sábado, 9 de dezembro de 2017

OUTROS CONTOS

«Pelo Zurro o Burro», conto académico por Almeida Garrett.

«Pelo Zurro o Burro»
Caprichos/ Goya

1124- «PELO ZURRO O BURRO»

Era uma vez: diz mestre La Fontaine.
Que lho dissera Fedro seu amigo.
Que lho dissera um grego corcovado…
Pois tudo neste mundo vai por ditos,
Tudo se diz porque outros o disseram…
E talvez que não fosse La Fontaine,
Mas foi outro que tal, que vale o mesmo.
Um dia… mas o fio à minha história
Não o torno a quebrar por coisa alguma:
Poema que tem muitos episódios
Nunca pode ser bom, nem bons ser eles:
Diz padre Horácio ou outro tal como ele
Destes que intentam acanhar o génio
Com leis servis por eles arranjadas
Que, segundo a moderna guapa escota,
As não pode sofrer de tais birbantes.
Um dia pois o pai de homens e numes,
Como eu ia contando aos meus leitores…
– Se é que a sorte, que os nega a bons poetas
Mos deparar a mim, chulo trovista –
A rogos, mas de quem já me não lembra,
Asno felpudo de orelhões caídos
Quis transformar em férvido ginete;
E ao bom Mercúrio, seu fiel ministro,
Manda que o longo pêlo lhe tosquie
E um bom naco cerceie das orelhas.
Era grande o burrico, nédio e gordo.
E por milagre do supremo Jove,
Que sempre faz como este bons milagres,
Ei-lo desempenado e mui lampeiro,
Qual andaluz coroei ou égua arábia,
A par doutros corcéis se vai trotando.
O povo cavalar na forma nova
Não reconhece a burrical maranha.
Como eles folgazão retouça e pula,
Ladeia, faz coroavas, trava o passo,
Enfim parece – tanto podem numes
E tal é o poder de um bom milagre! –
Cavalo-mestre e feito em picaria.
– Qual rústico peão de bronca aldeia
De tamancos nos pés, no saco a broa,
Que vem para embarcar lá da província,
E para um tio, que é senhor de engenho,
Ricaço em pretos, em arroz, melaço,
Engoiado aprendiz vai ser caixeiro:
Morre-lhe o tio, eis o rapaz num sino,
Vende pretos e pretas e melaço,
E vem, Creso de cocos e patacas,
Meter toda Lisboa num chinelo:
Já por boas, luzentes amarelas
Serôdio compra fidalguesco foro…
Dantes – que hoje a visita da saúde,
Em cheirando a caturra, a bordo o prende,
E é já barão quando põe pé em terra.
Ei-lo que alteia os ombros encolhidos,
Entufa em vento as bochechudas belfas,
Empina a pança, engrossa a voz pausada.
E no tropel dos nobres envolvido,
Se o não conheces, crera-lo provindo
Dos que nos velhos pergaminhos vivem.
Tal já desorelhado e ufano o burro
Entre altivos ginetes campeava.
Mas, oh! fado infeliz, mesquinha sorte!
Quando entre os novos ledos companheiros
Se vai trotando com pimpão meneio,
Ei-lo depara com vilã jumenta
De hirsuta felpa e de costado esguio,
Que os fios corta d’alma a quem a via,
Como bem diz Latino-luso vate
De mui gaiata e festival memória,
Súbito esquece o recém-nobre estado,
Lembram-lhe antigos, burricais requebros
E o tom galanteador de asnal namoro:
Estira amante o beijador focinho,
E em notas de invejar por um Lablache,
Salmeia airoso, compassado orneio,
Deixa os amigos e a zurrar se fica?
Ora pois, como fez o senhor lave,
Fez certo grão senhor de letras gordas
E protector das magras. – Foi milagre
Que pela intercessão foi operado
De uma a que chamam deusa da Sandice,
De outra Impostura e de outra Pedantice…
Começa o caso co outro parecido.
Havia em certa terra muito longe,
Lá nas pontes dos pés deste hemisfério,
Que dizem fora outrora povoada
Por certo beberrão feitor de Saco,
Havia uma família de animálculos,
Zoófitos, e quase microscópicos,
Aos quais Lineu, que achou nomes a tudo,
Nunca deu nome, nem espécie ou género,
Nem eu lho sei também, só sei que arrotam
Textos, medalhas, químicas rançosas,
Que trazem na algibeira um compassinho,
Muito acanhado, curto e pequenino,
Talhado ao molde dos miolos deles,
Com que querem medir todo este mundo.
Destes pois – e aqui vai o grão milagre –
Burros na forma, na ciência burros,
Mas burros mais que tudo na cachola,
Quis o tal grão senhor citado acima
Fazer– ó musa o quê? – Dize, não temas,
Não fujas, diz e vai-te. – «Uma Academia»
Disse a musa e safou-se às gargalhadas.
Mas que Academia! – Oh! venham as brilhantes
De Londres, de Paris, de Petersburgo
Beber aqui ciência não sabida
De assopradas, pomposas ninharias.
Que produções, que produções! Oh quanto
Quanto seria mais se um deus maligno,
Inimigo dos guapos académicos,
Das três que Deus nos deu potências de alma
Lhes não sacasse duas à sorrelfa,
Deixando só memórias e memórias…
Quanto seria mais, quanto fulgira
Em gordos, grossos, grandes calhamaços
A portuguesa, majestosa língua,
Se os novos sábios, no começo à empresa,
A antigas manhas não perdendo o afinco,
Não encontrassem por desgraça nossa
Cum pérfido azurrar – zurrar maldito!…
Ficaram no Azurrar sempre zurrando.

Almeida Garrett

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