«Traição»
Traição/ Gustavo Ludgero
1216- «TRAIÇÃO»
Hoje é dia 21 de Outubro de 2008. Estou a beber chá.
O meu marido anda lá fora, no quintal. Na paisagem imóvel da
janela, uma brisa ligeira nas folhas mais altas, vejo-o às vezes. Furtivo, o
meu marido passa com a pá, ou o ancinho, ou a mangueira, ou a tesoura de podar.
Na nossa casa, os catálogos de jardinagem terminam sempre como leitura de casa
de banho. O meu marido anda de botas e chapéu. Não há sol, mas aquele é o
chapéu da jardinagem. Também as calças dobradas na canela e as botas. Agradeço
a Deus pela jardinagem. Obrigado, Senhor, pela jardinagem. O meu marido precisa
de distracções. Não lhe chega a televisão, adormece. O meu marido é doente
cardíaco. O vidro da janela é grosso e eu ouço mal. Ouço bem um apito fininho,
constante, branco, uma linha, ouço mal tudo o resto. O vidro da janela, eu ouço
mal, mas sei que o meu marido está a assobiar. As pequenas plantas fazem-no
feliz.
Actualmente, o meu clitóris não é mais sensível do que
qualquer outra parte do meu corpo. É feito de pele, como os meus ombros,
cotovelos, joelhos. Creio que endureceu. Ainda é de tarde, são quase cinco
horas, mas já se sente o início da noite. Aqui, nos arredores de Reggensburg,
há pássaros que só aparecem a esta hora. Não sei porquê, alguém deve saber. São
pássaros pequenos que fazem barulho. No passado, o meu clitóris deu-me grandes
alegrias. Marcou o meu epicentro. Sou uma mulher, não deixei de ser uma mulher,
mas agora tenho outros interesses. Não sei ainda quais são. Talvez a mágoa.
Talvez a mágoa seja agora um dos meus interesses. Presto bastante atenção à
mágoa, é certo. Neste verão que terminou, parecia-me que a mágoa tinha um
cheiro entre os primeiros instantes de cada dia, uma nesga de luz matinal na
janela do quarto. O meu marido na cozinha, acordado há horas, as chávenas a
chocarem umas nas outras, e eu a decidir se estava acordada, se era outra
manhã, se queria outra manhã, acordar, e a parecer-me que a mágoa tinha um
cheiro. O meu marido nunca se apercebeu. O meu marido esqueceu-se de tocar-me
há talvez quinze, dezasseis anos, nunca mais se lembrou. Em Fevereiro, faço
setenta anos. Esta parte do ano, Outubro, ficou sempre ligada na minha cabeça
aos Outubros de quando era adolescente e ia para a escola. Na minha imagem
mental dos meses, agora parece maio. Há cinco meses, em maio, eu ainda estava
chocada. Ontem, ao lavar-me, passei a mão pelo clitóris e, instintivamente,
admirei-me. Por instantes, pensei que pudesse ser uma verruga, um sinal, um
caroço.
Os arredores de Reggensburg têm asseio, os muros estão
sempre acabados de pintar. Temos vizinhos a boa distância. Gosto do vento,
mesmo daquele vento frio a meio do inverno. Reggensburg fica a cerca de 225
quilómetros de Amstetten. Nunca fiz essa viagem, nem para um lado e nem para o
outro. Quando saímos de Amstetten, fomos viver para Dortmund, ficámos lá dez
anos. Depois, fomos para Weimar, ficámos lá dois anos, até o meu marido se
reformar. Podíamos ter procurado casa em qualquer lado. O meu marido insistiu
na Baviera porque ficava perto da Áustria, acabamos por concordar com
Reggensburg. Quando pede alguma coisa, o meu marido gagueja. Às vezes dizia:
Amstetetetetetten. Sozinho, planeava fins-de-semana em Amstetten. Dizia:
vivemos cinco dos nossos melhores anos naquela cidade, porque não queres
voltar? Eu começava por negar que não quisesse voltar. Depois, inventava desculpas
sem tentar sequer fazer sentido. Não sei o que ele pensava de mim. Até podemos
ficar no teu hotel, dizia o meu marido, sem saber o que dizia. Literatura.
Adorava que o meu marido gostasse de ler. Tenho a certeza de que adoraria os
russos: Tolstoi, Dostoievski, Gogol. Ah, Gogol. Quando quis trabalhar, o meu
marido conseguiu-me uma posição a gerir uma pousada quase no centro de
Amstetten. Após uma semana de serviço, meados de Setembro, o Josef possuiu-me
na cama dupla do quarto 28.
Sempre usámos este verbo um pouco antigo, talvez um pouco
livresco, século XIX. Quando o Josef começava a rosnar, eu dizia-lhe:
possui-me, possui-me. Tenho de falar dos seus olhos azuis. Os olhos azuis do
Josef brilhavam, seriam suficientes para iluminar uma sala. Não estou a
exagerar. Ou talvez só um pouco. Quando o Josef me sorriu, me tratou por
menina, quando me apontou o olhar cheio de entoações, desfiz-me invisivelmente.
A partir daí, tratou-se de seguir um sentido. Às vezes, quando deixávamos cair
a cabeça sobre as almofadas da cama, eu ficava a fazer-lhe festas no pequeno
bigode colado aos lábios. Não era ridículo. Eu sorria, enquanto a nossa
respiração abrandava ao mesmo tempo. Depois, ele olhava para mim e sorria
também. O Josef sabia sorrir. À noite, o meu marido contava-me todos os
pormenores da vida dos seus colegas, mas eu não o ouvia. O Josef gostava de
sexo de pé. Eu inclinava-me na direcção da janela e ele ficava por trás,
apreciava a paisagem. Em certos assuntos, muitos, eu considerava o Josef um
poeta. Amstetten era uma cidade sem sobressaltos, as campainhas das bicicletas,
as estações do ano nos dias certos. O Josef tinha umas pernas firmes, que eu
gostava de apertar no interior das minhas.
