quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

OUTROS CONTOS

«O Vagabundo de Lisboa», por João Ubaldo Ribeiro.
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O Vagabundo/ Charlie Chaplin

1215- «O VAGABUNDO DE LISBOA»

Subindo aqui a avenida que dá para os fundos de minha casa, cumprimentando os passantes, parando para ver os meninos jogando bola no parque e assobiando uma musiquinha cujo nome não sei mas que, nesta manhã, não me sai da cabeça, detenho-me na Pastelaria Brasil-América, para comprar uma caixa de fósforos. Não sou muito chegado a essa pastelaria — cuja única qualidade (e, assim mesmo, questionável) é ser perto aqui de casa — porque as iscas que nela servem são de baixa qualidade e há um irmãozinho lusitano que nela trabalha que gosta de me gozar. Mas esqueci o isqueiro em casa, tenho de comprar fósforos. Encontro o mesmo irmãozinho, ele me diz o preço, eu me confundo todo com as moedas, ele me goza outra vez. “Um dia eu ainda lhe pego”, penso eu, fingindo que não ligo, mas muito mal-intencionado intimamente.

E prossigo avenida Estados Unidos acima, para pegar o metrô, que aqui se chama metro. O dia não está nem quente nem frio, há um belo sol, as sacadas dos apartamentos estão todas floridas e vou ao Rossio em missão de vagabundagem. Acho-me um cidadão lisboeta e me vejo tomado de um certo sentimento de orgulho, ao cruzar com minhas concidadãs, a maioria plenamente imbuída do mesmo espírito primaveril e portanto usando umas blusinhas leves por cima da pele e balançando todos os tipos de simpáticos e risonhos peitinhos, como é — o Senhor seja louvado — do hábito de tantas raparigas aqui. Respiro fundo, paro um pouco na subida, aproveito para prestar atenção na moça que de lá vem, usando um chapeuzinho e uma espécie de colete em cima da tal blusinha, a qual mal esconde os tais peitinhos. Decido que não será necessária uma discrição excessiva, consideradas as circunstancias atmosféricas tão amenas e mais a minha exuberante lusofilia, de forma que, com tanta elegância quanto é possível aos baianos, ponho as mãos nos bolsos do casaco, detenho o passo e espero a moça passar, com interesse. Ela ajeita a mecha do cabelo que lhe sai por um lado do chapéu, sorri vagamente como se estivesse lembrando de repente alguma coisa agradável e passa triunfal a meu lado, reconhecendo tácita e cordialmente o meu silencioso cumprimento e meus encômios à boa forma de seu equipamento, tão afavelmente mostrado. Uma safadeza minúscula e inocente, que não me deixa remorsos e me faz achar o resto do caminho até o metro muito agradável. Safadezazinha, aliás, que, combinada com as milhares de outras safadezazinhas que, nesta manhã ensolarada e irresponsável, haverão de estar sendo cometidas em toda a nossa querida Lisboa, deixam a pessoa que respira fundo e não tem mal na consciência, deixam essa pessoa — como direi? — assim meio peralta.

Minha estação é a estação de Roma. O metro é pequeno e não mete medo, como o de Nova Iorque. Nem tem primeira classe, como tinha o de Paris antes de Mitterrand. Na gare, giro rapidamente o corpo para cumprimentar a moça que tripula a lojinha de fazer cópias xerox de que sou freguês. “Como passou?”, inquiro na minha melhor forma lusitana. “Olá, como está?”, responde ela, rindo com um certo encanto tímido. Por alguma razão, considero esse episódio entusiasmante, resolvo comemorar, apresento cem escudos ao bilheteiro e compro uma caderneta! Uma caderneta é um conjunto de bilhetes de metro que você pode usar a qualquer tempo e que saem a dez escudos, quando o bilhete individual custa quinze. Considero-me um mago das finanças por haver concebido tão fantástica economia.

