quarta-feira, 7 de maio de 2014

OUTROS CONTOS

«A Virago de Violeiros», por Aquilino Ribeiro.

Por aqui- «LITERATURA», sobre vida e obra do autor português.

«A Virago de Violeiros»
Conto de Aquilino Ribeiro

140- «A VIRAGO DE VIOLEIROS»

Foi Luís de Azevedo, «o sobrinho mariola, o sobrinho cachorro», empossado na Casa Grande por morte de Fernando de Mendonça. Ia fazer quarenta anos e era um homem vivido. Vivido e para viver. Atarracado, grosso de cinta, grosso de pescoço, orelhas bem pegadas aos temporais, cara cerdosa que amiúde corrigia pelo sorriso, à maneira da onda de sol que, passando sobre o alqueive de Inverno, o ilumina e humaniza, para regressar, desde logo, à catadura álgida que afivelou sua natureza. Nas comissuras, na própria face, havia entalhes ásperos em que se lia claramente a acta duma vida para a qual o mais blandicioso seriam talvez as febres do jogo e os muitos dias de ventre a dar horas. Apesar destes traços depressores e dos possíveis achaques ocasionais, sentia-se nele o homem de vontade, com estrutura de aço, para bater durante bons e rijos anos. A impressão geral, quando se observava de face e se colhia despreocupado do seu natural, era que se estava perante um teso reitre ou, melhor, um capitão de piratas ainda ao corso.

Todas estas circunstâncias induziriam, como não, Luís de Azevedo a considerar Romarigães como terra de Canaã. A Casa Grande revinha-lhe de direito, mas um direito torcido a seu favor pelo melhor dos fados. Em consequência tratou de cortar a talante. Sua tia D. Joana Angélica não quisera volver à casa onde não fora feliz e espectros amalandrados lhe enlutavam agora o panorama dos dias prósperos. Emparedou-se em Calheiros como uma penitente. Nunca ninguém mais a viu. Estava já entrada nos anos, murcha para as vaidades do mundo, não fazia favor nenhum especial.

Luís de Azevedo, a primeira vez que dormiu no quarto do solar em que tinham nascido e morrido três ou quatro gerações de Cunhas de Antas, não encontrou fantasmas. Pelo contrário, os olhos alongaram-se-lhe menos pelo panorama da vida vivida do que da vida a viver. Para certa classe de gente, a consciência é uma gaveta fechada de que se perdeu a chave. De modo geral o que lá está dentro não tem utilidade prática. Por isso, a Luís de Azevedo, um pouco desprecatado contra o frescor daquelas paredes de granito, duma grossura de fortaleza, com o tecto em masseira e artesões de carvalho medrado já na mata, a vida se pospunha como lousa de operações. Devia as orelhas e era forçoso pagar.

