domingo, 15 de outubro de 2017

OUTROS CONTOS

«Ver para Crer», por John Reed.

«Ver para Crer»
Conto de John Reed

1110- «VER PARA CRER»

Se a rapariga era honrada ou não, é coisa que Jorge ignora, mas que qualquer um geralmente descobre - ou pelo menos Jorge - após cinco minutos de conversa. E isto é importante, porque Jorge tem ideias fixas sobre este assunto. É um homem simpático, de uma bondade fora do normal, famoso pela forma como cede à fraqueza que todos temos pelas mulheres e que, no entanto, tem ideias muito claras sobre a posição destas criaturas na escala social. Convém acrescentar que é extraordinariamente sensível aos ataques dirigidos contra o seu dinheiro e contra a sua simpatia, e conhece todos os estratagemas.

Parece que saía do seu clube, na Rua Quarenta e Quatro, quando a rapariga passava por acaso. Era uma jovem miudinha, de cabelo sedoso, com um fato barato, azul, de confecção, e um chapelito redondo com uma pluma espetada. Ora bem, é muito natural passarem mulheres pela Rua Quarenta e Quatro; mas, entenda-se, não é este o passeio adequado para raparigas novinhas, mal vestidas. Estranho que a polícia não tivesse detido.

Seja como for, passou por ali e, quando. Jorge saiu a porta afrouxou o passo, propositadamente, e fez um sinal. E aqui está a parte mais surpreendente da história: Jorge acertou o passo e começou-a andar a seu lado. É possível que isto não lhes pareça nada de extraordinário; porque não pertencem ao clube da Rua Quarenta e Quatro. Ficam a saber que nós nunca acompanhamos uma mulher em frente do clube. Era a primeira/vez que Jorge fazia aquilo, e hoje, ao lembrar-se, diz que a rapariga o hipnotizou desde logo.

- Vai a algum sítio em especial? - perguntou, como é da praxe.

Ela levantou a cabeça, olhou-o com franqueza e Jorge observou de repente a extraordinária inocência que se espelhava nos seus olhos.

- Sim - respondeu com um risinho. -- Vou consigo.

A rapariga conteve a respiração e Jorge interrogou-se se algum dos seus amigos o estaria a ver.

- Andei a pé quase toda a noite ~ acrescentou a rapariga -, ainda me enfiei 'na retrete das senhoras da Casa Macy e dormi duas horas, mas descobriram-me.

- Quanto quer? - perguntou Jorge, enfiando a mão no bolso e já um pouco envergonhado de andar na rua com  ela.

A rapariga não lhe respondeu- e ao levantar os olhos ele viu que estavam cheios de lágrimas. A moça parou a meio do passeio e voltou-se para o olhar na cara, sacudindo solenemente a cabecita.

- Não - disse. - Não! Não quero que me pague por o acompanhar. Quero falar consigo.      

Ora bem, se Jorge se tivesse comportado como sempre, ou a tinha afastado indignado ou a tinha levado a um muitos hotéis do bairro. Estavam a uns passos da Sexta Avenida. Mas um sentimento totalmente novo fê-lo envergonhar-se (envergonhar-se, Jorge! ) e lembrou-se:

- Vamos para a sala de espera da Estação Central. Ali podemos falar.

Assim, deram meia volta e voltaram a passar pelo clube em direcção à Quinta Avenida. Para passar o tempo, não?

Estou a vê-los a caminhar quase em silêncio: Jorge incomodado, a pensar que poderia ser visto com ela, indescritivelmente enfurecido por assim ser e interrogando-se o que é que ela seria; e ela, de queixo levantado, como se quisesse sorver o ar e o barulho que a rodeava, com os olhos fixos no cimo dos prédios. Estava um daqueles dias de um azul agressivo dos princípios do Inverno.

Jorge não parava um segundo de a observar pelo rabo do olho. Estava cheio de curiosidade e afinal eram bem poucas as coisas que podia perguntar àquela rapariga.

- Vive em Nova Iorque? - perguntou: saltava à vista que assim não era.

