«O Misantropo em Mim»
O Misantropo/ Pieter Bruegel, o Velho
1039- «O MISANTROPO EM MIM»
Admito: existe um misantropo em mim. Senta-se no fundo do
palco. Basta prestar atenção para encontrá-lo sempre no mesmo lugar, com seus
cabelos brancos, calmamente alternando goladas de cachaça e cigarros Derby.
Quase de bastidor, contempla o barulho e a fúria do movimento da vida em que os
outros se engajam. Embriagados de urgências e afazeres, os outros personagens
passam pelo misantropo como se ele não existisse. Não têm tempo pra isso. Mal
sabem eles que, na noite da noite, quando todos estão esgotados e uma modorra
se instaura no palco, o sujeito vem à frente. Nessas raras ocasiões, se
pudéssemos nos esconder entre as cadeiras do teatro vazio, talvez teríamos a
sorte de ouvi-lo. E ele diz: Até quando essas disputas de verdades? Daqueles
que se gabam delas possuir, e que por elas guerreiam como ícones sagrados?
Agitam-se, esbarram-se, despeitam-se, atacam-se, e vão arrebatando-se de
fanatismos, uns depois dos outros, uma sucessão de vinganças e ofensivas.
Alguns afogam-se em rancores e invejas, outros navegam sobre eles na direcção
dos ventos, em qualquer caso sufocando a inteligência de vaidades, orgulhos e
artigos de fé; — e para quê? Obcecaram pelo real, pelo imperativo de que algo
de real definitivamente aconteça consigo, algo que verdadeiramente valha a
pena. Estão cansados de esperar a sua vez, que parece jamais vir. A ponto de
degustar até o desastre e a desgraça, saborear qualquer situação excepcional,
mesmo que negativa, humilhante; o que consterna o rosto e pontua a fala de
exasperações e demandas imediatas, e tudo isso os preenche de algum sentido.
Obstinaram-se em viver seu tempo histórico, o coração armado, a mente tensa, e
todos os momentos modulados à máxima concentração de forças. Inconfessadamente,
querem que a existência os faça doer e ranger, para provar acima do benefício
da dúvida de que estão vivos, sim, vivos aqui e agora. Os mortos não caminham
connosco: nós caminhamos ao Sol! Essa certeza vital os restitui o ímpeto a cada
manhã, mesmo depois das piores noites. E respiram fundo esse ar vicioso,
carregado de humores venenosos. Odeiam com mais intensidade do que amam. E
quando amam, amam a falsa imagem que fazem de si mesmos. Seus ódios tragam a
parcimónia, deixam-se tomar por um furor que neles causa motivação e até
alegria. Pretendem explorar paisagens inverosímeis, assediar os castelos da
tradição, devorar os ídolos de outras gerações, sem qualquer condescendência
com quem quer que seja. Meus contemporâneos batalham pelo futuro da humanidade.
E eu lá tenho, ou alguma vez tive algum compromisso com a humanidade? desde
quando? mas que me importa a humanidade? que importa essa mística, o velho erro
e todas as cândidas intenções humanistas? Se dizem que vai acabar, me traz a
sensação de alento, porque o humano nunca se colocou como ómega universal. Não
sou atravessado pela humanidade, não é a minha condição. Chega desse clima de
idade média, simpatia pelo inferno e gozo secreto ante as visões de fim de
mundo. Escatologia de condomínio fechado, paranóia de rico, humanismo que
lubrifica a máquina de torturas da Colónia Penal (menos rangidos! menos
gritos!) O enfrentamento é viver e não aspira ao conforto de shopping center
nem aos idílicos plastificados e prazeres customizados da geração.
Se não entenderam até agora, não vão entender nunca. O padeiro não fabrica pães
pelo bem da humanidade. Vejo no outro as mãos, a pele, a dor, a loucura, a
terra, a Lua, (e mesmo um quê de imortalidade), porém não posso nele enxergar a
imagem e semelhança do humano. Do outro, quero a terra que levarei para o meu jardim
secreto, um mundo delirante onde a única substância é o absurdo. A misantropia
é condição do amor, esta afecção da imaginação, actividade imaginadora em que o
outro se cria. E se cria numa imagem onde não me reconheço mais. Sem entrar nos
jogos pautados pelos “resultados”, cujo nojo é preciso provar até o fim para
dele se libertar, imunizado da doença infantil que acomete os humanos. Tenho o
direito à misantropia. E quanto às toupeiras em posições de mando ou status,
que se comprazem com as ninharias e nulidades que obtiveram numa vida obesa?
Esses não merecem mais do que o desdém. Eles e todos aqueles que os servem
voluntariamente, presos em medos, resignações e impotências. Para estes, só há
uma via para existir: revoltar-se. Mas odiá-los seria super estimá-los. Sentir
rancor, divinizá-los. Nada alvitra mais à sensibilidade do que o ressentimento
diante da imundície deste mundo. Sinto-me absolutamente imune diante das
mesquinharias que os fazem acordar cedo e alimentar a Grande Máquina. Uma
derrisão sem limite. Se possuo uma vaidade, é do tamanho da mediocridade que
encontro no dia a dia, e nada mais. Podem tentar enlamear-me com suas mazelas
desinteressantes e conquistas ridículas, incitar-me ao remorso, à ferida moral,
ao derrotismo romântico, mas ressurgirei intocado. Suas taras não me
interessam. Fugirei para grandes espaços arejados, para o extremo sul do
Brasil, e lá me confinarei em mim mesmo, sonhador de todos os mundos, na
lembrança incandescente de ternuras e barricadas, nos horizontes infinitos dos
pampas. Munido da grande ironia, renascerei intocado da vulgaridade. O mestre
romeno tem razão, às pessoas falta a qualidade da deliquescência. É preciso
aplicar na humanidade a fórmula do solvente universal.
Emil Cioran
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