Quando estava bom tempo, aos sábados, o meu marido e eu
fazíamos piqueniques. O Josef tinha cinquenta e oito anos, mais quatro do que
eu, e bastava que me tocasse com um dedo. Se nos cruzávamos na rua, eu tremia.
Ninguém podia suspeitar. Ele sorria sem olhar para mim. Uma vez, estava num
restaurante, e o meu marido perguntou-me: estás com frio? Era o Josef. Quando
ganhei coragem para olhar melhor, não era o Josef, não era sequer parecido, mas
tremi, não consegui controlar-me. Quando o Josef punha a cabeça no meio das
minhas pernas, eu fazia-lhe festas no cabelo. Havia semanas em que nos víamos
duas vezes, três vezes, havia semanas em que não nos víamos. Dependia de muitos
factores. Conheci o Josef quando tive aulas de dança, salsa. Estive em três
aulas. Depois de conhecê-lo, desisti. Deixei de ter tempo. Precisava de todos os
instantes para pensar nele.
O meu marido estava muito triste na noite em que me contou
que tínhamos de partir para Dortmund. Eu disse-lhe algumas frases inacabadas,
palavras incompletas. O meu marido disse: pois é. O meu marido nasceu na
Saxónia, a meia dúzia de quilómetros de Dresden e, no entanto, já tinha
adoptado um sotaque austríaco. Artificial, enjoativo, mas sentido. O meu marido
é obediente. O Josef tinha verdadeiro sotaque austríaco, claro. Os seus érres
davam-me tesão. Durante anos, eu corava só de lembrar-me dos seus érres. Nessa
noite, o meu marido tinha a cabeça entre as mãos, a realidade. Eu não podia
fazer outra coisa. Desde esse dia, até à partida, eu e o Josef comemo-nos como
animais, como lobos, em todas as camas da pousada. Engolimo-nos. Em Dortmund,
eu sonhava com ele. No duche. Em Weimar, comecei a conformar-me. Em Weimar,
tivemos uma cadela, Lassie. O meu marido apareceu com ela pequenina, quando
chegámos. Morreu uma semana antes de partirmos para Reggensburg, bem-educada.
Conformei-me que não voltaria a ver o Josef. Por isso, nunca quis voltar a
Amstetten. O Josef era um segredo para sempre. Havia momentos em que me parecia
que só tinha existido na minha imaginação, mas isso é algo que me acontece com
todo o passado. Há momentos em que me parece claramente que algum detalhe do
passado, a minha mãe, sexo oral quando namorava com o meu marido, sopa de
abóbora, só existiu na minha imaginação.
Eu não tinha qualquer fotografia do Josef. Mesmo já em
Reggensburg, havia vezes em que me sentava no sofá, de braços cruzados, a
esforçar-me para recordar o seu rosto. Quando não conseguia, ia à cozinha e
fazia panquecas. Era uma espécie de compensação e, ao mesmo tempo, um hábito.
Depois, noutros dias, via-o em tudo. Havia um calor. O rosto dele era como uma
chama. Tentei aprender a bordar. Via o rosto dele nos novelos de linha, no pano
esticado. Foi talvez por isso que, quando apareceu a imagem dele na televisão,
não me admirei logo. Acho que não gerei sequer um pensamento, não reagi.
Analisando, reconheço agora que a ordem dos meus instintos perante a sua imagem
seria não verbalizar. Foi com alguns segundos de atraso que me apercebi que o
Josef, o Josef, o meu Josef, estava na televisão. Não sei qual foi o meu
aspecto. Perdeu-se para sempre a imagem do meu rosto porque estava sozinha, não
estava ao espelho, estava em brasa, a ouvir. Eu não queria acreditar. Foi em
abril. Quando acordo a meio da noite com pesadelos, acredito por instantes que
posso sentir-me aliviada, que não é real, mas depois, acordada, o pesadelo é
ainda mais intenso porque é real. O Josef punha a língua toda dentro da minha
boca. Abril, abril, quando desliguei a televisão, cambaleei pela sala.
Agarrei-me a móveis para não cair. E pensei: não. Pensei: não. Até cheguei a
sorrir. Não pode ser. Em roupão, tirei o carro da garagem e fui comprar
revistas e jornais. Nenhum tinha a notícia. Liguei o rádio do carro e não
falavam de outra coisa. No dia seguinte, todos os jornais tinham a notícia.
O Josef tinha mantido a filha presa na cave durante vinte e
quatro anos. Tinha-a violado repetidamente e tinha tido sete filhos com ela, um
dos quais morreu. Na televisão e no rádio, chamavam-lhes filhos-netos. A filha
do Josef e alguns dos seus filhos-netos viviam na cave. Um deles, uma rapariga
com dezanove anos, nunca tinha visto o sol. Eu era obrigada a ouvir o meu
marido comentar esta história e a repetir: em Amstetten, quem diria em
Amstetten, e nós lá, quem diria. E perguntava-me se eu conhecia aquela rua. Eu
respondia. Já me tinha perdido naquela parte da cidade. Este ano, em abril,
choveu muito pouco. Tenho saudades de quando chovia em Abril. Eu fixava a
imagem do Josef na televisão e acreditava que os seus olhos líquidos me viam.
Não tinham envelhecido. Eram os mesmos. Os lábios eram os mesmos. O Josef traiu
o nosso segredo com o seu próprio segredo. Mas, agora, o seu segredo já não
existe, toda a gente o conhece. Agora, só existe o nosso.
José Luís Peixoto
Sem comentários:
Enviar um comentário