sábado, 25 de outubro de 2014

FRAGMENTOS: «ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ»

«Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.»
José Saramago, Nobel da Literatura/ 1998

«Ensaio Sobre a Lucidez»
José Saramago

ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ
[Fragmentos]

“...os humanos são universalmente conhecidos como os únicos animais capazes de mentir, sendo certo que se às vezes o fazem por medo, e às vezes por interesse, também às vezes o fazem porque perceberam a tempo que essa era a única maneira ao seu alcance de defenderem a verdade.”

“...talvez, antes de ti, o teu corpo saiba já que vão te matar.”

“...a isto pode ser reduzida a tão badalada suprema dignidade da pessoa humana, afinal tanto como um papel molhado.”

“...em toda a verdade humana há sempre algo de angustioso, de aflito, nós somos, e não estou a referir-me simplesmente à fragilidade da vida, somos uma pequena e trémula chama que a cada instante ameaça apagar-se, e temos medo, acima de tudo temos medo.”

“Sempre chega a hora em que descobrimos que sabíamos muito mais do que antes julgávamos...”

“Sentiu a nostalgia da capital, do tempo feliz em que os votos eram obedientes ao mando, do monótono passar das horas e dos dias entre a pequeno-burguesa residência oficial dos chefes de governo e o parlamento da nação, das agitadas e não raras vezes joviais crises políticas que eram como fogachos de duração prevista e intensidade vigiada, quase sempre a fazer de conta, e com as quais se aprendia, não só a não dizer a verdade como fazê-la coincidir, ponto por ponto, quando fosse útil, com a mentira, da mesma maneira que o avesso, com toda a naturalidade é o outro lado do direito.”

“...o incompreensível pode ser desprezado, mas nunca o será se houver maneira de o usarem como pretexto.”

“Que monstruosas coisas é capaz de gerar o cérebro...”

“...as verdades há que repeti-las muitas vezes para que não venham, pobres delas, a cair no esquecimento.”

“O cão tinha se aproximado quase a tocar com o focinho os joelhos do comissário. Olhava para ele e os seus olhos diziam, Não te faço mal, não tenhas medo, ela também não o teve naquele dia. Então o comissário estendeu a mão devagar e tocou-lhe na cabeça. Apetecia-lhe chorar, deixar que as lágrimas lhe escorregassem pela cara abaixo, talvez o prodígio se repetisse. A mulher do médico guardou o livro na bolsa e disse, Vamos, Aonde, perguntou o comissário, Almoçará connosco se não tem nada mais importante que fazer, Tem a certeza, De quê, De querer sentar-me à sua mesa, Sim, tenho a certeza, E não tem medo de que eu esteja a
enganá-la, Com essas lágrimas nos olhos, não.”

“Aprendi neste ofício que os que mandam não só não se detêm diante do que nós chamamos absurdos, como se servem deles para entorpecer as consciências e aniquilar a razão.”

“Nascemos, e nesse momento é como se tivéssemos firmado um pacto para toda a vida, mas o dia pode chegar em que nos perguntemos Quem assinou isto por mim.”

“...há que ter o máximo de cuidado com aquilo que se julga saber, porque por detrás se encontra escondida uma cadeia interminável de incógnitas, a última das quais, provavelmente, não terá solução.”

José Saramago
Poet'anarquista

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