- Oh, homem! - titubeou ela. -Não ... vim de Chillicothe (Ohio ). Mas isto agrada-me muito. Os arranha-céus fazem cócegas, não fazem?

- Cócegas?

- Oh, veja! - explicou ela. - Quando alguém se inclina para trás a admirá-los, com as suas altas torres avermelhadas, tão altas que os pássaros não as conseguem atingir, há qualquer coisa que estremece e mexe dentro de nós e dá vontade de rir.

Dizendo isto, deu uma espécie de trinado, encantada.

- Agora compreendo - murmurou ele totalmente desconcertado.

- Sabe, é por isso que vim - continuou ela - por isso e pelas multidões.

- Quer dizer que veio a Nova lorque para ver os arranha-céus e a multidão? - perguntou Jorge sarcástico: como devem compreender, Jorge era demasiado sabido para engolir certas coisas.

- Ela confirmou com a cabeça.

- Creio que em toda a minha vida não ouvi falar de mais nada a não ser de Nova lorque. Cada vez que chegava um viajante à Casa Simond (era a casa onde trabalhava, sabe?), ou quando o senhor Petty ia ao Leste, nesta altura do Outono, falavam do metro aéreo, dos arranha-céus, da Broadway, e falavam de tal modo que não conseguia dormir, a pensar nas torres, no barulho, nas luzes. Por isso resolvi vir ...

- Mas, como ... ?

- Oh! Já sei que lhe parece estranho que uma rapariga como eu tenha arranjado dinheiro para vir. Mas sabe? Tenho agora dezassete anos e comecei a poupar aos onze. Poupei cinquenta dólares.

Naquele momento fechavam a porta leste da estação.

Jorge perguntou bruscamente:

- Quanto tem você agora?

- Nada - respondeu.

A moça descobriu então o terraço de mármore, a curiosa escadaria, e o tecto sumptuoso, decorado de estrelas e sulcado pela mística e dourada faixa de Zodíaco.

Oh! - exclamou agarrando-se ao parapeito de mármore, com uns dedos rechonchudos. - Nunca vi coisa tão bonita na minha vida!

- Deixe-se disso! - disse Jorge agarrando-lhe o braço. - Venha. Temos de conversar.

Foi-lhe difícil arrancar a moça do terraço. Parecia ter esquecido tudo, extasiada com aquilo. Queria saber o que era. Que é que estava a fazer toda aquela gente? Aonde ia? Porque andavam todas aquelas pessoas de um lado para o outro, tropeçando umas nas outras, sem se falar? Se era uma estação de caminho-de-ferro, onde estavam os comboios, e porque era tão bonita? Que era Zodíaco e porque não se via no céu, lá fora? De repente Jorge descobriu que era muito estranho que uma rapariga que pretendia vir de Chillicothe (Ohio) não conhecesse a Estação Central.

- A propósito - disse-lhe -, não desembarcou de Ohio nesta estação?

- Oh! Não, querido! - respondeu despreocupadamente. - Atravessei o rio num vaporzito.

A rapariga tinha aparado o golpe. Jorge levou-a, o mais depressa possível, até à sala de espera. Estava desgostosíssimo . Pensava que nunca tinha sido vítima de um engano tão flagrante.

- Escute! - disse quando se sentaram. - Há quanto tempo está você em Nova lorque?

- Há duas semanas; mas não conheci nem metade ...

- Creio que terá tratado de arranjar emprego por todo o lado - disse Jorge a gozar - mas não conseguiu. E agora puseram-na na rua e ficaram-lhe com a bagagem ...

- Precisamente - disse a moça um pouco atrapalhada. - Fizeram-me isso. Mas você engana-se. Não é que não tenha encontrado emprego; não procurei, simplesmente. Sabe? Passei os dias todos a percorrer Nova lorque em carros de turismo - e isso custa um dólar por viagem, além de não irem a todos os sítios.

Jorge enfureceu-se.      

- Vamos! - exclamou. - Julga que acredito nisso? Fique sabendo que sou daqui. - (Jorge orgulha-se de ser de. Nova Iorque.) - Se você me disser a verdade, farei o possível por ajudá-la.

A moça deu uma risadinha de espanto e olhou-o com uns olhos muito abertos.

