quinta-feira, 8 de maio de 2014

OUTROS CONTOS

O conto de hoje é uma homenagem de um amigo a outro amigo. Tudo se passou numa noite invernosa dos anos cinquenta do século passado. 

Em outro tempo, dois amigos desciam o Outeiro das Nozes...
Poet'anarquista

«Seduzindo a Morte», por Orson W. Calabrese

João Paulo Galhardas
Desenhos e Pinturas

141- «SEDUZINDO A MORTE»

Quando um homem se põe a pensar – tal como dizia o poeta – vêem-lhe à lembrança as mais recônditas recordações. Pessoas e imagens que já pensávamos pertencer ao mundo da ficção, quiçá da imaginação dos outros, tal o retrato que delas nos foi chegando. Quando pessoas e imagens que já não dominamos porque a bruma dos anos, dos caminhos e das lendas as enevoaram, surgem vivas e reais mesmo ao nosso lado, é inevitável que delas e com elas falemos. É verdade, há dias assim! 

Este escrito pretende ser uma homenagem ao homem que talvez, talvez não, com toda a certeza, mais influência exerceu sobre quem escreve estas linhas: O João Fitas. No entanto, para que o texto se torne compreensível, temos que recuar muitos anos e voltar ao fim da década de cinquenta do século passado quando, numa noite de invernia, já a hora ia adiantada, aqueles dois desciam o Outeiro das Nozes, bem encasacados, pois o frio era intenso, embora eles disso não se apercebessem, tal o entusiasmo que punham  na conversa. 

Em outro tempo...
João Fitas e João Regatão

Falavam em tom muito baixo porque, como todos sabemos, no Alandroal, as paredes sempre tiveram ouvidos, e o que era para dois não era para três. O João era um dos dois que desciam a ladeira. E divagava por um dos seus temas favoritos: A morte! Esse, era um assunto que o atraía e ao qual voltava com muita frequência. O mistério da morte fazia com que, da sua cabeça, saíssem as mais incríveis teorias. Nessa noite, dizia: «A morte, com toda a sabedoria da eternidade, pois ela é a única que não morre, muitas vezes apresenta-se de forma muito insinuante, muito atractiva, muitas vezes na figura de mulher bonita. Nessas alturas é preciso resistir-lhe, fazer-lhe frente, seduzi-la, de maneira a retardar o momento da partida.»

«Seduzindo a Morte»
JPGalhardas 

Conversa com pano para mangas, conforme estão vendo. E acabou já alta madrugada, inconcludente, como não podia deixar de ser. Houve, porém, uma palavra que  sempre recordarei: “seduzi-la“ . Seduzir a morte quando ela se apresentasse como mulher bonita. Ora o João era um sedutor. Em todos os aspectos. Desde logo, fisicamente: Alto, bonito, olhos claros, cabelos a raiar o louro nórdico, charmoso. E quando falava, raramente as mulheres lhe resistiam.

A doença do João foi terrível. Uma doença que rapidamente levava de viagem quem dela padecia. Mas também sei que o João deu muita luta. E sei isso porque, nessa fase, o acompanhei de muito perto. Visitava-o muito e até nos correspondíamos. Embora nessa correspondência o tema principal fosse a política, por vezes, a doença dele também vinha à baila. Sei que ele utilizou, na luta contra a morte, todos os seus recursos. Depois da sua partida, talvez para acalmar a dor da perda, sempre gostei de pensar, levando em conta a conversa que acima contei, que ele tinha seduzido a tal mulher bonita que o vinha buscar. E mesmo configurando a morte, porque resistiria essa mulher ao charme do João?  Seria a primeira! Estou até convencido que, depois de se enamorar dele, ela o levou para não o perder.

«BYE BYE LIFE»
ALL THAT JAZZ

É aqui que entra o cinema. Também para desanuviar a densidade deste escrito. E, também ainda, para eu me sentir mais aliviado por escrever estas palavras. O filme “All That Jazz “  (não me lembro do título em português), em que a morte é personificada por uma magnífica Jessica Lange, é a cópia quase fiel das teorias do João a respeito da vida e da morte.

E isso prova que, por esse mundo fora, o João não era o único a compartilhar essas inquietações. Termino com a sensação de ter dito mais do que devia e menos do que queria.

Orson W. Calabrese

(Um outro conto: Soneto para dois amigos)

O PRINCÍPIO DO FIM

Era um dia incerto, como outro qualquer
Eu já havia morrido muito tempo antes,
Ainda no ventre fecundo de uma mulher
Encontrava a morte em breves instantes.

A partir desse momento a morte seguia
Sempre a meu lado, marcando as horas,
Todos os passos que eu dava ela sentia
O tempo  passar sem grandes demoras.

E assim, certo dia abortou neste mundo
Mais outra vida com o destino marcado,
A morte às arrecuas em ventre fecundo;

Para onde quer que vá, vai  a meu lado
Não me deixa em paz nem um segundo,
Desde o princípio me traz bem guardado.

Solrac Agib

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