domingo, 29 de agosto de 2010

NAUFRÁGIO DO KURSK

Fez no passado dia 12 de Agosto de 2010, dez anos sobre a tragédia do submarino nuclear russo Kursk, no mar de Barents. Ontém, em conversa familiar, recordámos a tragédia dos 33 mineiros chilenos que se encontram presos na mina de San José, no Chile. Lembrei-me de seguida do naufrágio do Kursk onde perderam a vida 118 tripulantes de nacionalidade russa e, o meu irmão Luís Fernando, fez de imediato referência a um texto que escreveu sobre esta tragédia no mar de Barents. 

Com uns dias de atraso sobre a data do naufrágio do Kursk, Poet'anarquista publica a história de ficção de Luís Fernando Galhardas, em homenagem a toda a tripulação desaparecida nesse dia fatídico. 

O caso do compartimento número 9 fica entre nós, quem sabe um dia possa ser o título de uma outra história de ficção.
Um abraço e obrigado por partilhares!
Poet'anarquista 

KURSK
Submarino Nuclear Russo

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»S.0.S« NO MAR DE BARENTS

O submarino nuclear Kursk afundou-se a 12 de Agosto de 2000, durante um exercício naval no mar de Barents, tendo nele perecido os 118 tripulantes a bordo. Duas enormes explosões rasgaram o casco do K141, matando então grande parte da tripulação. Mas 23 tripulantes sobreviveram durante algum tempo. Estes 23 homens refugiaram-se no compartimento 9, o último do navio e localizado na popa. Assim o conta este relato ficcionado, que tenta reconstituir o que se passou naquele dia 12, no fundo do mar de Barents, e publicado na edição do jornal Dário do Sul, de 1 de Setembro de 2000. O compartimento 9 é referido posteriormente em carta encontrada no cadáver resgatado do tenente-capitão Dmitriy Kolesnikov: “13,15. Todo o pessoal dos compartimentos seis, sete, e oito passou para o compartimento nove. Somos 23. Tomamos essa decisão por causa do acidente. Ninguém pode subir… escrevo por tacto”
O resgate do Kursk e da sua tripulação arrastou-se por muitos meses que se seguiram, aumentando o sofrimento das suas famílias. 
In memoriam.


Dima aguarda com alguma ansiedade o fim das manobras navais da Frota do Norte. E o facto prende-se não com a saturação provocada por muitos dias passados no mar, a bordo do submarino nuclear Kursk – a jóia da coroa de toda a Armada Russa – onde se encontra em regime de voluntariado desde há seis meses, a maior parte do tempo navegando nos fundos de águas frias e escuras, que raramente vê, e muito menos com qualquer receio inconsciente que possa ter do risco sempre presente na vida de submarinista, pois o colosso, de cuja tripulação faz parte, é não só inafundável, como precavido contra qualquer tipo de acidentes, pelos mais modernos meios da navegação. Dima faz dezanove anos dois dias após o termo dos exercícios em que está envolvido o Kursk e esse é o facto que lhe provoca, digamos, não ansiedade mas alguma inquietação. A mãe e a namorada vêm juntar-se-lhe na Base Naval de Murmansk, para juntos festejarem o aniversário de Dima. Sim, este é o facto que o traz inquieto, pois, vindo das águas gélidas do Mar de Barents, sente necessidade do calor aconchegante da família. 
«Quem diria que o rapaz vai fazer dezanove anos?», questiona a sua imagem devolvida pelo único espelho da camarata, onde todo o espaço é pouco. O seu semblante de menino, em que desponta só agora alguma penugem, contrasta com o uniforme de marinheiro do submarino nuclear Kursk, talhado, pensar-se-á, para gente com aspecto mais endurecido. Mas Dima vê-se como um sortudo por conseguir um lugar na tripulação do navio que está baptizado com o nome da sua terra natal – a cidade de Kursk – situação que muitos jovens desejariam para si. Com o curso de técnico de motores recentemente concluído e uma compleição física razoável, ultrapassa sem dificuldade todas as barreiras, até vestir a farda de tripulante do K-141. Dima recorda o dia em que ele e os outros camaradas de incorporação vêem pela primeira vez o Kursk e entram pela escotilha de acesso à ponte de comando daquele  “monstro marinho de aço” para uma visita de reconhecimento ao que será, dentro em breve, o seu navio e modo de servir a pátria Russa.

