terça-feira, 25 de agosto de 2015

OUTROS CONTOS

«As Ruínas Circulares», por Jorge Luís Borges.

«As Ruínas Circulares»
Conto de Jorge Luís Borges

599- «AS RUÍNAS CIRCULARES»

Ninguém o viu desembarcar na unânime noite, ninguém viu a canoa de bambu sumir-se na lama sagrada, mas daí a poucos dias ninguém ignorava que o homem taciturno vinha do Sul e que a sua pátria era uma dessas infinitas aldeias que ficam rio acima, no flanco violento da montanha, onde a língua zenda não está contaminada do grego e onde é rara a lepra. O que é certo e seguro é que o homem pardo beijou a lama, subiu a margem sem afastar (provavelmente sem sentir) as sanguessugas que lhe dilaceravam as carnes e arrastou-se enjoado e sangrando, até ao recinto circular dominado por um tigre ou um cavalo de pedra, que teve outrora a cor do fogo e agora a da cinza. Essa arena é um templo que os antigos incêndios devoraram, que a floresta pantanosa profanou e cujo deus não recebe as honras dos homens. O forasteiro deitou-se sob o pedestal. Só o despertou o sol alto. Verificou sem assombro que as feridas haviam cicatrizado; fechou os olhos pálidos e adormeceu, não por fraqueza da carne mas por decisão da vontade. Sabia que esse templo era o lugar referido para o seu invencível desígnio; sabia que as árvores incessantes não tinham conseguido estrangular, a jusante, as ruínas de outro templo propício, também de deuses incendiados e mortos; sabia que a sua obrigação imediata era o sono. Por volta da meia-noite acordou-o o grito inconsolável de um pássaro. Marcas de pés descalços, uns figos e um cântaro avisaram-no de que os homens da região lhe tinham espiado com respeito o sono e solicitavam o seu amparo ou temiam a sua magia. Sentiu o frio do medo e procurou na muralha delapidada um nicho sepulcral e tapou-se com folhas desconhecidas.

O desígnio que o guiava não era impossível, se bem que sobrenatural. Queria sonhar um homem: queria sonhá-lo com uma integridade minuciosa e impô-lo à realidade. Este projecto mágico esgotara o espaço inteiro da sua alma; se alguém lhe perguntasse o seu próprio nome ou qualquer pormenor da vida anterior, não seria capaz de responder. Convinha-lhe o templo desabitado e desmantelado, porque era um mínimo do mundo visível; a vizinhança dos lenhadores também, dado que estes de encarregavam de prover às suas necessidades frugais. O arroz e os frutos do seu tributo eram pasto suficiente para o seu corpo, consagrado à única tarefa de dormir e sonhar.

Ao princípio, os sonhos eram caóticos; pouco depois, foram de natureza dialéctica. O forasteiro sonhava-se no meio de um anfiteatro circular, que era de certo modo o templo incendiado: magotes de alunos taciturnos fatigavam os degraus; as caras das últimas filas pendiam a muitos séculos de distância e a uma altura estelar; mas viam-se com uma precisão absoluta. O homem dava-lhes lições de anatomia, de cosmografia, de magia: os rostos escutavam com ansiedade e tentavam responder com entendimento, como se adivinhassem a importância daquele exame, que deveria redimir um deles da sua condição de vã aparência e o interpolaria no mundo real. O homem, no sonho e acordado, considerava as respostas dos seus fantasmas, não se deixava enganar pelos impostores, adivinhava em certas perplexidades uma inteligência crescente. Procurava uma alma que merecesse participar no universo.