- Ah! A minha mãe sempre me disse que eu era uma mentirosa terrível. Talvez tenha contado algumas coisas piores do que são na realidade. Mas imagino o que 'Você quer dizer - acrescentou docemente--. Você julga que eu ... que 'eu. .. Mas não, não, não - e abanou a cabeça. -' Estou a ver tudo'; mas sou uma 'rapariga séria.

Jorge sentiu uma dor profunda: tinha-se ferido a si mesmo. Quanto à rapariga, pareceu esquecer por completo o incidente. Houve uma pausa.

 - Que vai fazer? - perguntou por fim, com voz dura,

- É precisamente sobre isso que lhe quero falar - disse ela voltando-se para ele, agitada. - Sabe? Ontem à, noite quando regressei ao quarto, a mulher não me quis deixar entrar e disse-me através de uma fresta da porta que não me dava a roupa. Pus-me a passear e a pensar no que haveria de fazer. Mas achei tão engraçado andar pelas ruas silenciosas, à noite e ao amanhecer, que me esqueci de pensar no que havia de fazer. Dormi então um pedaço na Casa Macy ... e ... e .. ,enfim, estava quase a  decidir-me quando o vi.

- Bom, e que mais? - perguntou ele impaciente.

- Bem, tenho de ver o que falta de Nova lorque. Só que me vai custar dinheiro, sabe? Tenho de comer e dormir. Pelo menos comer, - franziu o sobrolho de uma forma deliciosa. - E sobre isto queria pedir-lhe um conselho.

A simplicidade e o atrevimento da rapariga fizeram Jorge resmungar. Isto sem falar na história, que poderia ser uma deliberada mentira. Santo Deus, como desejaria duvidar daquela história!

- Escute! - exclamou. - Volte para Chillicothe. É um conselho. Vá para casa. Ah! você não sabe os perigos que corre nesta cidade terrível! - (Os Nova-lorquinos gostam da sua Sodoma e Gomorra.) - Corre o risco de morrer de fome. Além disso, enfim, é uma sorte que você não, tenha deparado com alguns homens que vivem nesta cidade. Uff. - (Jorge tremeu ao pensar nalguns dos monstros que infestam Babilónia.) - Imagine que não me tinha encontrado. Sabe o que teria pensado qualquer outro homem?     .

- Sim - disse a sorrir. - Exactamente o mesmo que você pensou. E tinha feito mais ou menos o mesmo que fez. Não tenho medo dos homens. Sempre confiei em toda a gente e nunca me fizeram mal. Oh, já vivi muito e a fome não me assusta. Encontro sempre alguém que me ajuda e por isso  tenho fé.

 -Vá para casa! -disse Jorge rudemente. -Você não sabe o que diz! Compro-lhe o bilhete e dou-lhe dinheiro para comer: Vá já ter com a sua mãe, antes que seja engolida por algum turbilhão. - (Jorge orgulha-se muito das suas metáforas.) - Sei que não se quer ir embora e que é valente; mas se não o faz, juro-lhe que ...

Estava quase a ameaçá-la com a Sociedade Jerry, quando reparou de repente que a moça tinha a cara enterrada nas mãos e que os ombros tremiam. Estaria a rir-se dele? Jorge afastou-lhe bruscamente as mãos da cara. Parecia sacudida por soluços, embora não tivesse lágrimas. O pobre Jorge não sabia que pensar.

- Oh! - exclamou ela com a voz embargada. - Tem razão. Irei para casa. Não posso resistir mais. Oh, mande-me para casa!

Jorge perguntou-lhe quanto custava a viagem e, por fim, ficou-se pelos vinte dólares. Dentro de cinco minutos saía um comboio que a podia levar.

- Vamos! - disse Jorge. - Venha! Vamos tirar o bilhete!

A rapariga tinha parado de soluçar com uma brusquidão pouco natural, na opinião de Jorge, e sem que se lhe descobrisse qualquer sinal de choro. Ao ouvir as suas palavras, a rapariga ficou parada e segurou-lhe o braço com a mão miúda.

- Não - disse-lhe. - Dê-me o dinheiro, que eu tiro.

