Acho que não precisa.
É uma vergonha, na verdade, que você e eu não nos
encontraremos nunca. Mas, como diz a canção, "no momento em que você ler
este bilhete, eu terei partido".
Estamos tão perto, agora. É essa a sensação. Tantas peças
encaixadas, organizadas. Acho que é só questão de tempo até que você o
encontre.
Quem sabe o que fizemos para chegar aqui? Deve ser uma história
e tanto, se você ao menos pudesse lembrar algo dela. Acho que é melhor não
podermos.
Pensei numa coisa agora. Talvez você ache útil.
Todos esperam o fim chegar, mas e se ele já houver passado
por nós? E se a piada final do Dia do Juízo for que ele já veio e já passou e
não nos demos conta? O Apocalipse chega silencioso; os escolhidos são
pastoreados ao paraíso e o resto de nós, aqueles que não passaram na prova, vão
em frente, ignorando. Já mortos, vagando por aí, bem depois de os deuses
pararem de anotar o placar, ainda optimistas com relação ao futuro.
Se isso for verdade, então não importa o que você fizer. Não há esperança. Se você não puder achá-lo, então não importa, porque nada importa. E, se você o achar, então você pode matá-lo sem se preocupar com as consequências. Porque não há consequências.
É nisso que estou pensando agora, neste quarto pequeno e sujo. Fotos emolduradas de barcos na parede. Eu não sei, obviamente, mas, se tivesse que chutar, diria que estamos em algum lugar do litoral. Se você se pergunta por que seu braço esquerdo está cinco vezes mais moreno que o direito, não sei o que lhe dizer. Acho que devemos ter dirigido um bocado. E, não, eu não sei o que aconteceu com o seu relógio.
E todas essas chaves: não tenho ideia. Não há uma sequer que
eu reconheça. Chaves de carros e chaves de casas e chavezinhas de cadeados. O
que nós estivemos fazendo?
Eu me pergunto se ele vai se sentir idiota quando o encontrarmos. Perseguido pelo homem dez-minutos. Assassinado por um vegetal.
Eu me irei em um minuto. Vou baixar a caneta, fechar meus
olhos, e você poderá ler isto, se quiser.
Só queria que soubesse que estou orgulhoso de você. Não
sobrou ninguém importante para dizê-lo. Ninguém que sobrou vai querer dizê-lo.
Os olhos de Earl estão escancarados observando pela janela
do carro. Olhos sorridentes. Sorrindo através da janela para a multidão que se
aglomera do outro lado da rua. A multidão se aglomerando em volta do corpo na
passagem. O corpo esvaziando lentamente pela calçada e bueiro adentro.
Um cara atarracado, rosto para baixo, olhos abertos. Ficando
careca, com cavanhaque. Na morte, assim como em retratos falados, os rostos se
parecem. Esse é com certeza alguém em particular. Mas poderia, mesmo, ser
qualquer um.
Earl ainda sorri para o corpo enquanto o carro se afasta do
meio-fio. O carro? Quem pode dizer? Talvez seja uma viatura da polícia. Talvez
seja só um táxi.
Enquanto o carro é engolido pelo tráfego, os olhos de Earl
continuam a brilhar na noite, observando o corpo até que ele desapareça em um
círculo de transeuntes preocupados. Ele ri para si mesmo enquanto o carro
continua aumentando a distância entre ele e a multidão crescente.
O sorriso de Earl diminui um pouco. Algo lhe ocorreu. Começa
a apalpar os bolsos; primeiro, serenamente, um homem procurando por suas
chaves, depois um pouco mais desesperado. Talvez o seu progresso esteja
impedido por um par de algemas. Ele começa a esvaziar o conteúdo de seus bolsos
no assento a seu lado. Algum dinheiro. Um monte de chaves. Pedaços de papel.
Um pedaço redondo de metal rola de seu bolso e desliza pelo
assento de vinil. Earl está frenético, agora. Ele bate na divisória de plástico
entre ele e o motorista, implorando ao homem por uma caneta. Talvez o taxista
não saiba muito bem inglês. Talvez o policial não tenha o costume de falar com
suspeitos. De qualquer modo, a divisória entre o homem da frente e o homem de
trás continua fechada. Uma caneta não virá.
O carro passa por um buraco, e Earl pisca e vê seu reflexo
no espelho retrovisor. Ele está calmo, agora. O motorista faz outra curva, e o
pedaço de metal escorrega de volta para se apoiar contra a perna de Earl com
uma pequena badalada. Ele o pega e o olha, curioso. É um sininho. Um sininho de
metal. Inscritos nele estão o seu nome e algumas datas. Ele reconhece a
primeira, o ano em que nasceu. Mas a segunda não significa nada. Nada mesmo.
Ao girar o sino em suas mãos, ele percebe o espaço vazio
onde costumava ficar seu relógio. Há ali uma pequena flecha, apontando para seu
braço. Earl olha para a flecha e então começa a desenrolar sua manga.
"Você chegaria atrasado a seu próprio funeral",
ela dizia. Lembra-se? Quanto mais eu penso a respeito, mais me parece banal.
Que tipo de idiota, afinal, está com pressa de chegar ao final da própria
história?
E como eu saberia se estou atrasado, afinal? Eu não tenho
mais um relógio. Não sei o que fizemos com ele.
E para que diabos se precisa de um relógio, afinal? Era uma
antiguidade. Um peso morto agarrado ao seu pulso. Símbolo do velho você. Aquele
você que acreditava no tempo.
Não. Apague isso. Não é tanto que você tenha perdido sua fé
no tempo, é mais o tempo que perdeu a fé em você. E quem precisa dele, afinal?
Quem quer ser um desses tolos que vivem na segurança do futuro, na segurança do
instante após o instante em que eles sentiram algo forte? Vivendo no próximo
instante, no qual eles não sentem nada. Rastejando pelos ponteiros do relógio,
longe das pessoas que lhes fizeram coisas indizíveis. Acreditando na mentira de
que o tempo curará todas as feridas - que é apenas um jeito simpático de dizer
que o tempo nos mata.
Mas você é diferente. Você é mais perfeito. O tempo são três
coisas para a maioria das pessoas, mas para você, para nós, é apenas uma. Uma
singularidade. Um instante. Este instante. Como se você estivesse no centro do
relógio, no eixo sobre o qual giram os ponteiros. O tempo segue à sua volta,
mas nunca segue em você. Ele perdeu sua habilidade de afetar você. O que é que
dizem? Que tempo é furto? Mas não para você. Feche os olhos e você pode começar
tudo de novo. Evocar a emoção necessária, fresca como as rosas.
Tempo é um absurdo. Uma abstracção. A única coisa que importa
é este momento. Este momento 1 milhão de vezes. Você precisa confiar em mim. Se
este momento se repetir suficientemente, se você continuar tentando -e você
precisa continuar tentando-, por fim você chegará ao próximo item de sua lista.
Jonathan Nolan
Jonathan Nolan
Sem comentários:
Enviar um comentário