«Conto da Páscoa»
D. Sancho de Castela e Leão/ O Bravo
1015- «CONTO DA PÁSCOA»
Quando a lua assomou por detrás dos paredões da fortaleza já a matança tinha
começado. Subiam gritos roucos das vielas, enroladas na sombra trágica da
noite, para logo se apagarem ao longe, num ruído confuso de batalha.
Surpreendidos pela sanha do ataque, os vizinhos da cidade saltavam estonteados
da cama, não sabendo, ao aferrolharem-se melhor, se eram os mouros que haviam
tornado. E, no entanto, descidos do alcáçar, os homens de armas repartiam-se em
bandos, e a cada esquina, no cotovelo de qualquer arcada ou rio adro dos
pequenos cemitérios da reconquista, esgolfavam-se uns contra os outros, numa
refrega impiedosa e sem cansaço.
Assim, por entre pragas e ais espaçados de moribundos, o dia
da Páscoa vem encontrar a Bejaranos e a Portugaleses, dizimando-se furiosamente
dentro dos muros de Badajoz.
***
Corria o ano de 1289 e não se fechava ainda um século sobre
a hora em que a Cruz se vira hasteada, nos adarves da cidade, pelas tropas
vitoriosas de Afonso de Leão. Abril viera, mais uma vez, com as cegonhas voando
a sua rima compassada e os campos toucando-se de rosmaninho e giesta. Na
véspera, entre a procissão solene dos cônegos e dos raçoeiros, o Bispo benzera,
na Catedral, o Fogo e a Água. Tudo parecia, com a ressurreição do Senhor,
anunciar a paz à velha atalaia do Guadiana. Mas os ódios antigos não dormiam,
como brasas de baixo da cinza.
Não dormiam desde o primeiro instante em que a colonização
de Badajoz, em seguida à sua tomada, se entregara a famílias oriundas de
Portugal e a gente descida de Bejar — a caminho já das montanhas leonesas.
Dividiram-se as terras, na presença do Rei, pelos povoadores da cidade.
Cedo a cobiça despertou, ateada pela diferença de raças. E
não tardaram Bejaranos e Portugaleses procurarem-se nas ruas de Burgos, como
duas hostes encarniçadas, por um sentimento bárbaro de extermínio.
Mandava em Castela, já unida a Leão, aquele D. Sancho, a
quem os cronistas chamaram o Bravo.
Possuíam os Portugaleses valimento na Corte, — o valimento
de D. Afonso Godinez, favorito do Monarca. Descendia D. Afonso Godinez de certo
D. Godinho Godinhes — o de Coimbra, do qual se conta nas genealogias que de
Riba-Mondego correra com a sua mesnada à conquista de Salamanca. Não se
esquecia o favorito de Sancho IV dos vínculos do sangue, na proteção dispensada
aos Portugaleses de Badajoz. Quem sabe se eles não descenderiam, também dos
outros, dos que tinham subido de Riba-Mondego na mesnada de D. Godinho
Godinhes, com os seus cintos aperrados e os enérgicos braços plebeus,
denunciando a adolescência dum povo prestes a ser batizado pela história?
Seguros de tão grande encosto, empenharam-se os Portugaleses
em expulsar de Badajoz os Bejaranos, — seus contendores. Não era menos forte o
empenho dos Bejaranos em se desfazerem dos Portugaleses.
Com este fermento constante de desavença, o próprio rei D.
Sancho tentou, em pessoa, congraçar os dois bandos enfurecidos. Andavam então
em Castela as coisas mui revoltas, por causa dos partidários dos infantes de La
Cérda. Temia-se o Monarca de que em Badajoz, ou Bejaranos, ou Portugaleses, se
voltassem para seus sobrinhos. Mas a ação apaziguadora do Rei durou tanto, como
durou a sua estada em Extremadura.
Tornando depressa ao antigo, conseguiram os Portugaleses
atirar para fora da cidade com os Bejaranos. E, não contentes, despojaram-nos
ainda por cima dos seus haveres e fazendas.
Queixaram-se os espoliados a D. Sancho, e por decisão da
justiça real, se intimou aos Portugaleses completa reparação. Entrados de novo
na cidade, exigem os de Bejar que se cumpra a sentença da Cúria-Régia. Recusam
os Portugaleses atendê-los, arrumados ao apoio que lhes dispensava na corte o
favorito do Monarca. Logo a luta se acendeu, mais cruel do que nunca. Rompera
em ligeiros motins, mal o sino grande da Sé badalara o recolher. Protegidos
pelo esconso das vilas, puderam os de Bejar apropriar-se da parte da alcáçova,
e na balbúrdia do massacre, os Portugaleses, saindo, cegos, para o combate, não
distinguiam a irmãos e a inimigos, na ira dos seus golpes enraivados.
***
“Liberdad! Liberdad!” gritavam os Bejaranos no seu assalto às
moradas dos de Portugal. E, de mistura com o tinir dos ferros mordidos de
laivos, vermelhos, já aclamam rei a
D. Afonso de La Cerda. A manhã raiara, com o Guadiana muito
quieto, espreguiçando na indiferença a sua linha arrastada e suja.
O estridor da carnificina renascera mais violento, e ninguém
pensava, ou alanceado pela dor, ou ensandecido pelo ódio, em honrar a Cristo
Senhor Nosso, ressuscitado naquele dia. Os sinos da Igreja-Maior ficaram
calados, na alta torre ameiada. Nenhuma garrida se ouvia aqui ou além,
convidando os fiéis para o convívio dos Sagrados Mistérios. Os largos
atulhavam-se de cadáveres, e os cães lambiam, gulosos desse banquete
inesperado, as poças de sangue negro. A porta da Catedral ainda uma mão trêmula
a abrira. Mas os cadeirados do coro permaneceram desertos de beneficiados e de
cônegos. Dir-se-ia que nem a Missa se iria escutar nas naves venerandas, quando
no lajedo ressoaram passos brandos e leves. O Bispo entrava, sem cerimonial,
acompanhado por um pajenzito, transido de pavor.
