segunda-feira, 6 de outubro de 2014

OUTROS CONTOS

«A Harpa», por Manuel da Fonseca.

«A Harpa»
Harpista Egípcia

288- «A HARPA»

Era a vez do Luciano. Curvou-se, pôs o joelho em terra e apontou o berlinde. Atento, Júlio esperou. Mas o golpe demorava. Luciano parecia alhear-se cada vez mais da jogada, como se escutasse qualquer ruído distante. Acabou por erguer a cabeça.

Estrada abaixo, Lena corria de braços abertos. Vinha de sapatos pretos, meias pretas, bibe preto. E, sobre os cabelos claros, um grande laço preto.

Toda ela vestia de luto carregado. Mas os seus movimentos eram leves e cheios de vivacidade. Passou, sentindo o prazer da corrida, airosa e veloz. O vento abriu-lhe o bibe e, por momentos, apareceu a descoberto o colo muito branco que formava com o rosto uma mancha alva no meio do luto.

-Parece uma andorinha -disse Júlio.

Os dois garotos iam virando a cabeça e seguiam-na com os olhos. Nenhum sabia ao certo se ela os vira, embora a ambos parecesse que Lena os havia olhado de soslaio.

Luciano continuava de joelhos no pó alvacento do largo. Sempre a correr, Lena ia agora saltando, ora sobre um pé, ora sobre o outro. Por fim, desapareceu na curva da rua, a caminho de casa da madrinha.

Luciano voltou-se. Apontou o berlinde entalado entre os dedos, desfechou o golpe, e falhou. Júlio, já de joelho no chão, preparava-se para jogar, quando Luciano levantou a pequena esfera e disse:

-Não jogo mais.

Júlio viu-o ir sentar-se à sombra. Aproximou-se:

-Ficaste zangado, hem?

-Eu?

-Pois! -acrescentou Júlio.

-Ela passou sem olhar para ti.

-Quero lá saber disso!

-Então porque deixaste de jogar?

Luciano olhou-o de revés, por cima do ombro. Mas nada respondeu. Esticou as pernas, foi-se voltando, e acabou por ficar estendido sobre o passeio, com o queixo encostado aos punhos.
Júlio curvou-se e começou a desenhar com o dedo sobre o pó do largo. Parecia completamente absorvido. Súbito, a mão parou-lhe:

-Não te percebo. Ela anda sempre à tua volta, e tu corres com ela; agora, que passou sem te olhar, ficaste danado.

-Fiquei nada! -cortou Luciano. Júlio sorriu com tristeza:

-Bem vi que ficaste.

Voltou a correr com o dedo sobre o pó: -Se fosse comigo, já eu a namorava.

-Tu?

-Sim... É bem bonita, a Lena...

Luciano ergueu o tronco, recolheu as pernas, e sentou-se:

-Se achas que ela é assim tão bonita, porque é que não a namoras? Júlio curvou-se ainda mais para o chão:

-Ela só gosta de ti...

-Quem te disse isso?

-Ninguém -respondeu Júlio, encolhendo os ombros.

-Mas vê-se muito bem.

- Não. . -murmurou Luciano, logo acrescentando, com vivacidade.

- Não, eu não gosto nada da família dela. É uma gente que nem eu sei!

-Mas que tem que ver com isso a família dela?

-Tem muito. Uma pessoa ou gosta de uma família toda ou não gosta de ninguém dessa família.

Júlio esqueceu os desenhos sobre a poeira.

-Mas, eu... -começou ele, hesitante -, eu não gosto nada da família da Lena, e gosto dela.

-Isso és tu.

E Luciano, com um ar superior, voltou a estender-se ao comprido sobre o passeio. Um carreiro de formigas passava-lhe perto do nariz e, como Júlio nada mais dissesse, entretido a riscar de novo o pó, Luciano pôs-se a observar as evoluções das formigas. Assim estavam, quando Lena apareceu. Corria como se fosse direitinha para casa, mas, dando uma larga viragem, começou a andar às voltas pelo largo. Júlio seguia-a com os olhos. Luciano olhava para o carreiro das formigas.

