Corrupção em Portugal
Imprensa
Corrupção: Portugal precisa de "mãos limpas"?
Texto: Nelson Morais
Portugueses radicalizam discurso contra a impunidade dos corruptos e já há magistrados a dizer que "isto não está bem": sinais que levam investigador a questionar viabilidade de operação anti-corrupção à italiana.
Há dias, um site de notícias dava uma novidade do processo BPN, com uma fotografia do ex-governante Oliveira e Costa, seguida de quatro comentários. Dois defendiam a "morte" dos arguidos, como a única forma de fazer justiça. Outro leitor dizia ter ido para o Brasil, "com uma reforma de miséria", para não lhe "dar alguma loucura e matar esse tipo [Oliveira e Costa] e mais alguns do BPN" que lhe "roubaram 150 mil contos". Só o quarto pôs água na fervura - "Não é preciso matar", escreveu -, mesmo concluindo que "há 35 anos que andam a tentar melhorar a eficiência da justiça, em Portugal, e o resultado é zero!".
O anonimato da Net é propício a todo o tipo de enormidades, mas aquela radicalização de discurso, contra a falta de resultados da justiça no combate à grande criminalidade económica, é perceptível ao virar de cada esquina. E há sinal dela nas sucessivas quedas de Portugal no ranking da Transparência Internacional - do 26º lugar para o 35º, entre 2006 e 2008 - que avalia a percepção da corrupção.
Mas é de relativizar esta estatística. Foi sobretudo nos últimos meses que as manifestações de desconfiança da justiça começaram a surgir de dentro do próprio sector, a propósito de processos como o Freeport e o Face Oculta.
Ainda ontem, o ex-bastonário Pires de Lima alertava para o "estado comatoso" da justiça, mas o sinal mais significativo é apontado pelo académico Luís de Sousa: "Aquilo que não se via no passado e vê agora é a entrada no debate público de magistrados a dizer que isto não está bem", afirma, acrescentando o que outros dizem em surdina: "Será que estamos aqui a ver o início de um processo do tipo Mãos Limpas em Itália?"
A Justiça em ebulição
Em que patamar de desenvolvimento estaria Portugal, se os fundos comunitários tivessem sido efectivamente aplicados na requalificação dos trabalhadores? Como estariam as finanças públicas, se cada adjudicação tivesse sido conduzida sem vícios e as obras não sofressem derrapagens médias superiores a 70%? Como estaria o urbanismo das cidades e o ambiente de zonas protegidas, se não prevalecesse a obtenção de mais-valias ilícitas? Como estaria a sanidade da democracia, se o financiamento partidário fosse sujeito a um escrutínio completo, constante e transparente?
As "interrogações incómodas" são do juiz conselheiro Santos Cabral e foram formuladas quando ele deixou a direcção da Polícia Judiciária, em conflito com o anterior ministro da Justiça, Alberto Costa. Há pistas para responder às perguntas, no capítulo que Santos Cabral dedicou à "Corrupção", no seu livro sobre "Uma Incursão pela Polícia", mas retenha-se o que disse Daniel Kaufmann, do Banco Mundial: a diminuição da corrupção poderia colocar Portugal ao nível da Finlândia, em termos de desenvolvimento.
Este país do Norte e os outros que têm ocupado os primeiros lugares do ranking da Transparência Internacional também estão em posições cimeiras do ranking das Nações Unidas sobre o Índice de Desenvolvimento Humano. Por cá, aumentam as disparidades, na distribuição de rendimentos, e os pobres já chegavam a dois milhões, antes da actual crise.
Para Luís de Sousa, estudioso do problema da corrupção, esta não tem sido combatida porque "não há vontade nem estratégia políticas". E desconfia das propostas legislativas com que os partidos acenam, sem acolherem contributos de peritos, como sucedeu na lei do financiamento partidário. Ainda assim, Sousa nota que a nossa legislação "não está assim tão longe" da de países de referência, mesmo faltando cumprir dois importantes compromissos assumidos em convenções internacionais: a instituição do crime de enriquecimento ilícito e de uma agência de prevenção e combate da corrupção.