Ao cabo de nove ou dez noites compreendeu com certa amargura que nada podia esperar dos alunos que aceitavam passivamente a sua doutrina, mas sim dos que arriscavam, às vezes, uma contradição razoável. Os primeiros, embora dignos de amor e de afeição, não podiam elevar-se a indivíduos; os últimos preexistiam um pouco mais. Uma tarde (agora também as tardes eram tributárias do sonho, agora só estava acordado umas horinhas ao amanhecer) despediu para sempre o vasto colégio ilusório e ficou apenas com um único aluno. Era um rapaz taciturno, azedo, desordeiro às vezes, de feições afiladas que repetiam as do seu sonhador. A brusca eliminação dos seus condiscípulos não o desconcertou por muito tempo; os seus progressos, ao fim de poucas lições particulares, conseguiram maravilhar o mestre. No entanto, aconteceu a catástrofe. Um dia o homem emergiu do dono como de um deserto viscoso, fitou a vã luz da tarde que começou por confundir com a da aurora, e compreendeu que não tinha sonhado. Durante essa noite toda e todo o dia, abateu-se sobre ele a intolerável lucidez da insónia. Quis explorar a floresta, extenuar-se; só a custo conseguiu pela cicuta uns quantos lampejos de sono fraco, riscados fugazmente por visões de tipo rudimentar: inaproveitáveis. Quis voltar a reunir o colégio e mal articulou umas breves palavras de exortação, logo este se deformou e se desfez. Na sua quase perpétua vigília, lágrimas de cólera queimavam-lhe os velhíssimos olhos.

Compreendeu que a tarefa de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que se compõem os sonhos é a mais árdua a que se pode entregar um homem, embora penetre todos os enigmas da ordem superior e da inferior: muito mais árdua que tecer uma corda de areia ou que cunhar o vento sem cara. Compreendeu que era inevitável um fracasso inicial. Jurou esquecer a enorme alucinação que o desencaminhara ao princípio e procurou outro método de trabalho. Antes de experimentá-lo, consagrou um mês a recuperar as forças que lhe gastara o delírio. Abandonou toda a premeditação de sonhar, e quase a seguir foi capaz de dormir um razoável bocado do dia. As raras vezes que sonhou durante esse período, não ligou aos sonhos. Para retomar a tarefa, esperou que o disco da Lua ficasse perfeito. Depois, à tarde purificou-se nas águas do rio, adorou os deuses planetários, pronunciou as sílabas lícitas de um nome poderoso e adormeceu. Quase imediatamente, sonhou com um coração a bater.

Sonhou-o activo, quente, secreto, do tamanho de um punho, de cor escarlate na penumbra de um corpo humano ainda sem cara nem sexo, com minucioso amor sonhou-o durante catorze lúcidas noites. Noite a noite, percebia-o com uma evidência cada vez maior. Não o tocava: limitava-se a testemunhá-lo, a observá-lo, talvez, e corrigi-lo com o olhar. Percebia-o, vivia-o, de muitas distâncias e de muitos ângulos. Na décima quarta noite roçou a artéria pulmonar com o dedo indicador e a seguir o coração todo, por fora e por dentro. O exame deixou-o satisfeito. Deliberadamente não sonhou durante uma noite; depois, tornou a pegar no coração, invocou o nome de um planeta e empreendeu a visão de outro dos órgãos principais. Em menos de um ano chegou ao esqueleto, às pálpebras. O inumerável cabelo foi talvez a tarefa mais difícil. Sonhou um homem inteiro, um mancebo, mas este não se levantava nem falava nem podia abrir os olhos. Noite após noite o homem sonhava-o adormecido.

Nas cosmogonias gnósticas, os demiurgos amassam um encarnado Adão que não consegue pôr-se de pé; tão inábil, tosco e elementar como esse Adão de pó era o Adão de sonho que as noites do mago tinham fabricado.

Uma tarde, o homem destruiu quase toda a sua obra, mas arrependeu-se, (Mais lhe valeria que a tivesse destruído.) Depois de ter esgotado os votos aos nomes da terra e do rio, caiu de joelhos aos pés da imagem que talvez fosse um tigre e talvez um potro, e implorou o seu desconhecido socorro. Nesse crepúsculo, sonhou com a estátua. Sonhou-a viva, trémula: não era um atroz bastardo de tigre e potro, mas ao mesmo tempo essas duas criaturas veementes e também um touro, uma rosa, uma tempestade. Este múltiplo deus revelou-lhe que o seu nome terrestre era Fogo, que nesse templo circular (e noutros iguais) lhe tinham prestado sacrifícios e culto e que ele magicamente animaria o fantasma sonhado, de modo que todas as criaturas, salvo o próprio Fogo e o sonhador, o pensaram um homem de carne e osso. Ordenou-lhe que, depois de instruído nos ritos, o enviasse para outro templo desmantelado cujas pirâmides persistem a jusante do rio, para que alguma voz o glorificasse naquele edifício deserto. No sonho do homem que sonhava, o sonhado acordou. 