Dentro do metro, a única cautela que cabe observar é, se sentar, ficar atento para senhoras grávidas e outras pessoas a quem a lei e o costume garantem assento. Se a gente não se levantar imediatamente, ao ingresso de uma dessas pessoas, a reação do público feminino, principalmente da parte de senhoras de preto e de bigode agudamente parecidas com uma tia-avó nossa que morreu antes de termos idade para realmente apreciá-la, é das mais sonoras. Há discursos, estabelecem-se debates. Como o meu sotaque, suspeito eu, é considerado primitivo, procuro abster-me e, além disso, não quero envergonhar Ruy Barbosa — o que é, como se sabe, obrigação de todo baiano. Logo no Areeiro entra o cego da ocarina, que, acompanhado por um senhor de boné e aspecto grave, toca seu instrumento com aquele ar destacado e longínquo dos cegos de feira do Nordeste, mas alguma coisa em sua expressão, alguma coisa desamparada e ansiosa, como também há nos cegos de feira do Nordeste, alguma coisa nos dedos que cobrem e descobrem rapidamente os buracos de barro da ocarina, como há nos dedos nordestinos que percutem as cordas das violas, alguma coisa impõe uma reverência instantânea, um ar de contrição, que a gente nota se espalhar como tinta por um mata-borrão, entre os passageiros. E depois há o som que ele tira dessa ocarina, estranhamente entrelaçado com o barulho do trem correndo por aqueles túneis de Lisboa, um som meio árabe, meio sertanejo, meio misturado com tantas memórias absurdas. As mulheres remexem nas bolsas, à espera de que passem o músico cego e seu digno auxiliar, que utiliza o boné pan recolher as moedas. Os homens metem as mãos nos bolsos, esperam disfarçando, como se houvesse alguma paisagem para ver através das janelas. O trem vai chegar a Arroios, chia numa curva e o cego, indiferente ao gemido metálico das rodas, multiplica repentinamente as notas da ocarina, causando emoção visível entre os passageiros, emoção que ele não enxerga mas presume, o que se depreende de um esboço de sorriso orgulhoso, que deixa passar pelos cantos da boca ocupada em soprar. Olha-se assim em torno, não é o metro de Lisboa, são os fantasmas amáveis de nossas infâncias, são sons já ouvidos, momentos já vividos, saudades resgatadas, somos nós. Ali parados, segurando uma alça no metro de Lisboa, coisas ancestrais, nós. Disfarçando também, cato uma moeda, enfio-a no boné meio dobrado do assistente do cego. Cego este que sente a chegada à estação de Arroios, tem mais encantamentos a obrar em outras partes, e então sai acompanhando seu auxiliar e segue pelas escadas da gare acima, deixando uma trilha de sons da ocarina como uma fita espiralada no ar, que, mesmo depois de fechadas; as portas e retomada a nossa marcha, ainda persiste em nossa pequena comunidade.

Meu lugar favorito de Lisboa, naturalmente, é o Rossio, onde invariavelmente desemboco pela mesma saída do metro, em cima da Suíça, uma pastelaria de dezenas de mesas na calçada, em que as pessoas passam o dia todo tomando um cafezinho (uma “bica”) mordiscando bolinhos e paquerando as nórdicas que ali vêm fazer a praça. Graves decisões: vou na direção do Café Nicola ou passo antes pela Praça da Figueira? Nós, vagabundos, temos problemas como quaisquer outros mortais. Pela Praça da Figueira, eu pego a rua da Madalena, onde se situa minha ervanária favorita. Julgo de bom alvitre passar pela ervanária,afinal há muito tempo que não vou lá, preciso saber das novidades. E, assim, imerso num incrível rebuliço de gente, cheiros, cores e ruídos, marcho para a Praça da Figueira. Há um camelô muito sério, demonstrando um fantástico cortador de vidro. Pega laminas de vidro de uma caixa e, conversando em alta velocidade, corta fatias de vidro como alguém tiraria rodelas de uma cenoura. “Quanto é o cortador aí?” pergunto eu, subitamente, achando que não posso passar sem um cortador de vidro — não há coisa mais indispensável para um escritor. São 150 escudos, pago sem discutir e vou de cortador em punho para a ervanária, cujo cheiro indescritível já começo a sentir desde a esquina. Lembro os prospectos: há chás e tisanas para tudo, inclusive para duas doenças que pretendo divulgar bastante, quando voltar ao Brasil: a fraqueza nervosa (da qual já padeço, esporadicamente) e o afrontamento de senhoras. Ainda não consegui informações precisas a respeito do que é o afrontamento de senhoras e tive vergonha de perguntar ao caixeiro meu amigo, na ervanária. Mas qualquer um concordará que se trata de uma enfermidade a ser gravemente considerada. Resolvo levar alguns sacos de chá para afrontamento de senhoras, quando voltar ao Brasil, em meio a minha bagagem de ervas milagrosas, com as quais pretendo receitar todo mundo. Na ervanária, não muitas novidades, a não ser umas pílulas de alho de fabricação revolucionária, que o caixeiro me recomenda com ênfase. Mas, as antigas? — pergunto eu, hesitante. Continuam boas, responde ele, mas nestas cá vê-se o óleo através das cápsulas. De fato, vê-se o óleo. É um argumento irresistível. Compro duas caixas, umas certas pílulas de pau d’arco, uma garrafinha de extrato de ginseng, mais umas miudezas e, com meu saquinho, volto pausadamente à Praça da Figueira, parando para olhar as vitrinas (as montras, perdão) de comida, arrumadas das maneiras mais caleidoscópicas pelas ruelas em volta do Castelo de São Jorge: sapatas, amêijoas, santolas, chamuças, carapaus, fiambres, chouriços, ginjinhas. De vez em quando, eu entro num desses estabelecimentos, só para ver a exposição das comilanças. Eles vêm ver o que eu quero e, quando explico que estou ali somente para uma espécie de fruir estético, eles até me oferecem, de vez em quando, uma excursão turística pela despensa e pela cozinha. Marco mentalmente o meu almoço: vou ao restaurante de Mimi, no Parque Meyer, comer na varanda, entre as plantas e alguns velhos atores de teatro de revista, conversando com os gatos e tomando o vinho da casa.