Era uma figura macilenta de ancião, com longos sulcos de
penitência na apergaminhada face de asceta. Dirigiu um olhar dolorido às
capelas ermas e obscuras, para de pronto endireitar o busto, como que de ouvido
à escuta. Lá fora, à orla da manhã, a matança redobrava mais implacável, — com
mais sanha. Turvou-se a expressão do Prelado, já de joelhos diante do Altar,
onde bruxuleava uma lâmpada quase a extinguir-se. As rosáceas inflamavam-se a
pouco e pouco, flamejando com o sol nascente, aleluias de cor. E na alma do
Bispo, que atormentada procela! Perlavam-lhe a pele amarfinada lágrimas grossas
e vagarosas. Nos lábios secos, adivinhava-se-lhe o fio débil da oração
refrigerando-lhos, compassiva. Adeja-lhe em torno um como que resplendor
místico, O que passaria na prece do ancião, clamando piedade ao Senhor?
Mas, eis que o Prelado se levanta, tocado dum alento
repentino. Levanta-se, com um aprumo majestoso de Pastor, e a um sacristão
aterrado que se escoava na sombra, ordena-lhe que trepe à torre e despregue a revoada
dos sinos, em repiques de festa solene. Paramenta-se ele próprio, entretanto,
com ouros e as galas da liturgia. A sua boca recita, confiada, as palavras do
Apóstolo: — “Oh mors, ubi victoria tua?” Uma luminosa serenidade lhe acaricia
as feições, todo embebido em meditação profundíssima. No alto da torre, por
sobre a cidade a braços com a Morte, os sinos repicavam já a glória de Cristo
Ressuscitado. Passeando-se na crasta capitular, repetia o Bispo, impregnado
duma secreta unção, a apóstrofe jubilosa do Apóstolo: — “Oh mors, ubi victoria
tua?” E na torre, os sinos repicavam, — repicavam, levianos e açodados, na
manhã transparente de abril.
***
Mas os cônegos não aparecem, não aparecem os raçoeiros.
Teria o Bispo de subir sozinho os degraus do Altar, para que não faltasse ao
Senhor a dádiva angustíssima da Missa? Volta o coração a apertar-se-lhe,
percebendo para lá do muros espessos da Catedral, o bater dos ferros homicidas,
de envolta com os brados e as imprecações da batalha.
Enclavinha as mãos afiladas num gesto súplice de
misericórdia, e é assim que ele avança para o presbitério, sem acólitos nem
fiéis, com a igreja vazia e o coro abandonado, como se um vento tumular
houvesse soltado ali a sua rajada devastadora.
“Introibo ad altare Dei!” — murmura o Bispo, meio curvado
sobre si mesmo. E logo eleva o pensamento ao Senhor, para que não se reze sem
ouvintes a missa gloriosa da Ressurreição. Volve-se, depois, lento e
angustiado, — “Dominus vobiscam!” pronunciando a saudação ritual. Mas queda-se
suspenso, de mãos erguidas, como se o tivesse roçado a asa duma maravilha nunca
vista. Prostrada a seus pés, recolhida e atenta, uma imensa turba enchia a
Catedral. Entrara silenciosa e em silêncio guardava a mais recolhida atitude,
num desejo transparente de bem honrar ao Senhor.
Renova o Prelado a saudação litúrgica, ao começar o
ofertório. E então a sua vista cansada, por entre a assistência comprimida, sem
um rumor, ao longo das três naves, iluminadas pelo sol em caprichosas fitas de
ouro, abrange, agora, com surpresa, mantos floreteados de Alcântara, peitos de
couraças esplendentes, magistrados de loba e garnacha, damas arrastando
brocados de preço, algumas cogulas mitradas, seguidas duma massa anônima de
mesteirais e gente miúda, trajando honradamente a sua véstia domingueira. Apura
ainda mais a vista o comovido ancião, e já reconhece muitos a quem ungira nos
transes da agonia ou que ele acompanhara ao descanso final, entoando, pausado,
o ofício de defuntos. Na ausência dos vivos, os mortos haviam saído do sono
frio da sepultura para testemunharem, no milagre da própria ressurreição, o
milagre admirável da ressurreição de Cristo Jesus!
Inclina-se o Bispo para o Cálix mais para a Hóstia num
colóquio mudíssimo com Deus feito Carne, O seu olhar anuviado mal atinge,
esforçando-se, as rubricas góticas do missal. Bate-lhe o coração numa fadiga
inexprimível. Mas ao momento solene da Consagração, com o sangue do cordeiro
imolado, o Bispo oferece-se, em holocausto sincero para que a alegria visite os
Vivos e a paz seja dada aos Mortos de boa vontade. Vai-se arrastando, trôpego e
exânime, na observância dos passos canônicos. “Ite, misse est!” — balbucia, por
fim, com a voz desmaiada, a desfalecer-se-lhe na garganta.
O estranho povo de fantasmas sumira-se como por encanto. E
ao suplicar, de cabeça pendente: “Placeat tibi, sancta Trinitas...”, os membros
inteiriçam-lhe de súbito, o espírito desampara-o sem sofrimento, e o Bispo
adormece suavemente na Eternidade, como uma criança no regaço da mãe. Quem vira
os Mortos confessarem a vitória da Vida sobre a Morte, não podia continuar mais
entre vivos que estavam mais mortos na vida do que os Mortos no seu sepulcro de
sombras!
António Sardinha
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