São seis e trinta da manhã de 12 de Agosto de 2000. Dima está estendido em cima do beliche que partilha com dois colegas que prestam serviço, como ele, no compartimento das máquinas. Está acordado, observando na penumbra da zona de descanso, mas como se fosse iluminada por um potente flash, a fotografia desse primeiro dia, em que se encontra acompanhado pelo seu amigo e camarada de tripulação Liocha. Os dois jovens conhecem-se durante a recruta e fazem-se grandes amigos. Dima aguarda as sete horas da manhã, inicio do seu turno, gozando sensações rememorizadas por aquela fotografia de há meses atrás, tirada na coberta do Kursk. Vem-lhe à mente a sensação estranha que se apodera dele, quando vê o submarino nuclear K-141 pela primeira vez. O oficial de instrução mantém os marinheiros perfilados e em sentido, enquanto elogia o que considera ser um exemplo do sucesso tecnológico e do poderio militar ao serviço do povo russo – Classe Antey, tipo 949 A, SSGN, no activo desde 1995, pode navegar a uma profundidade de 500 metros...
“O gigante de metal” produz uma imagem de resistência e poder naval sem limites, ao mesmo tempo que o invade com aquela sensação estranha que a fotografia recria da mesma forma, como se fosse no próprio dia” – um calafrio percorre o corpo de Dima, o aço negro que constitui a estrutura exterior do submarino intimida-o, psicologicamente, com uma visão de irrealidade brutal, que lhe é transmitida pela envergadura do vaso de guerra, impossível de abarcar de uma só vez no campo visual.
A divagação de Dima é bruscamente interrompida pelo toque da sirene a chamar o turno das sete da manhã. Num ápice veste-se, passa a cara por água, entra na cantina sempre impregnada por um cheiro enjoativo, que logo de manhã lhe faz perder o apetite, e aí vê Liocha que faz o percurso inverso ao seu – trocam um sorriso aberto e dão um pequeno encosto ombro a ombro, sinal de que tudo vai bem . Ao segundo toque da sirene, que indica que são sete da manhã em ponto, encontra-se no seu posto na sala das máquinas/compartimento 9 do submarino nuclear Kursk, tecnicamente conhecido por K-141. O pessoal esmera-se na limpeza e arrumação do compartimento, pois vão ter a visita do comandante Gennady que nessa manhã passa revista a todo o navio, acompanhado por altos comandos da Frota do Norte. 

Subitamente Dima ausenta-se para centenas de quilómetros de distância, pensa na mãe e na namorada que brevemente farão a viagem de quarenta e cinco horas de combóio de Kursk até Vidyayevo, para se abraçarem e conviverem durante a licença de dois dias que lhe é concedida no fim do exercício naval e que coincide com o seu aniversário. O chamar pelo seu nome, no tom inconfundível e modo sarcástico da voz do chefe da secção, trá-lo de volta à azáfama da sala das máquinas.
Pelos altifalantes de cada compartimento do navio sai a voz do Imediato que anuncia uma subida à superfície, o que desencadeia em Dima outro momento de descontracção e alheamento – “há vários dias que simulam aproximações a alvos nos fundos do Mar de Barents, a uma profundidade variável, entre cinquenta e cento e cinquenta metros ; sabe-lhe bem ouvir a voz de subida, sentir a proximidade do céu azul ou encoberto, da superfície do mar calmo ou agitado, batendo no casco do Kursk, escutar o vento uivante que por aquelas paragens é frio e endiabrado..., mesmo que não seja permitido ir até à coberta contemplar os elementos e perscrutar a linha do horizonte até onde a vista enxerga”... Quando Dima se concentra pela segunda vez não tem tempo de reiniciar a sua tarefa. Um estoiro, que parece ter origem na zona da proa, faz abalar o Kursk com alguma intensidade, quando se encontra na manobra de subida, a cerca de vinte e cinco metros da superfície. A energia é interrompida sucessivamente, os geradores de apoio não funcionam, há curto-circuitos que lançam faíscas em todas as direcções, em diversos pontos da instalação eléctrica da sala das máquinas e um pequeno incêndio surge num disjuntor. Dima sente o desejo de percorrer os outros compartimentos para se informar do sucedido e ver, com os seus próprios olhos, que Liocha se encontra bem. 
«Terá sido um embate com outro submarino... ou com um navio de grande calado?... ou um torpedo mal lançado que explodiu perto da proa?...», são duas perguntas, em modo quase afirmativo, que Dima equaciona expeditamente para explicar o sucedido… e dirige aos camaradas do 9.

