«Os Prisioneiros de Longjumeau»
Conto de Léon Bloy
1046- «OS PRISIONEIROS DE LONGJUMEAU»
O Postilhão De Longjumeau anunciava ontem o fim
deplorável dos dois Fourmi. Esse jornal, recomendado com justa razão pela
abundância e qualidade de suas informações, perdia-se em conjecturas quanto às
causas misteriosas do desespero que acaba de levar ao suicídio esses esposos que
todos imaginavam felizes.
Casados quando muito jovens e há vinte anos em lua-de-mel,
não haviam saído da cidade nem por um único dia.
Livres, pela previdência de seus criadores, de todas as
preocupações com dinheiro capazes de envenenar a vida conjugal e, pelo
contrário, amplamente supridos de todo o necessário para aparelhar um tipo de
união sem dúvida legítima mas tão pouco conforme à necessidade de vicissitudes
amorosas que em geral preocupa os instáveis humanos, eles realizam, aos olhos
do mundo, o milagre da ternura perpétua.
Uma bela noite de maio, no dia seguinte à queda do sr.
Thiers, o trem circular os havia trazido, juntamente com seus pais, que ali
estavam para instalá-los na deliciosa propriedade que deveria abrigar sua
alegria.
Os longjumelianos de coração puro contemplaram enternecidos
aquele lindo casal que o veterinário sem hesitar comparou a Paulo e Virgínia.
Eles realmente estavam, naquele dia, muito bem e pareciam
pálidos filhos da aristocracia.
Mestre Piécu, o tabelião mais importante do cantão, lhes
comprara, às portas da cidade, um ninho de verdura que os mortos teriam
invejado.
Pois é preciso admitir que o jardim fazia pensar num
cemitério abandonado. Tal aspecto não lhes desagradou, sem dúvida, pois ali não
introduziram, nos anos seguintes, qualquer modificação e deixaram crescer em
liberdade os vegetais.
Para me servir de uma expressão por demais original do
mestre Piécu, eles viveram nas nuvens, não recebendo praticamente
ninguém, não por malícia ou desdém, mas simplesmente porque nunca pensaram
nisso.
Além disso, teria sido preciso deixar de se abraçar por
algumas horas ou alguns minutos, interromper o êxtase e, por Deus!,
considerando a brevidade da vida, esses esposos extraordinários não tinham tal
coragem.
Um dos maiores homens da Idade Média, mestre Jean Tauler,
conta a história de um ermitão a quem um visitante inoportuno foi pedir um
objecto que se encontrava em sua cela. O ermitão se viu no dever de entrar em
casa para apanhar o objecto. Mas, ao entrar, esqueceu-se do que se tratava, pois
a imagem das coisas exteriores não conseguia permanecer em seu espírito. Saiu
então, e pediu ao visitante que lhe dissesse o que desejava. Este renovou o
pedido. O ermitão voltou a entrar mas, antes de apanhar o tal objecto, a
lembrança do mesmo o abandonou. Depois de diversas tentativas, foi obrigado a
dizer ao inoportuno:
— Entre e procure o senhor mesmo aquilo de que precisa,
pois não consigo guardar comigo a sua imagem tempo suficiente para
fazer o que me pede.
O sr. e a sra. Fourmi muitas vezes me lembraram esse
ermitão. Teriam dado de boa vontade tudo o que lhes fosse pedido, caso disso
conseguissem se lembrar por um único instante.
Suas distracções eram famosas, falava-se delas até em
Corbeil. Os dois, entretanto, não aparentavam sofrer por causa delas e a
“funesta” resolução que lhes terminou a existência por todos invejada deve
parecer inexplicável.
***
Uma carta já antiga desse infeliz Fourmi, que conheci antes
de seu casamento, permitiu-me reconstituir, por dedução, toda a sua lamentável
história.
Aqui está a carta. Veremos, talvez, que meu amigo não era
nem louco nem imbecil.
“…Pela décima ou vigésima vez, caro amigo, nós te faltamos
com a palavra, de forma absurda. Por maior que seja a tua paciência, imagino
que devas estar cansado de nos convidar. A verdade é que desta última vez, como
das anteriores, minha mulher e eu não temos desculpas. Tínhamos dito por
escrito que poderias contar connosco e não tínhamos absolutamente nada para
fazer Entretanto, perdemos o trem, como sempre.
Há 15 anos perdemos todos os trens e todas as conduções
públicas, por mais que tentemos. É infinitamente idiota, é de um ridículo
atroz, mas começo a acreditar que o mal não tem remédio. É uma espécie de
fatalidade grotesca da qual somos vítimas. Não há o que fazer Já nos aconteceu
de nos levantarmos às três horas da manhã ou mesmo de passar a noite sem dormir
para não perder o trem das oito, por exemplo. Pois bem, meu caro, a lareira se
incendiava no último instante, eu torcia o tornozelo no meio do caminho, o
vestido de Julieta ficava preso em algum arbusto, nós adormecíamos no sofá da
sala de espera, sem que a chegada do trem ou o chamado do encarregado nos
acordasse a tempo, etc., etc. Da última vez, eu havia esquecido a carteira.