Lena ia abrindo cada vez mais os círculos; passava agora muito perto do passeio. No entanto, fazia-o como se não desse pela presença dos rapazes. Pulava, abria os braços, rodava sobre os calcanhares, ora vagarosa, ora rápida. Tudo isto parecia ser feito com um fim especial. Mas, como não alcançasse nenhum resultado, Lena, ao descrever a última volta, quase pisou o carreiro das formigas.

-Olha! -exclamou ela, numa exagerada surpresa. -Um carreiro de formigas!

-E das grandes! -disse Júlio, rapidamente.

Luciano continuava a olhar para as formigas como se em nada tivesse reparado. Lena curvou-se, cruzando os braços atrás das costas:

-Essas são das que mordem, não são?

-Sim -respondeu Júlio -mas não dói nada.

-Mordem muito, não é? -repetiu Lena, sem tirar os olhos de Luciano. Júlio voltou o rosto e pôs-se a olhar em frente. Luciano continuava imóvel, de pálpebras caídas. Lena estendeu o braço e Luciano viu-lhe o dedo esticado aproximar-se, a medo, do carreiro. Ergueu a cabeça:

-Que queres tu daqui? Vai-te embora. -Nada... eu não quero nada -respondeu Lena endireitando o busto, sem se afastar. -Estava a ver as formigas... Luciano levantou-se:

-Já te disse que te fosses embora. Lena ergueu para ele os grandes olhos azuis. Depois baixou a cabeça; o enorme laço preto pendeu-lhe para a testa de mistura com os caracóis. E, muito vagarosamente, de braços caídos, afastou-se, a caminho de casa.

Apesar de todos os motivos invocados e até, por fim, da recusa formal, a avó não cedeu e Luciano teve que acompanhá-la. Ia desesperado. Não gostava nada de fazer visitas e, agora, a avó levava-o, à viva força, àquela casa onde nunca entrara, a visitar uma gente que, embora somente conhecesse de vista, tão antipática lhe era!

Durante o trajecto, tomou uma resolução: apenas daria as boas-tardes, nem mais uma palavra.

Depois do largo, avistou a casa, um antigo e enorme prédio, meio em ruínas. Erguia-se, desamparado, no meio dum quintal cujo muro havia derruído com o tempo. As paredes sujas e carcomidas, de janelas sempre cerradas, vidros poeirentos, aumentavam-lhe ainda mais o sombrio ar de abandono. Desprendia-se de todo o edifício um tão misterioso e recolhido silêncio que, na ideia de Luciano, lá por dentro, através de tenebrosos corredores, Lena, vestida de luto, errava, aterrada, constantemente perseguida pelo severo olhar dos pais.

Ao chegar junto da porta, enquanto a avó erguia o batente, pensou fugir. Voltou-se, abrindo os braços -mas uns dedos secos poisaram-lhe sobre os ombros; a voz sibilada da avó fê-Io estacar: -Luciano!

A porta descerrou-se, gemendo. E Luciano entrou pela primeira vez na casa de Lena.
Pelo corredor escuro, onde os passos se sumiam, abafados, uma velha de rosto meio oculto no lenço negro levou-os para a sala.

-Vou avisar os senhores.

E desapareceu, sem ruído, toda curvada.

Luciano sentou-se, inquieto, como se tivesse passado subitamente do dia para a noite. Quando se habituou à pouca luz, ergueu-se, olhando em volta, tomado de surpresa.

Nesse instante, os pais de Lena entravam, seguidos pela filha. Luciano disse:

-Boa tarde.

Baixando a cabeça, tornou a sentar-se.

Enquanto falaram dele não mudou de posição. Só muito depois, quan- do a conversa incidia sobre outro assunto -a avó pedia desculpa de há tanto tempo ali não vir -pensou que era altura de olhar de novo para as paredes e para o chão. Pensou também que devia fazê-Io com cautela, de modo que ninguém desse por isso. Mas, por mais cuidados que usasse, tinha a certeza de que Lena havia de estar a olhar para ele.