A voz do comandante Gennady é agora expelida pelos intercomunicadores de bordo, denunciando exasperação e alarme, dando ordens em tom inusual: –todo o pessoal aos seus postos..., injectar ar nos compartimentos centrais..., verificar o mecanismo de protecção dos reactores nucleares..., quero um relatório imediato do que se passou na sala dos torpe... O altifalante é suspenso bruscamente e nada mais se ouve porque um estampido terrível lança um potente sopro vindo dos lados da proa; em simultâneo o Kursk é sacudido com tal violência que os marinheiros do compartimento 9 são projectados como marionetes contra a maquinaria e paredes de revestimento interior. Depois um breve instante de atordoamento e de silêncio tumular, logo seguido do ecoar de mistura de vozes e de gritos lancinantes, em outros compartimentos mais próximos do 9, logo abafado por um estrondo medonho característico, como o ribombar de um trovão que aumenta constantemente de intensidade e Dima adivinha ser a fúria das águas do Mar de Barents, que tomam apressadamente conta do K-141. Percebe-se que o submersível desce sem governo, que os dois reactores nucleares foram automaticamente desactivados, pois a falta de energia agora é total. Dima, aturdido, tenta levantar-se mas logo é arrastado pela inclinação da descida e tropeça em alguém que se encontra caído. Alguns gemidos dão sinal de gente do seu lado esquerdo, porque as vozes e gritos vindos dos outros compartimentos emudeceram. Apenas se ouve o ruído da água, muito perto mas sem o furor diabólico de há pouco. A escuridão é pavorosa e a temperatura baixa assustadoramente. O jovem marinheiro sente esse frio doloroso que lhe atinge os ossos e pensa no seu amigo Liocha, quando é arrojado por outro impacto do Kursk que logo de seguida parece imobilizado. 

Deduz que o mais moderno e poderoso submarino russo bate no fundo do Mar de Barents. Tenta erguer-se novamente, seguro às tubagens das canalizações que descobre facilmente pela rotina de conhecer, de olhos fechados, todos os cantos do compartimento 9. Isso dá-lhe alguma vantagem perante a treva que paira a toda a volta e lhe provoca alguma angústia que tenta contrariar. Como quem sai de um estado de anestesia, começa a sentir uma forte dor na nuca e em todo o lado esquerdo do corpo, que relaciona com o facto de ter sido projectado pela potente onda de choque que se expandiu por todo o submarino. Quando fica em pé  as pernas tremem, um suor gélido e viscoso cobre-lhe todo o corpo, tem dificuldade em respirar e em mover-se... é obrigado a fazer um esforço considerável para se manter firme...
A prática de ir e vir das profundidades diz-lhe que o Kursk está assente de proa e adornado a bombordo.
Ouve gemidos ténues, pela segunda vez. Chama pelos nomes dos camaradas que estão com ele na sala das máquinas: «Vladimir, Maxim... se me ouvem respondam... meu Deus o que nos está a acontecer?... que pesadelo é este?...  
Vladimir…, Maxim…, digam qualquer coisa..., estou a falar convosco!». Dima fala com modo irritado mas suplicante, desejando fervorosamente ouvir outra voz que não a sua. Obtém como resposta um estremecimento brusco do Kursk, acompanhado de um rugido fantasmagórico. Por instinto deixa-se cair com o “monte de aço” – inafundável. Juntos gesticulam o último estertor...

L.F.Galhardas
 

3 comentários:

Ana Paula Fitas disse...

Lembro-me de ler, à época, este texto do Luís Fernando e felicito-te pela associação de ideias que os Mineiros de San Jose te fizeram evocar... esperemos que tenham a capacidade de encontrar forças para, todos juntos, resistirem...
Aquele abraço :)

Camões disse...

Obrigado amiga.... li também a referência que publicaste no "A Nossa Candeia", sobre a tragédia dos 33 mineiros chilenos que se encontram presos na mina de San José.
Deus queira que se salvem todos, porque de um grande trauma psicológico já ninguém os pode salvar...

A história do Luís Fernando foi publicada no jornal "Diário do Sul" há alguns anos atrás.

Bjs.

Cabé

Anónimo disse...

Muito boa a introdução a cargo do POETA e fantástica a história de ficção do seu irmão. É caso para dizer, passou a tripla!

Maria