«Aventura da Memória»
Memória/ Rene Magritte
1188- «AVENTURA DA MEMÓRIA»
O género humano pensante, isto é, a centésima-milésima parte
do género humano, quando muito, acreditara por muito tempo, ou pelo menos por
muitas vezes o repetira, que nós não tínhamos ideias senão por intermédio dos
sentidos, e que a memória era o único instrumento com o qual podíamos reunir
duas ideias e duas palavras.
Eis por que Júpiter, símbolo da natureza, se enamorou, à
primeira vista, de Mnemósine, deusa da memória; e desse casamento nasceram as
nove Musas, que inventaram todas as artes.
Este dogma, no qual se fundam todos os nossos conhecimentos,
foi universalmente aceito, e até mesmo a Nonsobre o adotou, embora se tratasse
de uma verdade.
Algum tempo depois surgiu um argumentador, metade geómetra,
metade lunático, o qual se pôs a argumentar contra os cinco sentidos e contra a
memória. E disse ao reduzido grupo do género humano pensante:
— Até agora estivestes enganados, porque os vossos sentidos
são inúteis, porque as ideias são inatas em vós, antes de que qualquer dos
vossos sentidos possa ter operado; porque já tínheis todas as noções
necessárias quando viestes ao mundo; porque já sabíeis tudo sem nunca haver sentido
nada; todas as vossas ideias, nascidas convosco, se achavam presentes em vossa
inteligência, chamada alma, e sem auxílio da memória. Esta memória não serve
para coisa alguma.
A Nonsobre condenou tal proposição, não porque fosse
ridícula mas porque era nova. No entanto, quando em seguida um inglês começou a
provar, e a provar longamente, que não havia ideias inatas, que nada era tão
necessário como os cinco sentidos, que a memória muito servia para reter as
coisas recebidas pelos cinco sentidos, a Nonsobre condenou suas próprias ideias,
visto que eram agora as mesmas de um inglês. Ordenou por conseguinte ao gênero
humano que acreditasse dali por diante nas ideias inatas, e perdesse toda e
qualquer crença nos cinco sentidos e na memória. O género humano, em vez de
obedecer, pôs-se a rir da Nonsobre, a qual entrou em tamanha fúria, que quis
mandar queimar a um filósofo. Pois dissera esse filósofo que era impossível
formar ideia completa de um queijo sem o ter visto e comido; e chegou o
celerado a afirmar que os homens e mulheres jamais poderiam fazer trabalhos de
tapeçaria se não tivessem agulhas e dedos para as enfiar.
Os liolistas juntaram-se à Nonsobre pela primeira vez na
vida; e os sejanistas, inimigos mortais dos liolistas, reuniram-se por um
momento a estes. Chamaram em seu auxílio os antigos dicastéricos; e todos eles,
antes de morrer, baniram unanimemente a memória e os cinco sentidos, e mais o
autor que dissera bem dessa meia dúzia de coisas.
Um cavalo que estava presente ao julgamento estatuído por
aqueles senhores, embora não pertencesse à mesma espécie e houvesse muita coisa
que os diferenciava, tal como a estatura, a voz, as crinas e as orelhas, esse
cavalo, dizia eu, que tanto possuía senso como sentidos, contou a história a
Pégaso, na minha estrebaria, e Pégaso, com a sua ordinária vivacidade, foi
repeti-la às Musas.
As Musas que, durante uns cem anos, vinham singularmente
favorecendo o país, por tanto tempo bárbaro, onde se passava esta cena, ficaram
muito escandalizadas; amavam ternamente a Memória, ou Mnemósine, sua mãe, à
qual essas nove filhas são credoras de tudo quanto sabem. Irritou-as a
ingratidão dos homens. Não satirizaram os antigos dicastéricos, os liolistas,
os sejanistas e a Nonsobre, porque as sátiras não corrigem ninguém, irritam os
tolos e os tornam ainda piores. Elas imaginaram um meio de esclarecê-los,
punindo-os. Os homens haviam blasfemado contra a memória; as Musas lhes tiraram
esse dom dos deuses, a fim de que aprendessem de uma vez por todas, a que se
fica reduzido sem o seu auxílio.
Aconteceu, pois, que durante uma bela noite todos os
cérebros se obscureceram, de modo que no dia seguinte, de manhã, todos se
acordaram sem a mínima lembrança do passado. Alguns dicastérios, deitados com
as suas mulheres, quiseram aproximar-se delas por um resto de instinto
Independente da memória. As mulheres, que só muito raramente possuem o instinto
de entrar em contacto com os maridos, repeliram asperamente as suas
desagradáveis carícias, e a maioria dos casais acabou aos tapas.
Alguns senhores, encontrando um chapéu, serviram-se dele
para certas necessidades que nem a memória nem, o bom senso justificam. E
senhoras empregaram para o mesmo uso as bacias de rosto. Os criados, esquecidos
do contrato que haviam feito com os patrões, entraram no quarto dos mesmos, sem
saber onde se achavam; mas, como o homem nasceu curioso, abriram todas as
gavetas; e, como o homem ama naturalmente o brilho da prata e do ouro, sem ter
para isso necessidade de memória, apanharam tudo o que estava a seu alcance. Os
patrões quiseram bradar contra ladrão; mas, tendo-lhes saído do cérebro a ideia
de ladrão, não pôde a palavra lhes chegar à língua. Cada qual, tendo esquecido
o seu idioma, articulava sons informes. Era muito pior que em Babel, onde cada
um inventava imediatamente uma língua nova. A inata inclinação dos criados
moços pelas mulheres bonitas se manifestou com tal premência que os atrevidos se
lançaram irreflectidamente sobre as primeiras mulheres ou raparigas que
encontraram, fossem elas taberneiras ou presidentas; e estas, esquecidas das
leis do pudor, deixaram-se manobrar com toda liberdade.
Foi preciso almoçar; ninguém sabia o que fazer para isso.
Ninguém fora ao mercado, nem para vender nem para comprar. Os criados tinham
vestido a roupa dos patrões, e os patrões a dos criados. Todo mundo se olhava
aparvalhado. Os que tinham mais jeito para obter o necessário (e era a gente do
povo) conseguiram um pouco com que viver; aos outros, faltou-lhes tudo. O
ministro e o arcebispo andavam inteiramente nus, e seus palefreneiros
passeavam, uns de hábito vermelho, outros com dalmáticas: tudo estava
confundido, iam todos morrer de miséria e de fome, por falta de mútuo
entendimento.
Ao cabo de alguns dias, as Musas tiveram piedade dessa pobre
raça: elas são boas afinal, embora algumas vezes façam sentir aos maus a sua
cólera; suplicaram, pois, à mãe, que devolvesse àqueles blasfemos a memória que
lhes havia tirado. Mnemósine desceu à região dos contrários, onde tão
temerariamente a tinham insultado, e falou-lhes nos seguintes termos:
— Perdoo-vos, imbecis; mas lembrai-vos de que sem sentido
não há memória e sem memória não há senso.
Os dicastéricos agradeceram-lhe secamente, e decidiram
fazer-lhe uma admoestação. Os sejanistas publicaram toda essa aventura na sua
gazeta; viu-se que ainda não estavam curados. Os liolistas transformaram o caso
numa intriga de corte. Mestre Coger, pasmado da aventura e sem compreender
patavina daquilo tudo, disse a seus alunos do quinto ano este belo axioma: Non
magis musis quam hominibus infensa est ista quae vocatur memoria. (O que se
chama memória não é mais infenso às musas que aos homens)
Voltaire
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