A tipificação daquele crime está a ser proposta por vários partidos, não obstante o silêncio a que a justiça foi votada antes das legislativas. Quanto à agência, o último Governo criou o Conselho de Prevenção da Corrupção, mas a sua bondade foi questionada. Paulo Morais, ex-vereador do Urbanismo do Porto, chamou-lhe "nado-morto", por lhe faltarem as competências de combate. No fundo, foi ao encontro da tese do especialista Alain Doig, de que não se atinge prevaricadores com prevenção ou educação.
Em 1983, nasceu uma Alta Autoridade Contra a Corrupção, liderada pelo coronel Costa Brás, que, com poucas competências, ainda abriu milhares de processos. Parte deles foi encaminhada para a Justiça, mas os resultados foram poucos: "A justiça é lenta, as malhas da lei enormes, tal como os pactos de silêncio, e a própria natureza da corrupção foi-se tornando mais complexa", justificou um editorial do DN de 2006, antes de concluir a história: "Em 1993, Costa Brás confrontou o Parlamento com uma escolha: o reforço de competências ou a extinção. PSD e PS nem pestanejaram. Extinguiu-se".
Há anos que reina uma paz podre, em que a punição dos suspeitos que chegam a ser investigados limita-se, praticamente, à sua exposição na imprensa, por via de fugas de informação. Recorde-se a prescrição da gigantesca fraude do caso Partex, que tinha 114 arguidos e esteve na origem da instalação de um microfone no gabinete do ex-procurador-geral Souto Moura; ou ainda, ao nível das autarquias e do imobiliário, o arquivamento da morte do desalinhado vereador do PS de Almodôvar, António Colaço, em que as suspeitas de homicídio levaram à exumação do seu corpo, mas não permitiram uma autópsia completa, porque o crânio desapareceu da Medicina Legal de Lisboa...
Do passado e ainda do presente, dê-se os exemplos dos processos Furacão, Submarinos, Portucale, CTT, BCP, BPP, BPN, Freeport... Todos sobre corrupção e crimes conexos supostamente praticados há anos, com o envolvimento da fina flor dos negócios e da política, e ainda sem qualquer condenação.
Mas há, isso é evidente, a sensação de que o país chegou ao limite do suportável. E o caldeirão da justiça parece ter entrado em ebulição, desde que João Palma assumiu a presidência do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e denunciou que os procuradores do Freeport teriam sido pressionados, pelo magistrado que preside ao Eurojust, Lopes da Mota, a arquivar as suspeitas sobre o primeiro-ministro, José Sócrates. Resta agora saber se as escutas do Face Oculta em que também intervém José Sócrates são lenha suficiente para fazer saltar a pesada tampa do caldeirão.
Seja como for, nunca tanta figura pública, incluindo respeitados académicos, como Costa Andrade ou Pinto de Albuquerque, veio para a praça pública atacar decisões judiciais de entidades competentes, como o Supremo Tribunal de Justiça e a Procuradoria-Geral da República. Ontem mesmo, também o juiz Orlando Afonso avisou da necessidade de não se voltar a legislar em função de "determinadas situações", numa alusão à norma das escutas aprovada a seguir ao Casa Pia, para proteger titulares de órgãos de soberania.
Na década de 1990, a magistratura italiana desencadeou uma investigação de grande envergadura, sobre corrupção ao mais alto nível, que ditou o fim de vários partidos políticos e da Primeira República de Itália. O investigador Luís de Sousa questiona-se sobre a existência de ingredientes capazes de provocar algo do género em Portugal, mas acaba por revelar-se céptico, pela simples razão de ainda serem poucos os magistrados com coragem para levantar a voz. "Os nossos magistrados têm uma cultura conservadora e o sistema de ensino do Centro de Estudos Judiciários está a reproduzir o mesmo tipo de magistratura", afirma.
