«Angústia»
Conto de Anton Tchekhov
960- «ANGÚSTIA»
Crepúsculo vespertino. Uma neve húmida, em grandes flocos,
remoinha preguiçosa junto aos lampiões recém-acesos, cobrindo com uma camada
fina e macia os telhados das casas, os dorsos dos cavalos, os ombros das
pessoas, os chapéus. O cocheiro Yona Potapov está completamente branco, como um
fantasma. Encolhido o mais que pode se encolher um corpo vivo, está sentado na
boleia, sem se mover. Tem-se a impressão de que, mesmo que caísse sobre ele um
montão de neve, não consideraria necessário sacudi-la… Seu rocim está
igualmente branco e imóvel. Graças a sua imobilidade, à angulosidade das formas
e à perpendicularidade de estaca de suas patas, parece mesmo, de perto, um
cavalinho de pão-de-ló de um copeque. Seguramente, ele está imerso em
meditação.
Não pode deixar de meditar quem foi arrancado do arado, da
paisagem cinzenta e familiar, e atirado nessa voragem, repleta de luzes
monstruosas, de um barulho incessante e de gente correndo…
Faz muito tempo que Yona e seu rocim não se mexem do lugar.
Saíram de casa ainda antes do jantar, e, até agora, não apareceu trabalho. Mas,
eis que a treva noturna desce sobre a cidade. A palidez das luzes dos lampiões
cede lugar a cores vivas e a confusão das ruas torna-se mais barulhenta.
— Cocheiro, para a Víborgskaia! — ouve Yona. — Cocheiro!
Estremece e vê, através das pestanas cobertas de neve, um militar de capote com
capuz. — Para a Víborgskaia! — repete o militar. — Está dormindo? Para a
Víborgskaia!
Em sinal de consentimento, Yona puxa as rédeas, e a neve cai
em camadas de seus ombros e do dorso do cavalo… O militar senta-se no trenó. O
cocheiro faz ruído com os lábios, estende o pescoço à feição de cisne, ergue-se
um pouco e agita o chicote, mais por hábito que por necessidade. O cavalinho
estica também o pescoço, entorta as pernas, que parecem estacas, e desloca-se
com indecisão…
— Onde vai, demónio?! — ouve, logo depois, Yona exclamações
partidas da massa escura de gente, que se desloca em ambos os sentidos. — Para
onde te empurram os diabos? Mantenha-se à direita! — Não sabe dirigir! Olha a
direita — zanga-se o militar.
O cocheiro de uma carruagem solta impropérios; um
transeunte, que atravessou a rua correndo e chocou-se com o ombro contra a cara
do rocim, lança um olhar rancoroso e sacode a neve da manga. Na boleia, Yona
parece sentado sobre alfinetes e aponta com os cotovelos para os lados; seus
olhos tontos perpassam pelas coisas, como se não compreendesse onde se encontra
e o que está fazendo ali.
— Que gente canalha! — graceja o militar. — Eles se esforçam
em chocar-se contra você ou cair em baixo do cavalo.
Combinaram isso. Yona volta-se para o passageiro e move os
lábios… Sem dúvida, quer dizer algo, mas apenas uns sons vagos lhe saem da
garganta.
— O quê? — pergunta o militar.
Yona torce a boca num sorriso, faz um esforço com a garganta
e cicia:
— Pois é, meu senhor, assim é… perdi um filho esta semana. —
Hum!… De que foi que morreu? Yona volta todo o corpo na direção do passageiro e
diz: — Quem é que pode saber! Acho que foi de febre… Passou três dias no hospital
e morreu… Deus quis. — Dá a volta, diabo! — ressoa nas trevas uma voz. — Não
está mais enxergando, cachorro velho? É com os olhos que tem que olhar! — Anda,
anda… — diz o passageiro. — Assim, não chegamos nem amanhã. Mais depressa!
O cocheiro estica novamente o pescoço, ergue-se um pouco e
agita o chicote, com uma graciosidade pesada. Depois, torna a olhar algumas
vezes para o passageiro, mas este fechou os olhos e parece pouco disposto a
ouvir. Depois de deixá-lo na Víborgskaia, pára diante de uma taverna, encurva-se
sobre a boleia e fica novamente imóvel… A neve molhada torna a pintá-lo de
branco, juntamente com o rocim. Decorre uma hora… outra…
Três jovens passam pela calçada, fazendo muito barulho com
as galochas e trocando impropérios: dois deles são altos e magros, o terceiro é
pequeno e corcunda.
