«A Garrafa Quebrada»
Do Romance: «O Mar é Meu Irmão»
1086- «A GARRAFA QUEBRADA»
Capítulo I
Um jovem, cigarro na boca e mãos nos bolsos das calças,
desceu os degraus de uma pequena escada de tijolos na saída do saguão de um
hotel na parte alta da Broadway e dobrou na direcção da Riverside Drive,
arrastando-se de modo curioso, com passos lentos.
Anoitecia. As ruas quentes do mês de Julho, encobertas por
uma neblina de mormaço que turvava os contornos nítidos da Broadway,
fervilhavam com um cortejo de ambulantes, coloridas barracas de frutas, ónibus,
táxis, automóveis lustrosos, lojas kosher, marquises de cinema e todos os
inúmeros fenómenos que criam o brilhante espírito carnavalesco de uma via
pública em meio ao verão de Nova York.
O jovem, vestindo casualmente uma camisa branca sem gravata,
um surrado casaco de gabardine verde, calça preta e mocassins, parou diante de
uma banca de frutas e examinou as mercadorias. Na mão delgada, contemplou o que
restava de seu dinheiro – duas moedas de 25 centavos, uma de dez e uma de
cinco. Comprou uma maçã e seguiu seu caminho, mastigando pensativamente. Gastara
tudo em duas semanas; quando aprenderia a ser mais prudente? Oitocentos dólares
em quinze dias – como? onde? e por quê?
Quando jogou para longe o miolo da maçã, sentia ainda a
necessidade de satisfazer seus sentidos com alguma ociosidade ou outra, de
modo que entrou numa loja de charutos e comprou um charuto. Somente o acendeu
quando já estava sentado num banco na Drive, diante do rio Hudson.
Havia um frescor ao longo do rio. Atrás dele, a enérgica
vibração de Nova York suspirava e pulsava como se a própria ilha de Manhattan
fosse uma corda desarmoniosa tocada pela mão de algum demónio descarado e
atarefado. O jovem se virou e percorreu com seus olhos escuros e curiosos os
altos telhado da cidade e embaixo, na direcção do ancoradouro, onde a corrente
de luzes da ilha curvava-se num arco poderoso, contas ardentes enfileiravam-se
em sucessão confusa na névoa do verão.
O charuto tinha o gosto amargo que ele queria sentir na
boca; fornecia uma sensação plena e ampla entre os dentes. No rio, ele podia
distinguir vagamente os cascos dos navios mercantes fundeados. Uma pequena
lancha, invisível excepto por suas luzes, deslizava por um caminho costurado,
passando pelos escuros cargueiros e navios-tanque. Com um assombro silencioso,
inclinou-se para a frente e observou os flutuantes pontos de luz que se moviam
lentamente rio abaixo em líquida graciosidade, seu quase mórbido interesse
fascinado por algo que poderia parecer banal para outra pessoa.
Esse jovem, no entanto, não era uma pessoa comum. Tinha uma
aparência normal, pouco mais alto do que a média, magro, um semblante côncavo
marcado pela proeminência do queixo e pelos músculos do lábio superior, a boca
expressiva com linhas delicadas, mas abundantes entre os cantos dos lábios e o
nariz fino, e um par de olhos simétricos e simpáticos. Mas seu comportamento
era estranho. Costumava manter a cabeça muito erguida, de maneira que observava
tudo num escrutínio que vinha de cima, com certa atitude abstraída que continha
uma curiosidade altiva e inescrutável.
Nessa postura, fumou o charuto e observou os passantes que
seguiam pela Drive, em paz com o mundo segundo todas as aparências. Mas não
tinha dinheiro e sabia disso; no dia seguinte, não teria sequer um tostão. Num
arremedo de sorriso formado ao erguer um canto da boca, tentou lembrar-se de
como gastara seus oitocentos dólares.
A noite anterior, ele sabia, custara-lhe seus últimos cento
e cinquenta dólares. Bêbado por duas semanas consecutivas, reconquistara
finalmente a sobriedade num hotel barato no Harlem; de lá, lembrou, tomara um
táxi até um pequeno restaurante na Lenox Avenue que servia somente costeletas.
Fora ali que conhecera aquela bonita garota de cor que fazia parte da Juventude
Comunista. Lembrou que haviam tomado um táxi até Greenwich Village, onde ela queria
ver certo filme…. não era Cidadão Kane? E depois, num bar na MacDougall Street,
ele a perdeu de vista quando topou com seis marinheiros sem dinheiro; eram de
um contratorpedeiro em dique seco. Desse ponto em diante, conseguia lembrar-se
de pegar um táxi com eles e cantar músicas de todos os tipos e descer no
Kelly’s Stables na 52nd Street e entrar para ouvir Roy Eldridge e Billie
Holliday. Um dos marinheiros, um auxiliar de farmacêutico com traços vigorosos
e cabelos escuros, falou o tempo inteiro sobre o trompete de Roy Eldridge e
sobre como ele estava dez anos à frente de qualquer outro músico de jazz, com
excepção, talvez, de dois outros que tocavam às segundas no Minton’s, no Harlem,
Lester alguma coisa e Ben Webster; e sobre como Roy Eldridge era realmente um
pensador fenomenal, com ideias musicais infinitas. E então foram todos para o
Stork Club, que um outro marinheiro sempre quisera conhecer, mas estavam todos
entorpecidos demais para que pudessem ser admitidos, de modo que recorreram a
uma espelunca barata para dançar, onde ele comprara um maço de bilhetes para o
grupo. De lá tinham partido para um lugar no East Side onde a madame lhes
vendeu três litros de scotch, mas quando se deram por satisfeitos a madame se
recusou a deixar que dormissem todos ali e os chutou para fora. De qualquer
maneira, já não aguentavam mais o lugar e as garotas, e assim rumaram cidade
acima na direcção oeste até um hotel na Broadway onde ele pagou por uma suite
dupla e terminaram de beber o scotch e desabaram em cadeiras, no chão e nas
camas. E então, no final da tarde seguinte, ele acordou e encontrou três dos
marinheiros esparramados em meio a uma desordem de garrafas vazias, quepes de
marinheiro, copos, sapatos e roupas. Os outros três tinham saído para algum
lugar, talvez em busca de um antiácido ou suco de tomate.
Então ele se vestiu lentamente, depois de tomar um banho
demorado, e foi dar uma volta, deixando a chave na recepção e pedindo ao
recepcionista que não perturbasse seus companheiros adormecidos.
E aqui estava sentado agora, sem ter no bolso nada mais do
que cinquenta centavos. A noite anterior custara mais ou menos $150, entre
táxis, bebidas aqui e ali, contas de hotel, mulheres, bilhetes de entrada e
tudo mais; os bons momentos estavam acabados naquele momento. Sorriu ao
recordar como tinha sido engraçado quando acordou poucas horas antes, no chão,
entre um marinheiro e uma garrafa de um litro vazia, e com um de seus mocassins
no pé esquerdo e o outro no chão do banheiro.
Jack Kerouac
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