Mas isto só depois, porque me emociona estar aqui de volta ao Rossio, na boca da Baixa e do Chiado, esperando o sinal abrir e os ônibus de dois andares pararem de querer me atropelar. Gente que não acaba mais e meus amigos da porta do Café Nicola e do Pic-Nic — os angolanos, moçambicanos cabo-verdeanos e guineenses, todos vestidos de Bob Marley e todos muito loucos, transando haxixe. O comércio não é tão discreto como se esperaria, dada a sua natureza, digamos, delicada. Brazuca, um angolano assim chamado porque morou muito tempo no Brasil (de onde foi, lamentavelmente, expulso devido “a um problemazito de uma maconhazita”, me cumprimenta amavelmente. Os negócios devem ir bem, ele está de blusão novo e passado, barba feita e transas com fitinhas impecáveis. “Não quer lá um chuculate, homem?”, me pergunta ele, sacudindo na minha cara um pedaço de haxixe deste tamanho. “Que é isso, Brazuca?”, digo eu. “Olhe os homens aí”.Aproveita — responde ele como se não me tivesse ouvido — que é coisa finíssima que chegou hoje do Marrocos. “Depois, Brazuca, depois”, respondo eu levemente embaraçado, inclusive porque, junto a mim, um senhor que me parece hindu, muito sério e de paletó e gravata, reclama com outro transeiro do tamanho do pedaço de “chuculate” que acaba de lhe ser vendido por mil escudos. “Mas um conto, isto, um conto!”, diz o senhor hindu, obviamente achando tudo um absurdo e exibindo aos passantes a prova de sua alegação, diante do sorriso desdentado do seu transeiro. “Um conto, isto!”, repete o senhor hindu, mostrando a mim o pedacinho do chuculate. De fato, achei pequeno, mas não considerei apropriado continuar a envolver-me no processo em andamento, de forma que me fiz de desentendido e prossegui na direção da rua do Carmo. Lembrei que tinha compromissos inadiáveis: curtir as livrarias, comprar cigarros na tabacaria de um feroz comunista amigo meu, tomar uma cerveja n’A Brasileira e dedicar algum tempo a apenas me sentir maravilhosamente bem ali mesmo naquele formigueiro da Baixa. Lembrei Dorival Caymmi, uma vez explicando, antes de a Bahia haver sido destruída como Lisboa, felizmente, não foi — e como não foi, em tantos sentidos! —, umas certas cores uns certos ares que era imperativo ficar curtindo, em vez de trabalhar. Não há tempo para trabalhar, dizia ele, a pessoa fica muito ocupada vivendo.

Pois então, pois cá tenho vivido muito em Portugal. Não propriamente vendo coisas, embora haja, é claro, coisas para ver, mas sentindo. Não propriamente aprendendo, mas me acrescentando de tantas formas sutis e fortes, por tantas vias antes insuspeitadas. E então, sobraçando minhas ervas, meus livros, meus postais velhos, meu cortador de vidro, desço de novo ao Rossio. Vou caminhar pela avenida da Liberdade, em ponderado passeio para o Parque Meyer. O dia fica cada vez mais luminoso, só consigo pensar em coisas boas. A velha estação dos comboios parece uma catedral, a avenida se abre como se fosse haver uma parada, eu adoro Lisboa. E, se você não aproveitar a primeira chance que tiver para vir curtir esta minha cidade, você é bobo.

João Ubaldo Ribeiro

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