Enfim, repito, há 15 anos isso dura e sinto que aí está
nosso princípio de morte. Por causa disso, como não ignoras, falhei em tudo,
briguei com todo mundo, passei por um monstro de egoísmo, e minha pobre Julieta
foi naturalmente envolvida nas mesmas queixas. Desde nossa chegada neste lugar
maldito, faltei a 74 enterros, 12 casamentos, trinta baptismos, um milhão de
visitas ou actividades indispensáveis. Deixei morrer minha sogra sem tê-la
revisto uma só vez, embora ela tenha estado doente quase um ano, o que nos
valeu sermos privados de três quartos de sua herança, que ela furiosa nos tirou
na véspera de sua morte, por um codicilo.
Eu não terminaria se me dedicasse a enumerar as faltas e
desventuras ocasionadas por essa inacreditável circunstância de nunca termos
conseguido nos afastar de Longjumeau. Para resumir numa palavra, somos
prisioneiros, para sempre privados de esperança, e vemos se aproximar o momento
em que essa condição de encarcerados deixará de nos ser suportável…”
Suprimo o resto, onde meu triste amigo me confiava coisas
por demais íntimas para que eu as possa publicar. Mas dou a minha palavra de
honra que não se tratava de um homem vulgar, que ele foi digno da admiração de
sua mulher e que esses dois seres mereciam algo melhor do que acabar da forma
estúpida e sórdida como acabaram.
Determinadas particularidades que peço permissão de guardar
para mim me fazem pensar que o desafortunado casal era realmente vítima de uma
maquinação tenebrosa do Inimigo dos homens que os conduziu, pela mão de um
tabelião evidentemente infernal, àquele maléfico rincão de Longjumeau do qual
nada foi capaz de arrancá-los.
Acredito realmente que eles não conseguiam fugir,
que havia, em volta de sua casa, um cordão de tropas invisíveis
escolhidas com cuidado para atacá- los e contra as quais nenhuma energia
poderia prevalecer.
***
O sinal, para mim, de uma influência diabólica, era que os
Fourmi viviam devorados pela paixão das viagens. Aqueles prisioneiros eram, por
natureza, essencialmente migradores.
Antes de se unirem, tiveram sede de correr o mundo. Quando
eram ainda apenas noivos, haviam sido vistos em Enghien, em Choisy-le-Roi, em
Meudon, em Clamart, em Montretout. Um dia, chegaram mesmo a se aventurar até
Saint-Germain.
Em Longjumeau, que lhes parecia uma ilha da Oceânia, essa
fúria de explorações audaciosas, de aventuras por terra e por mar, só fizera se
exasperar.
Sua casa era atulhada de globos e planetários, possuíam
Atlas ingleses e Atlas germânicos. Tinham até mesmo um mapa da lua publicado em
Gotha sob a direcção de um pedante chamado Justus Perthes.
Quando não faziam amor, liam juntos histórias de navegadores
famosos que eram o conteúdo exclusivo de sua biblioteca e não havia um diário
de viagens, uma Volta do Mundo ou um Boletim de sociedade geográfica
do qual não fossem assinantes. Horários de estradas de ferro e prospectos de
agências marítimas choviam sem cessar sobre sua casa.
Coisa que ninguém acreditará, suas malas estavam sempre
prontas. Estiveram sempre prontos para partir, fazer uma interminável viagem
aos países mais distantes, mais perigosos ou mais inexplorados.
Recebi quarenta avisos anunciando sua partida iminente para
Bornéu. Terra do Fogo. Nova Zelândia ou Gronelândia.
Por diversas vezes, na verdade, faltou muito pouco para que
partissem. Mas afinal não partiam, nunca partiram, porque não podiam e não
deviam partir. Os átomos e as moléculas se aliavam para puxá-los para trás.
Um dia , no entanto, há uns dez anos, eles decididamente
acreditaram poder fugir. Haviam conseguido, contra toda esperança, se atirar
num vagão de primeira classe que deveria levá-los a Versailles. Liberdade!
Agora, sem dúvida, o círculo mágico se romperia.
O trem começou a andar, mas eles não se moveram. Tinham, é
claro, entrado num vagão destinado a ficar na estação. Era preciso recomeçar
tudo.
A única viagem à qual não faltariam era evidentemente a que
acabam de fazer, coitados!… e seu temperamento que bem conheci me leva a crer
que para ela se prepararam bem trémulos.
Léon Bloy
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