Começou a erguer o rosto vagarosamente. Uma profusão de objectos que nunca vira enchiam as paredes. Zagaias cruzavam-se por todos os lados, aqui e além, lanças compridas e ferrugentas, os escudos redondos, pretos, com embutidos vermelhos, penachos amarelos, armados sobre tiras de coiro, catanas recurvas, mocas. No chão, figuras agressivas, talhadas em troncos negros, com olhos de vidro, oblíquos. A própria mesa, escura, de pés retorcidos, gordos, era pesada, soturna. E, na obscuridade, evolava-se de tudo aquilo uma distante e terrível ameaça. Obcecado pelo estranho encantamento, Luciano, a pouco e pouco, caiu numa grande lassidão; olhava para tudo como se sonhasse. Cada vez mais ia avolumando a vaga sensação de qualquer coisa sem princípio nem fim - dir-se-ia que o tempo tinha parado para sempre naquela casa. E, na penumbra, como que vinda de longe, a voz do pai de Lena chegava-lhe agora aos ouvidos, muito branda e muito nítida:

-Sinto ainda, como se fosse neste momento, a morte de todos eles... E tudo tão de repente; meus irmãos, meus pais, os meus filhos, os meus pobres filhos... Todos se foram, todos... -Eduardo -pedia suavemente a mulher- não te mortifiques...

-Mas, Maria, tu sabes bem que penso neles a toda a hora. Logo se tornou quase incompreensível a Luciano tudo quanto diziam; apenas adivinhava, no murmúrio arrastado das palavras, um lento, longo diá- logo de recordações. A custo, volveu a cabeça, procurando Lena pela sala. Ela estava sentada entre o pai e a mãe, e o seu rosto claro sobressaía, num sorriso. O Luciano serenou. Mas, de súbito, viu quanto eram velhos os pais de Lena. A mulher estava cheia de rugas, o homem tinha os cabelos brancos.

-Sim, sim... -dizia a avó naquele instante -que grande saudade eu tenho desse tempo... -Como tudo passa... -disse o homem.

-Tudo... -murmurou a mãe de Lena. Pelo canto dos olhos, Luciano espreitou a escultura que lhe ficava mais perto. Foi voltando o rosto até a olhar de frente. Por muito tempo, ficou preso do homúnculo de madeira negra, rugosa. Custou-lhe desviar a vista. E, quando o conseguiu, ainda trazia nos olhos aquela expressão implacável, a um tempo feroz e repousada. Viu o pai de Lena levantar-se, ir a um canto e arrastar, com grande esforço, uma enorme caixa preta que roçava pelo chão com um ruído gemebundo.

- É melhor não, Eduardo ciciou a mulher.