Jorge olhou-a ensonado.

- Não acredita, mas deve acreditar. De outro modo, terei de pedir a outro. Vamo-nos despedir aqui.

Jorge hesitou por momentos. A seguir pensou: «Bem, quer-me enganar! Assim que se apanhar com o dinheiro, sai pela porta da Rua Quarenta e Dois. De qualquer maneira, já fiz figura de parvo.»

Seguidamente, deu o dinheiro à moça. Esta devia ter adivinhado os seus pensamentos, pois olhou-o fixamente, sacudindo a cabeça da forma estranha que lhe era peculiar.

- Você não tem fé - disse-lhe -; mas não importa. Como foi bom para mim, dir-lhe-ei onde vivi em Nova Iorque. Você pode lá ir ...

Quando a rapariga desapareceu, deixando-o na sala de espera, Jorge voltou para casa e cometeu a indiscrição de nos contar tudo isto. É claro que o gozámos até mais não, por ter sido tão inocente, e ele envergonhou-se um pouco da sua quixotada. Tanto mais que não tinha nada de inocente.

Durante o jantar, Burgess falou do assunto com ele.

- Conheço-as - disse Burgess altivamente, - Aposto que lhe deu um beijo pouco entes de partir.

- Não - respondeu Jorge. - O que é mais engraçado é que teria gostado. Qualquer um diria que por gratidão ...

- Bom, nesse caso, ficou com o seu nome e endereço, prometendo-lhe devolver o dinheiro um dia.

- Totalmente ao contrário. Foi ela quem me deu um endereço, onde disse que estava retida a bagagem. E eu, quando reagi, fui lá, convencido de que não ia encontrar nada.

- E não encontrou?

Jorge encolheu os ombros.

-Estava lá tudo no vestíbulo. É essa mala. Corresponde ao que ela disse.

- Confesso francamente - disse Burgess - que nunca ouvi nada semelhante. Mas não há uma mulher, nem tão-pouco um homem, que possa deixar a cidade com vinte dólares. De modo nenhum. A explicação é que a rapariga deixou o bairro. Agora que arranjou quarto, regressou. Aposto que, se estiver atento, acabará por encontrá-la, quase todas as noites, na Sexta Avenida, junto à Rua Trinta e Três.

E apostaram cinco dólares, o que achei disparate.

Passadas três semanas, Jorge chega uma noite e dirige-se imediatamente a Burgess, dizendo:

- Tome os cinco dólares!

- Porquê? - disse Burgess, que se, esquecera completamente do assunto, tal como nós.

- Vi a rapariga - murmurou Jorge sem olhar para ninguém. - Na Sexta Avenida e na Rua Trinta e Três.

- Conte-nos, pediu Burgess, que, para além do mais,    estava interessado.

E deste modo; soubemos a continuação da história.

Jorge passara o feriado em Long Island, com os Winslows, e tomara o comboio das oito e dez. Chegou à Estação da Pensilvânia cerca das nove e um quarto e lembrou-se de ir a pé. E na esquina da Rua Trinta e Três com a Sexta Avenida, ninguém diria, acabou por encontrar a rapariga. Jorge disse que ia distraído quando alguém gritou:

- Vai a algum sítio em especial?

Jorge olhou e, subitamente, reconheceu-a. A rapariga avançou e, dando meia volta, encarou com ele a meio do passeio, pondo as mãos nas ancas com descaramento. Jorge sentiu-se furioso; mas já tinha passado tanto tempo desde o ocorrido que decidiu mostrar-se cinicamente divertido.

- Vou consigo - disse, tranquilamente, imitando-a, e aproximou-se dela. - Aonde quer ir?

Corno resposta, ela avançou, agarrou-o pelos ombros e olhou-o nos olhos, abanando lentamente a cabeça.

- Quero comer qualquer coisa - disse apenas.