— Cocheiro, para a Ponte Politzéiski! — grita o corcunda,
com voz surda. — Damos vinte copeques… os três! Yona sacode as rédeas e faz
ruído com os lábios. Vinte copeques são um preço inadequado, mas, agora, pouco
lhe importa o preço… Tanto faz seja um rublo ou cinco copeques, contanto que
haja passageiros… Empurrando-se e soltando palavrões, os jovens acercam-se do
trenó e sobem para os assentos, os três ao mesmo tempo. Começam a discutir a
questão: dois deles irão sentados, e quem vai ficar de pé? Depois de uma longa
troca de insultos, manhas e recriminações, chegam à conclusão de que o corcunda
é quem deve ficar de pé, por ser o menor.
— Bem, faz o cavalo andar! — grita com voz trémula o
corcunda, ajeitando-se de pé e soprando no pescoço de Yona. — Dá nele! Que
chapéu você tem, irmão! Não se encontra um pior em toda Petersburgo… — Hi-i…
hi-i… — ri Yona. — Assim é… — Ora, você assim é, bate no cavalo! Vai andar
desse jeito o tempo todo? Sim? E se eu te torcer o pescoço? — Estou com a
cabeça estalando… — diz um dos moços compridos. — Ontem, em casa dos Dukmassov,
eu e Vaska tornamos quatro garrafas de conhaque. Não compreendo para que
mentir! — irrita-se o outro moço comprido. — Mente como um animal. — Que Deus
me castigue, é verdade… — Tão verdade como um piolho tossindo. — Hi-i! — ri
Yona entre dentes. — Que senhores alegres! — Irra, com todos os diabos!… —
indigna-se o corcunda. — Você vai andar ou não, velha peste? É assim que se
anda? Estala o chicote no cavalo! Eh, diabo! Eh! Dá nele!
Yona sente, atrás de si, o corpo agitado e a voz trémula do
corcunda. Ouve os insultos que lhe são dirigidos, vê gente, e o sentimento de
solidão começa, pouco a pouco, a deixar-lhe o peito. O corcunda continua os
impropérios e, por fim, engasga com um insulto rebuscado, descomunal, e desanda
a tossir. Os moços compridos começam a falar de uma certa Nadiejda Pietrovna.
Yona volta a cabeça para olhá-los. Aproveitando uma pausa curta, olha mais uma
vez e balbucia:
— Esta semana… assim, perdi meu filho! — Todos vamos morrer.
— suspira o corcunda, enxugando os lábios, após o acesso de tosse. — Bem, bate
nele, bate nele! Minha gente, decididamente, não posso continuar andando assim!
Esta corrida não acaba mais? — Você deve animá-lo um pouco… umas pancadas no
pescoço! — Está ouvindo, velha peste? Vou te moer o pescoço de pancada! Não se
pode fazer cerimónia com gente como você, senão é melhor andar a pé! Está
ouvindo, Zmiéi Gorínitch? Ou você não se importa com o que a gente diz? E Yona
ouve, mais que sente, os sons de uma pancada no pescoço. — Hi-i… — ri ele. —
Senhores alegres… que Deus lhes dê saúde! — Cocheiro, você é casado? — pergunta
um dos compridos.
Eu? Hi-i… que senhores alegres! Agora, só tenho uma mulher,
a terra fria… Hi-ho-ho… O túmulo, quer dizer!… Meu filho morreu, e eu continuo
vivo… Coisa esquisita, a morte errou de porta… Em vez de vir me buscar, foi
procurar o filho… E Yona volta-se, para contar como lhe morreu o filho, mas,
nesse momento, o corcunda solta um suspiro de alívio e declara que, graças a
Deus, chegaram ao destino. Tendo recebido vinte copeques, Yona fica por muito
tempo olhando os pândegos, que vão desaparecendo no escuro saguão. Está
novamente só e, de novo, o silêncio desce sobre ele… A angústia que amainara
por algum tempo torna a aparecer, inflando-lhe o peito com redobrada força. Os
olhos de Yona correm, inquietos e sofredores, pela multidão que se agita de
ambos os lados da rua: não haverá, entre esses milhares de pessoas, uma ao
menos que possa ouvi-lo? Mas a multidão corre, sem reparar nele, nem na sua
angústia… Uma angústia imensa, que não conhece fronteiras. Dá a impressão de
que, se o peito de Yona estourasse e dele fluísse para fora aquela angústia,
daria para inundar o mundo e, no entanto, não se pode vê-la. Conseguiu caber
numa casca tão insignificante, que não se pode percebê-la mesmo de dia, com
muita luz… Yona vê o zelador de uma casa, carregando um embrulho, e resolve
travar conversa.