-Não faz mal. Apenas um pouco, não faz mal -respondeu ele. E, voltando-se: -Lembra-se? Luciano nem ouviu a resposta da avó. Inquieto, não despegava os olhos da alta caixa negra. O pai de Lena abraçava-a com tanta tristeza como se dentro estivesse o cadáver de um ente querido. Abriu-a cuidadosamente, 0 puxou para fora um objecto que Luciano desconhecia e, sentando-se, inclinou-o para o peito. O homem concentrou-se, de olhos semicerrados. Estendeu a mão, e feriu uma das cordas metálicas alinhadas de alto a baixo. Um som claro repercutiu na sala. Logo outro se seguiu. espaçado. Outro soou. E. lenta, uma harmonia alongou-se, sonora e grave. Era qualquer coisa de muito triste e dolorosa para o pai de Lena; a própria lentidão dos gestos o tornava mais desolado. Parecia que nada poderia impedir tanta amargura. Nada. Estava de cabeça caída, os dedos iam desfiando o desgosto, um frio e duro desgosto -quando a outra mão correu, rápida, sobre as cordas. Fez-se um sussurro suave, de notas límpidas, uma fugaz alegria que, mais altos, os tons graves apagaram. Mas, de novo, o sussurro voltou, tornou-se nítido. E correu, livre, como uma alegria que transborda e se solta. A água de um rio deslizando ao sol, sobre pedras brancas. Uma dança de raparigas, risos, lábios vermelhos. O homem mexia nervosamente os dedos, sacudia a cabeça, quando a amarga tristeza voltou, ressoando passo a passo. Mas já com ela se misturava o alegre sussurro. E morria: apenas a saudade ecoava. Uma profunda saudade. Então, o pai de Lena, desnorteado, começou a misturar tudo: alegria e dor, desolação e esperança. Tirava das cordas tudo quanto lhe afogava o coração. Ansiado e desorientado, enrodilhava os dedos. E ia ficando só a dor e a alegria. A dor e a alegria em todas as cordas. Um enovelado de sons cada vez mais alto, como se alguém chorasse. Um choro de dor e de alegria que repentinamente se calou, com um grande soluço morrendo pela sala. Luciano estava de pé, mãos soerguidas. No rosto afogueado, os olhos negros, parados, profundos como num sonho, fitavam o pai de Lena.

No outro dia, ao sair da escola, Luciano largou a correr e só parou em casa. Foi ao quarto, abriu a arca, e tirou lá do fundo um velho punhal de cabo recurvo, negro com embutidos doirados. Apertou-o carinhosamente entre as mãos, como se acariciasse um tesoiro. Era a sua maior fortuna. Fora do avô o punhal, e Luciano apenas consentira em mostrá-lo a raros amigos. Olhou-o de novo com ternura. 

Rápido, meteu-o debaixo do bibe, entalado entre o calção e a camisa, e desandou para o largo. Ao vê-lo chegar, Júlio desafiou-o:

-Queres jogar à malha?

-Não.

-Então, jogamos ao berlinde.

-Também não.

O Júlio fitou-o, admirado. Só então reparou que o amigo olhava para a casa de Lena. Foi sentar-se na beira do passeio. Daí observava Luciano e parte da estrada. Ao sentir-se espiado, Luciano atravessou o largo e sentou-se no passeio fronteiro. Mas ergueu-se logo. Lena acabava de sair de casa e abria os braços, correndo, estrada abaixo. 10 Cada um do seu lado, os dois garotos viram-na entrar no largo, passar, e foram voltando a cabeça até a deixarem de ver. Ambos pensaram que ela devia estar, agora, a bater à porta da casa da madrinha. A espaços olhavam-se disfarçadamente. Daí a pouco, Lena voltou, caminhando a passo. Luciano levantou-se:

-Olá, Lena! A rapariga estacou, surpreendida. Compôs o laço negro, e aproximou- -se, muito séria: -Olá, Luciano. No outro lado, junto das faias, Júlio ergueu-se. Com um olhar magoado, observou-os. Depois, afastou-se e saiu do largo.

Luciano olhava para o chão:

-Queria pedir-te uma coisa... -Que é?

-Tu fazes o que eu te pedir?

-Faço.

Luciano fitou Lena nos olhos. Pôs-lhe a mão no ombro: -Então, vem daí comigo.

Avançaram pela estrada. Em frente da velha casa, Luciano meteu a mão debaixo do bibe e tirou o punhal:

-Toma, Lena. É para o teu pai. Ele pode pô-lo lá nas paredes, junto dos outros.

Lena hesitava.

-Leva-lho! -ordenou Luciano. -Eu já gosto do teu pai.

A rapariga obedeceu. Ia a chegar junto da porta, quando Luciano a chamou:

-Também quero dizer-te uma coisa...

Tinha o rosto vermelho. Mas, ganhando coragem, ergueu a cabeça e disse:

- Gosto muito de ti.

E Lena, com o punhal sobre as palmas das mãos abertas,

Manuel da Fonseca

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