«Cumpridos Dez Anos de Prisão»
Conto de Mário de Sá-Carneiro
1024- «CUMPRIDOS DEZ ANOS DE PRISÃO»
Cumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei
e do qual, entanto, nunca me defendi, morto para a vida e para os sonhos...
nada podendo já esperar e coisa alguma desejando - eu venho fazer enfim a minha
confissão: isto é, demonstrar a minha inocência.
Talvez não me acreditem. Decerto que não me acreditam. Mas
pouco importa. O meu interesse hoje em gritar que não assassinei Ricardo de
Loureiro é nulo. Não tenho família; não preciso que me reabilitem. Mesmo, quem
esteve dez anos preso, nunca se reabilita. A verdade simples é esta. Ricardo de
Loureiro, o poeta das Brasas...
Fui pouco a pouco distinguindo os objetos... e, de súbito,
sem saber como, num rodopio nevoento, encontrei-me sentado em um sofá,
conversando com o poeta e a sua companheira.
Sim. Ainda hoje me é impossível dizer se, quando entrei no
salão, já lá estava alguém, ou se foi só após instantes que os dois apareceram.
Da mesma forma, nunca pude lembrar-me das primeiras palavras que troquei com
Marta - era este o nome da esposa de Ricardo. Enfim, eu entrara naquela sala
tal como se, ao transpor o seu limiar, tivesse regressado a um mundo de sonhos.
Eis pelo que as minhas reminiscências de toda essa noite são as mais ténues.
Entretanto, durante ela, creio que nada de singular
aconteceu. Jantou-se; conversou-se largamente, por certo... à meia-noite
despedi-me. Mal cheguei ao meu quarto, deitei-me, adormeci... e foi só então
que me tornaram os sentidos. Efectivamente, ao adormecer, tive a sensação
estonteante de acordar de um longo desmaio, regressando agora à vida... não
posso descrever melhor esta incoerência, mas foi assim. (E, entre parênteses,
convém-me acentuar que meço muito bem a estranheza de quanto deixo escrito.
Logo no princípio referi que a minha coragem seria a de dizer toda a verdade,
ainda quando ela não fosse verossímil.)
Raros dias se passavam em que não estivesse com Ricardo e
Marta. Quase todas as noites nos reuníamos em sua casa, um pequeno grupo de
artistas: eu, Luís de Monforte, o dramaturgo da Glória; Aniceto Sarzedas, o
verrinoso crítico; dois poetas de vinte anos cujos nomes olvidei e - sobretudo
- o conde Sérgio Warginsky, adido da legação da Rússia, que nós conhecêramos
vagamente em Paris e que eu me admirava de encontrar agora assíduo frequentador
da casa do poeta.
Ricardo empurrou a porta brutalmente... em pé, ao fundo da
casa, diante de uma janela, Marta folheava um livro... a desventurada mal teve
tempo para se voltar... Ricardo puxou de um revólver que trazia escondido no
bolso do casaco e, antes que eu pudesse esboçar um gesto, fazer um movimento, desfechou-lho
à queima-roupa. Marta tombou inanimada no solo... eu não arredara pé do
limiar... e então foi o mistério... o fantástico mistério da minha vida... ó
assombro! ó quebranto! Quem jazia estiraçado junto da janela, não era Marta -
não! -, era o meu amigo, era Ricardo... e aos meus pés - sim, aos meus pés! -
caíra o seu revólver ainda fumegante!...
Marta, essa desaparecera, evolara-se em silêncio, como se
extingue uma chama.
Aterrado, soltei um grande grito - um grito estridente,
despedaçador - e, possesso de medo, de olhos fora das órbitas e cabelos
erguidos, precipitei-me numa carreira louca... por entre corredores e salões...
por escadarias...
Mário de Sá-Carneiro
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