— Que horas são, meu caro? — pergunta. — Mais de nove… Por
que você parou aqui? Passa!
Yona afasta-se alguns passos, torce o corpo e entrega-se à
angústia… Considera já inútil dirigir-se às pessoas. Mas, decorridos menos de
cinco minutos, endireita-se, sacode a cabeça, como se houvesse sentido uma dor
aguda e puxa as rédeas… Não pode mais.
“Para casa”, pensa, “para casa”.
E o cavalinho, como se tivesse compreendido seu pensamento,
começa a trotar ligeiramente. Uma hora e meia depois, Yona está sentado junto
ao fogão grande e sujo. Há gente roncando em cima do fogão, no chão e sobre os
bancos. O ar é abafado, sufocante… Yona olha para os que dormem, coça a cabeça
e lamenta haver voltado tão cedo para casa… “Não ganhei nem para a aveia”,
pensa. “Daí essa angústia. Uma pessoa que conhece o ofício… que está bem alimentada
e tem o cavalo bem nutrido também, está sempre calma…” Num dos cantos,
levanta-se um jovem cocheiro, funga, sonolento, e arrasta-se para o balde de
água.
— Ficou com sede? — pergunta Yona. — Com sede, sim! — Bem…
Que lhe faça bom proveito… Pois é, irmão, e eu perdi um filho… Está ouvindo?
Foi esta semana, no hospital… Que coisa!
Yona procura ver o efeito que causaram suas palavras, mas
não vê nada. O jovem se cobriu até a cabeça e já está dormindo. O velho suspira
e se coça… Assim como o jovem quis beber, assim ele quer falar. Vai fazer uma
semana que lhe morreu o filho e ele ainda não conversou direito com alguém
sobre aquilo… É preciso falar com método, lentamente… É preciso contar como o
filho adoeceu, como padeceu, o que disse antes de morrer e como morreu… É
preciso descrever o enterro e a ida ao hospital, para buscar a roupa do
defunto. Na aldeia, ficou a filha Aníssia… É preciso falar sobre ela também… De
quantas coisas mais poderia falar agora? O ouvinte deve soltar exclamações,
suspirar, lamentar… E é ainda melhor falar com mulheres. São umas bobas, mas
desandam a chorar depois de duas palavras.
“É bom ir ver o cavalo”, pensa Yona. “Sempre há tempo para
dormir…”
Veste-se e vai para a cocheira, onde está seu cavalo. Yona
pensa sobre a aveia, o feno, o tempo… Estando sozinho, não pode pensar no
filho… Pode-se falar sobre ele com alguém, mas pensar nele sozinho, desenhar
mentalmente sua imagem, dá um medo insuportável…
Está mastigando? — pergunta Yona ao cavalo, vendo seus olhos
brilhantes. — Ora, mastiga, mastiga… Se não ganhamos para a aveia, vamos comer
feno… Sim… Já estou velho para trabalhar de cocheiro… O filho é que devia
trabalhar, não eu… Era um cocheiro de verdade… Só faltou viver mais…
Yona permanece algum tempo em silêncio e prossegue: — Assim
é, irmão, minha eguinha… Não existe mais Kuzmá Iônitch… Foi-se para o outro
mundo… Morreu assim, por nada… Agora, vamos dizer, você tem um potrinho, que é
teu filho… E, de repente, vamos dizer, esse mesmo potrinho vai para o outro
mundo… Dá pena, não é verdade?
O cavalinho vai mastigando, escuta e sopra na mão de seu
amo… Yona anima-se e conta-lhe tudo…
Anton Tchekhov
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