Jorge encolheu os ombros e apontou o Restaurante Baber. A perspicaz observação da rapariga desanimou-o e, enquanto caminhavam, olhou-a de soslaio. Achou-a mais magra, mais pobre, mais pequena e mais mal vestida, mas com o mesmo ar de inocência. Isto era outra prova dá sua culpabilidade. Porque não era possível que tivesse andado pela rua durante cinco semanas e continuasse honrada. Tinha de estar marcada. E a sua expressão cândida e imperturbável, enquanto caminhava ao seu lado, quando qualquer outra teria começado imediatamente a justificar-se? (Jorge é um raro conhecedor da natureza humana.)

- É uma sorte tê-lo encontrado, sabe? - disse ela.- Nâo comi nada em todo o dia.

- Porque se alegra de me encontrar a mim em especial? - disse Jorge com malícia. - Os outros não lhe ligam?

- Oh, sim! - respondeu ela ponderadamente. - Encontro sempre quem me dê comer ou outras coisas, Mas não senti apetite durante o dia. Estive na doca a ver os barcos. Aquilo parece uma imagem do mundo. Todos os barcos trazem a marca de um sítio diferente.

Jorge decidiu vingar-se dela não fazendo alusões ao motivo do anterior encontro: se a rapariga tivesse consciência, isto servir-lhe-ia de castigo.

- A propósito - disse ela, recordando-se de repente-, você é meu amigo e não me importo de pedir: preciso de dez dólares para pagar um vestido que encomendei. Como vê, trago a roupa velha, que já não me cobre o suficiente.

- Caramba! - exclamou Jorge atónito. - Viva o atrevimento!

- Sim; talvez tenha sido descaramento encomendá-lo - concordou a rapariga.

Foi uma das boas resoluções de Jorge! Quando o desconfiado mordomo do Baber se tranquilizou ao ver a brancura do colarinho de Jorge, este sentiu-se totalmente devorado por  uma impaciente curiosidade. Que diria a rapariga? Como se explicaria? Ou confessaria simplesmente o engano? Ou viria com outra história, tão impressionante e incrível como a anterior? O objectivo das suas conjecturas estava a observar tranquilamente a sala, satisfeita, serena e distante. Jorge não conseguiu aguentar mais.

- Julguei que tinha regressado a Chillicothe ... - disse-lhe ironicamente.

Ela observou-o e ele achou nos seus olhos um ténue brilho de satisfação e uma leve sombra de tristeza.

- Tinha-me esquecido que você queria informar-se disso primeiro. Bem, quando o deixei tomei o comboio ...

A rapariga fez uma pausa, olhando-o nos olhos, e repetiu:

- Apanhei o comboio e fui até Albany. A seguir encontrei um homem muito simpático que se sentou ao meu lado e começámos a conversar. Era alto e ruivo, de bigode louro, muitíssimo mais velho que você; chamava-se Tom, segundo disse. Ora bem, ia pensando comigo: «Vê lá tu, regressares a casa só com a roupa que trazes em cima, depois de a tua mãe trabalhar todo o Inverno para te vestir bem. Não devias ter saído de Nova lorque sem levares as tuas coisas da pensão.» E como me preocupava voltar a Chillicothe sem elas, disse-o a Tom. O homem respondeu-me: «Vamos descer em Utica e levo-a para Nova lorque para lhe tirar a roupa da pensão.»

- Esta história ultrapassa. a outra - disse Jorge.

- Vê? - exclamou radiante. - Disse-lhe que tinha de ver o que me faltava em Nova lorque. E repare que Tom apareceu quando precisava. Bem, voltámos os dois para cá e ele fez tudo o que prometeu. Mas quando chegámos à pensão, a roupa tinha desaparecido. Disseram-me que um jovem a fora buscar, e pensei logo em si. Mas não sabia, onde encontrá-lo - acrescentou, sorrindo -, a não ser que fosse passear para diante daquela casa onde o vi pela primeira vez. E Tom não queria que o fizesse. Sabe? Tom portou-se muito bem comigo. Arranjou-me uma casa e pagou-me duas semanas de aluguer antecipado. Comprou-me também alguns bonitos vestidos. Costumávamos jantar juntos todas as noites.

- Que é que aconteceu a Tom? - perguntou Jorge com um certo tom cínico.

