«O Outro Eu»
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1154- «O OUTRO EU»
(A morte e outras surpresas, 1968)
Tratava-se de um rapaz comum: usava calças da moda, lia
gibis, fazia barulho enquanto comia, cutucava o nariz com o dedo, roncava
durante a soneca, se chamava Armando Corrente em tudo menos em uma coisa: tinha
um Outro Eu.
O Outro Eu usava certa poesia no olhar, se apaixonava pelas
actrizes, mentia cautelosamente, se emocionava com o entardecer. O rapaz se
preocupava muito com seu Outro Eu e o fazia se sentir incomodado diante de seus
amigos. Já o Outro Eu era melancólico e, por causa disso, Armando não podia ser
tão vulgar quanto desejava.
Uma tarde Armando chegou cansado do trabalho, tirou os
sapatos, moveu lentamente os dedos dos pés e ligou o rádio. Estava tocando
Mozart, mas o rapaz dormiu. Quando acordou, o Outro Eu chorava
desconsoladamente. Em um primeiro momento, o rapaz não soube o que fazer, mas
depois se refez e conscientemente insultou o Outro Eu. Este não disse nada, mas
na manhã seguinte já havia se matado.
No começo, a morte do Outro Eu foi um duro golpe para o
pobre Armando, mas depois ele pensou que agora sim poderia ser inteiramente
vulgar. Esse pensamento o reconfortou.
Levava apenas cinco dias de luto quando saiu pelas ruas com
o propósito de exibir sua nova e completa vulgaridade. De longe viu que seus
amigos se aproximavam. Isso o encheu de felicidade e o fez imediatamente
explodir em risadas. Entretanto, quando passaram próximo dele, seus amigos não
notaram sua presença. Para piorar, o rapaz pôde escutar que comentavam: ‘Pobre
Armando. E pensar que parecia tão forte e saudável’.
O rapaz não teve outro remédio que parar de rir e, ao mesmo
tempo, sentiu na altura do peito uma aflição que se parecia muito a nostalgia.
Mas ele não pôde sentir uma autêntica melancolia, porque toda a melancolia
tinha sido levada pelo Outro Eu.
Mario Benedetti
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