Portugueses radicalizam discurso contra a impunidade dos corruptos e já há magistrados a dizer que "isto não está bem": sinais que levam investigador a questionar viabilidade de operação anti-corrupção à italiana.
Há dias, um site de notícias dava uma novidade do processo BPN, com uma fotografia do ex-governante Oliveira e Costa, seguida de quatro comentários. Dois defendiam a "morte" dos arguidos, como a única forma de fazer justiça. Outro leitor dizia ter ido para o Brasil, "com uma reforma de miséria", para não lhe "dar alguma loucura e matar esse tipo [Oliveira e Costa] e mais alguns do BPN" que lhe "roubaram 150 mil contos". Só o quarto pôs água na fervura - "Não é preciso matar", escreveu -, mesmo concluindo que "há 35 anos que andam a tentar melhorar a eficiência da justiça, em Portugal, e o resultado é zero!".
O anonimato da Net é propício a todo o tipo de enormidades, mas aquela radicalização de discurso, contra a falta de resultados da justiça no combate à grande criminalidade económica, é perceptível ao virar de cada esquina. E há sinal dela nas sucessivas quedas de Portugal no ranking da Transparência Internacional - do 26º lugar para o 35º, entre 2006 e 2008 - que avalia a percepção da corrupção.
Mas é de relativizar esta estatística. Foi sobretudo nos últimos meses que as manifestações de desconfiança da justiça começaram a surgir de dentro do próprio sector, a propósito de processos como o Freeport e o Face Oculta.
Ainda ontem, o ex-bastonário Pires de Lima alertava para o "estado comatoso" da justiça, mas o sinal mais significativo é apontado pelo académico Luís de Sousa: "Aquilo que não se via no passado e vê agora é a entrada no debate público de magistrados a dizer que isto não está bem", afirma, acrescentando o que outros dizem em surdina: "Será que estamos aqui a ver o início de um processo do tipo Mãos Limpas em Itália?"
A Justiça em ebulição
Em que patamar de desenvolvimento estaria Portugal, se os fundos comunitários tivessem sido efectivamente aplicados na requalificação dos trabalhadores? Como estariam as finanças públicas, se cada adjudicação tivesse sido conduzida sem vícios e as obras não sofressem derrapagens médias superiores a 70%? Como estaria o urbanismo das cidades e o ambiente de zonas protegidas, se não prevalecesse a obtenção de mais-valias ilícitas? Como estaria a sanidade da democracia, se o financiamento partidário fosse sujeito a um escrutínio completo, constante e transparente?
As "interrogações incómodas" são do juiz conselheiro Santos Cabral e foram formuladas quando ele deixou a direcção da Polícia Judiciária, em conflito com o anterior ministro da Justiça, Alberto Costa. Há pistas para responder às perguntas, no capítulo que Santos Cabral dedicou à "Corrupção", no seu livro sobre "Uma Incursão pela Polícia", mas retenha-se o que disse Daniel Kaufmann, do Banco Mundial: a diminuição da corrupção poderia colocar Portugal ao nível da Finlândia, em termos de desenvolvimento.
Este país do Norte e os outros que têm ocupado os primeiros lugares do ranking da Transparência Internacional também estão em posições cimeiras do ranking das Nações Unidas sobre o Índice de Desenvolvimento Humano. Por cá, aumentam as disparidades, na distribuição de rendimentos, e os pobres já chegavam a dois milhões, antes da actual crise.
Para Luís de Sousa, estudioso do problema da corrupção, esta não tem sido combatida porque "não há vontade nem estratégia políticas". E desconfia das propostas legislativas com que os partidos acenam, sem acolherem contributos de peritos, como sucedeu na lei do financiamento partidário. Ainda assim, Sousa nota que a nossa legislação "não está assim tão longe" da de países de referência, mesmo faltando cumprir dois importantes compromissos assumidos em convenções internacionais: a instituição do crime de enriquecimento ilícito e de uma agência de prevenção e combate da corrupção.
