«A Pane»
Conto de Friedrich Durrenmatt
687- «A PANE»
[Excerto]
Uma história ainda possível
I Parte
Existem ainda, histórias
possíveis, historias para escritores? Se alguém não quiser narrar sobre si mesmo, generalizar seu eu de maneira
romântica, lírica, se não sentir a obrigação de falar de suas esperanças e
derrotas, com total veracidade, de falar do seu modo de deitar-se com mulheres,
como se a veracidade transpusesse tudo isso para o âmbito geral, e não para o
plano da Medicina, da Psicologia na melhor
das hipóteses..., se alguém não quisesse fazer isso, mas antes recuar
discreto, educadamente preservando a esfera privada, tendo a trama diante de si
como um escultor tem seu material, e nela trabalhar, nela se desenvolver, e
como uma espécie de artista clássico tentar não se desesperar de imediato,
ainda que seja inegável o puro absurdo que por todos os lados se revela, então
o acto de escrever torna-se mais difícil e solitário, mais sem sentido também. Uma boa nota na História da
Literatura não interessa – afinal, quem é que já não ganhou uma boa nota, que embustes já não foram premiados com distinção? –, as
exigências do momento são mais importantes. No entanto, também aqui nos vemos
diante de um dilema e uma situação ruim no mercado. A vida oferece puro e simples
entretenimento: à noite, o cinema; no jornal diário, a poesia, bem ou mal. Por
um pouco mais – num gesto de generosidade social, já a partir de um franco
suíço – exige-se a alma, confissões, veracidade mesmo;
deve-se veicular valores elevados, lições de moral, sentenças úteis,
alguma coisa deve ser superada ou afirmada, ora o Cristianismo, ora o desespero
corrente – literatura enfim. Porém, e se o autor se recusar a produzir tal
coisa? E se, cada vez mais decidido e obstinado, certo de que a razão para sua
escrita esta nele mesmo, em seu consciente ou inconsciente, dependendo, de caso
a caso, de uma dose de sua crença ou de sua duvida, mas julgando também que
justamente isso já não diga respeito ao publico, sendo suficiente o que escreve, configura, forma, bastando mostrar a
superfície o que escreve, e só ela, de modo apetitoso, trabalhando-se somente
nela, de resto seria o caso de calar a boca, sem comentários nem conversa
fiada? Tendo descoberto tal coisa, ele há de gaguejar, hesitar,
ficar perplexo. Isso será praticamente
inevitável.Cresce o pressentimento de que não há mais nada para narrar,considera-se seriamente a possibilidade de renunciar. Talvez ainda
sejam possíveis algumas frases; pois, caso contrário, é uma guinada rumo à Biologia, para pelo menos em pensamento dar conta da
explosão da humanidade, de seu avanço para a casa dos bilhões, dos úteros
produzindo sem parar; ou rumo a Física. Á Astronomia, e por uma questão de
ordem prestar contas a si mesmo sobre a armação na qual balançamos. O resto
fica para a revista de variedades, para a Life, a Match, a Quick e para a Sie
und Er: o presidente na tenda de oxigénio, tio Bulganin em seu jardim, a
princesa com seu prodigioso comandante de vôo, personalidades do cinema e
rostos-dólares, peças
substituíveis, já fora da moda, quase não se fala mais nelas. Paralelamente, o
cotidiano de uma pessoa qualquer; em meu caso, europeu ocidental – suíço, para
ser mais exato –, tempo ruim e panorama económico bom, preocupações e tormentos,
abalos por acontecimentos privados, só que
sem ligação com o todo mundo, com o decorrer dos acertos e
desacertos, com o desenrolar das necessidades. O destino abandonou o palco no
qual encenando para ficar a espreitar os bastidores, fora da dramaturgia vigente;
no primeiro plano tudo se transforma em acidente: as doenças,
as crises. Mesmo a guerra se torna dependente dos cérebros eletrónicos
poderem ou não prever sua rentabilidade. Porem, isso nunca acontecerá: sabe-se que, se as
maquinas calculadoras funcionarem, somente as derrotas serão
matematicamente prováveis; ai de nós, se ocorrerem fraudes,
intervenções proibidas nos cérebros artificiais. Mas mesmo isso é menos constrangedor
que a possibilidade de que um parafuso se afrouxe, um fuso saia do curso
normal, um botão reaja errado, o fim do mundo causado por um curto-circuito
técnico, uma conexão malfeita. Assim, nenhum deus mais nos ameaça, nenhuma
justiça, nenhum destino como na “Quinta Sinfonia”, e sim acidentes de trânsito,
rupturas de diques em virtude de falha de construção, a explosão de uma fabrica
de bombas atómicas provocada por um funcionário de laboratório distraído,
chocadeiras mal-instaladas. É a esse mundo de panes que leva nosso caminho, de
cuja margem poeirenta, além de reclames para calçados Bally, automóveis
Studebaker, ou sorvetes, e lápides em memória dos acidentados, resultam ainda
algumas histórias possíveis. A humanidade olhando a partir de uma cara comum, o azar sem querer se
generalizando, julgamento e justiça tornando-se visíveis, talvez até a piedade,
captada por acaso, refletida pelo monóculo de um embriagado.
Friedrich Durrenmatt
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