Mas a rapariga não se deu por achada e continuou, com a voz mais doce:

- Pobre Tom! O homem não compreendia. Não sei porquê, mas parece-me que era impossível que ele compreendesse. Creio que devia andar mal ou qualquer coisa no estilo. Porque, depois de ter sido tão bom para mim durante todo este tempo, começou a ... bom, calcula o que ele queria. Pobre Tom!

Oh! Essa tem muita piada! -  , exclamou Jorge, rindo-se.

A rapariga ficou a olhá-lo; pensativamente. .

- Não sei se você compreenderá também - disse. -. - Mas não é culpa sua, acredito. Tinha sido tão bom para mim e eu fui tão ruim. Simplesmente, não compreendia. Mas, como é natural não podia continuar ali nem podia continuar  a usar os vestidos que me comprou. Por isso, faz uma semana, uma noite fui-me embora.

- Onde é que você vive agora?

- Olhe neste momento não tenho casa...,

-  Como! - exclamou Jorge sem querer. - Uma semana inteira? Mas ...  

A rapariga sorriu-se misteriosamente (ou, se calhar, com malícia) . Quando anoitece - disse calmamente - escolho uma casa de bom aspecto e toco. Quando abrem, digo que estou cansada, que não tenho para onde ir e que procuro dormir ali.

- E ... ? - disse Jorge, sem se dar por achado..

- Bem vê, só de longe em longe não compreendem. Então, tenho de bater a outra porta.

Jorge ameaçou-a com o dedo espetado sobre a mesa.

- Não sei porque ouço as suas histórias - disse severamente _; parece que acredito que você, no fundo tem de ser boa. Vamos diga-me a verdade. Sei que e difícil a uma rapariga encontrar emprego; mas já experimentou?

- Se experimentei arranjar- emprego? Eu? O quê? Não! _ respondeu admirada. - Não quero trabalhar aqui. O que quero é conhecer coisas. E há tantos milhares de coisas para se ver e sentir. Ontem fartei-me de andar, desde manhãzinha cedo até perto do meio-dia. Subi por uma rua larga que escalava os telhados das casas, entre enormes e oscilantes teias de aranha de aço, e, por fim, consegui contemplar uma grande extensão da cidade, coberta de fumo, e que em todas as ruas brincavam crianças. Veja! Tudo isto para conhecer, e eu não sabia!

Jorge diz que sentiu uma sensação estranha e irracional: por momentos, acreditou, efectivamente, na rapariga. Pareceu-Jhe descobrir um mundo que nunca tinha imaginado, um mundo do qual se tinha excluído, sempre; porque sabia de mais.

A impressão era de mágoa. A rapariga era como uma chamazinha branca que o queimava. E, na sua dor, viu-se obrigado a confessar-lhe tudo isto; e ela não fez mais do que abanar a cabeça solenemente:

- Não - respondeu-lhe. - Isso é porque você conhece muito pouco.

Mas este estado de espírito durou pouco tempo. Imediatamente, Jorge recobrou o ar normal e, depois de dizer à rapariga tudo o que pensava dela, deixou-a.

Contudo, uma das coisas mais raras da história foi a despedida dela. Jorge disse que a rapariga escutou tudo o que lhe disse com a cabeça de lado, e quando terminou inclinou-se para a frente, segurou as suas mãos entre as dela e apertou-as contra o peito. Os olhos encheram-se de lágrimas, e no preciso instante em que julgava que ela ia começar a chorar desatou a rir.

- Voltaremos a ver-nos - disse-lhe com a sua voz aguda. -Vê-lo-ei quando precisar, ..

E então, indignado, Jorge voltou para casa.

- Bom - disse Burgess, dando voltas à nota de cinco dólares, uma vez terminada a história. - Bom, gosto tanto da história que estou disposto a pagar por tê-la ouvido. Quero pagar cinco dólares desses dez ...

- Que dez? - perguntou Jorge.

- Os dez que você lhe deu para comprar o vestido. - E Burgess estendeu-lhe a nota.

Jorge ficou imóvel, cada vez mais corado, e olhando para nós para ver se nos ríamos dele. Então, com a voz presa, disse:

«Obrigado! », e guardou o dinheiro.

John Reed

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