A tipificação daquele crime está a ser proposta por vários partidos, não obstante o silêncio a que a justiça foi votada antes das legislativas. Quanto à agência, o último Governo criou o Conselho de Prevenção da Corrupção, mas a sua bondade foi questionada. Paulo Morais, ex-vereador do Urbanismo do Porto, chamou-lhe "nado-morto", por lhe faltarem as competências de combate. No fundo, foi ao encontro da tese do especialista Alain Doig, de que não se atinge prevaricadores com prevenção ou educação.
Em 1983, nasceu uma Alta Autoridade Contra a Corrupção, liderada pelo coronel Costa Brás, que, com poucas competências, ainda abriu milhares de processos. Parte deles foi encaminhada para a Justiça, mas os resultados foram poucos: "A justiça é lenta, as malhas da lei enormes, tal como os pactos de silêncio, e a própria natureza da corrupção foi-se tornando mais complexa", justificou um editorial do DN de 2006, antes de concluir a história: "Em 1993, Costa Brás confrontou o Parlamento com uma escolha: o reforço de competências ou a extinção. PSD e PS nem pestanejaram. Extinguiu-se".
Há anos que reina uma paz podre, em que a punição dos suspeitos que chegam a ser investigados limita-se, praticamente, à sua exposição na imprensa, por via de fugas de informação. Recorde-se a prescrição da gigantesca fraude do caso Partex, que tinha 114 arguidos e esteve na origem da instalação de um microfone no gabinete do ex-procurador-geral Souto Moura; ou ainda, ao nível das autarquias e do imobiliário, o arquivamento da morte do desalinhado vereador do PS de Almodôvar, António Colaço, em que as suspeitas de homicídio levaram à exumação do seu corpo, mas não permitiram uma autópsia completa, porque o crânio desapareceu da Medicina Legal de Lisboa...
Do passado e ainda do presente, dê-se os exemplos dos processos Furacão, Submarinos, Portucale, CTT, BCP, BPP, BPN, Freeport... Todos sobre corrupção e crimes conexos supostamente praticados há anos, com o envolvimento da fina flor dos negócios e da política, e ainda sem qualquer condenação.
Mas há, isso é evidente, a sensação de que o país chegou ao limite do suportável. E o caldeirão da justiça parece ter entrado em ebulição, desde que João Palma assumiu a presidência do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e denunciou que os procuradores do Freeport teriam sido pressionados, pelo magistrado que preside ao Eurojust, Lopes da Mota, a arquivar as suspeitas sobre o primeiro-ministro, José Sócrates. Resta agora saber se as escutas do Face Oculta em que também intervém José Sócrates são lenha suficiente para fazer saltar a pesada tampa do caldeirão.
Seja como for, nunca tanta figura pública, incluindo respeitados académicos, como Costa Andrade ou Pinto de Albuquerque, veio para a praça pública atacar decisões judiciais de entidades competentes, como o Supremo Tribunal de Justiça e a Procuradoria-Geral da República. Ontem mesmo, também o juiz Orlando Afonso avisou da necessidade de não se voltar a legislar em função de "determinadas situações", numa alusão à norma das escutas aprovada a seguir ao Casa Pia, para proteger titulares de órgãos de soberania.
Na década de 1990, a magistratura italiana desencadeou uma investigação de grande envergadura, sobre corrupção ao mais alto nível, que ditou o fim de vários partidos políticos e da Primeira República de Itália. O investigador Luís de Sousa questiona-se sobre a existência de ingredientes capazes de provocar algo do género em Portugal, mas acaba por revelar-se céptico, pela simples razão de ainda serem poucos os magistrados com coragem para levantar a voz. "Os nossos magistrados têm uma cultura conservadora e o sistema de ensino do Centro de Estudos Judiciários está a reproduzir o mesmo tipo de magistratura", afirma.
Fonte: Jornal de Notícias
1 comentário:
O texto está 5*****estrelas!!!!!
Maria
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