O mago executou as ordens. Consagrou um prazo (que no fim durou dois anos) para lhe descobrir os arcanos do universo e do culto do fogo. Intimamente, custava-lhe separa-se dele. A pretexto da necessidade pedagógica, dilatava dia após dia as horas dedicadas ao sonho. Também refez o ombro direito, porventura deficiente. Às vezes inquietava-o uma impressão de que tudo aquilo já tinha acontecido… Em geral, os seus dias eram felizes; ao fechar os olhos pensava: Agora vou estar com o meu filho. Ou então, mais raramente: O filho que gerei espera por mim e não existirá se eu não for ter com ele. 

Gradualmente, lá o foi habituando à realidade. Uma vez mandou-o colocar uma bandeira num píncaro distante. No outro dia, flutuava a bandeira no cume. Tentou outras experiências análogas, cada vez mais audaciosas. Compreendeu com um certa amargura que o seu filho estava pronto para nascer – e talvez até impaciente. Nessa noite beijou-o pela primeira vez e enviou-o para o outro templo cujos despojos branqueavam rio abaixo, a muitas léguas da inextricável floresta e de pântanos. Mas antes (para que ele nunca soubesse que era um fantasma, para que se julgasse um homem como os outros) infundiu-lhe o esquecimento total dos seus anos de aprendizagem.

A sua vitória e a sua paz ficaram turvados pelo desgosto. Nos crepúsculos da noite e da madrugada, prostrava-se diante da figura de pedra, talvez imaginando que o seu filho irreal executava rito idênticos, noutras ruínas circulares, rio abaixo; de noite não sonhava, ou sonhava como o fazem todos os homens. Apercebia-se com certa palidez dos sons e formas do universo: o filho ausente alimentava-se dessas diminuições da sua alma. O desígnio da sua vida fora preenchido; o homem persistiu numa espécie de êxtase. Ao fim de um tempo que certos narradores da sua história preferem calcular em anos e outros em lustros, à meia-noite acordaram-no dois remadores: não conseguiu ver as caras deles, mas falaram-lhe de um homem mágico num templo do Norte, capaz de andar sobre o fogo sem se queimar. O mago lembrou-se de repente das palavras do deus. Lembrou-se de que, de todas as criaturas que compõem o globo, o fogo era a única que sabia que o seu filho era um fantasma. Esta recordação, que o descansou ao princípio, acabou por atormentá-lo. Receou que o seu filho meditasse nesse privilégio anormal e descobrisse de qualquer modo a sua condição de mero simulacro. Não ser um homem, ser a projecção do sonho de outro homem, que humilhação incomparável, que vertigem! Qualquer pai se interessa pelos filhos que procriou (que permitiu) numa simples confusão ou na felicidade; é natural que o mago temesse pelo futuro daquele filho, pensando entranha a entranha e feição a feição, em mil e uma noites secretas.

O fim das suas reflexões foi brusco, mas anunciaram-no alguns sinais. Primeiro (ao cabo de uma longa seca) uma remota nuvem numa colina, leve como um pássaro; a seguir, para os lados do Sul, o céu com a cor rosada das gengivas dos leopardos; depois as fumaradas que enferrujaram o metal das noites; depois a fuga pânica dos bichos. Porque se repetiu o que acontecera há muitos séculos. As ruínas do santuário do deus do fogo foram destruídas pelo fogo. Numa madrugada sem pássaros, o mago viu abater-se sobre as paredes o incêndio concêntrico. Por um instante, pensou refugiar-se nas águas, mas logo compreendeu que a morte vinha coroar a sua velhice e absolvê-lo dos seus trabalhos.

Caminhou ao encontro dos círculos de fogo. Estes não morderam a sua carne, acariciaram-no e inundaram-no sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, e compreendeu que ele próprio também era uma aparência, que outro estava sonhá-lo.

Jorge Luís Borges

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