Alçapremado na herança do morgadio, desbaratara com a largueza de quem se não atemoriza perante nenhuma forma de liquidação. Com picadores e cómicas, ora em Lisboa, ora em Sevilha, e por toda a parte onde lhe acenava o fraldil da estúrdia, ganhara fama de pródigo, algibeira sempre recheada. Agora a matilha dos credores estava a chegar, e já ouvia os ladridos dos galgos mais adiantados. Como calar-lhes a boca? Não lhe sendo possível gravar de mais hipotecas as terras do vínculo, restava-lhe pôr com dono as alodiais, que eram poucas. Mas morgadio como o seu podia comparar-se a velha barcaça que meteria água se lhe bulissem nas cavernas. Desfalcá-lo tornava-se arriscado. Então como, santo Deus? Voltando-se e tornando-se a voltar na cama que lhe era estranha, aconchegando os cobertores contra o frio que porejavam as paredes, à força de consultar o travesseiro, acabou por receber uma inspiração exequível. Em Bravães havia uma senhora solteirona, pouco menos que durázia, tão rica que não sabia o que tinha de seu. Falava-se da Casa de Violeiros como do castelo da Triste-Feia. Poucos se gabavam de que descesse, para eles atravessarem, a ponte levadiça. E esses poucos vieram dizer, fosse embora aziúme de despeitados, que a fidalga tomava rapé como um cónego de Braga e todas as manhãs, ao levantar, matava o bicho a cálices de cachaça como qualquer lapuz de bofes incombustíveis. A essa hora a sua boca, por sinal com a melhor dentadura deste mundo, exalava baforada que ardia como o gás das minas, se lhe chegassem um lume-pronto. E havia mais. Tomada de fúria, a que parecia atreita no auge da carraspana, pegava dum estadulho e varria uma eira de malhões ou uma turma de cavadores se lhe refilassem. Quem houvesse de cometê-la para casamento teria primeiro que passar por uma prova de força e derrotá-la. Qual ela fosse, dependia do seu capricho ou da maré. Mas, em geral, era à luta romana que experimentava os pretendentes. Neste certame havia qualquer coisa de mítico e legendário, entre barraca de feira e castelo da Madorna, que arrefecia os mancebos tentados pela presença da solteirona, que era deleitável, e então com um dote de arregalar. Entortavam todos o nariz. 

Quem a levasse já sabia o que tinha pela proa:
em casa de Gonçalo mais pode a galinha que o galo, ou triste da casa onde a galinha canta e cala o galo.

– Hão-de ser mais as vozes que as nozes – disse para os seus botões, sempre aforismáticos e reflexivos.

A verdade é que acordou tentado pela aventura. E um daqueles dias, paramentado de calção de veludo, a casaca do tio, depois de adaptada ao seu cadáver pelo alfaiate de Insalde, verde-mar com botões amarelos, camisa de tufos, cabelo encalamistrado, avançou afoitamente para a virago de Violeiros, de seu nome Silvana Sousa de Meneses, como Édipo para a esfinge. Não eram primos?

Que mais não fosse, havia coisa mais curial que render-lhe homenagem e reatar as relações de boa vizinhança que vinham do licenciado Gonçalo da Cunha?

D. Silvana andava para a eira no enceleiramento do milho de sequeiro. Na altura estavam a erguê-lo. Uma serva largava-o ao sabor da aragem, peneirado duma cesta, às duas mãos acima da cabeça. E o milho caía para o monte, num jorro manso de cascata, acogulando-se e tilintando. D. Silvana, de cócoras, chamiça de giesta em punho, coanhava, apartando do grão reluzente o cisco envolto da debulha.

Luís de Azevedo parou à entrada da cancela. Silvana tinha moinha nas sobrancelhas e nos cabelos. Estava em trajo de cote, chambre de chita de ramagens, lenço para os ombros e botas brancas de bezerra. Em despeito da paisanaria, descerrava um ar capitoso e luculento de deusa Ceres, nada temível quanto a objecto de adoração.

– Quem procura Vossa Mercê? – proferiu, voltando-se sobre a ilharga e encarando-o.

– Procuro a senhora D. Silvana – respondeu ele, não fosse por lá enganar-se de pessoa.

– Sou eu. Já o atendo. Tem de esperar um bocadinho que se acabe de erguer o milho e se recolha. Vejo além umas carantonhas de nuvens e estou com medo que se ferre a chover.

Luís de Azevedo acedeu com a vénia mais prazenteira deste mundo, mas para consigo dizia na linguagem que lhe era peculiar: É-te bem feita, Luís! Tens para peras. A ninfa é que não parece tão peca como dizem. E que rico enxergão!

Foi um dia de glória na capela de N.ª S.ª do Amparo, esse em que o P.e José Mourinha, pároco aposentado da Cunha que sucedera na casa ao P.e Hipácio Leborinho – o melhor dos capelães se não fora as almorreimas e uma figadeira impossível que lhe azedava os dias – celebrou o auspicioso matrimónio. O digno homem morrera dobrado sobre o papel a aparar a pena de pato para uma homilia.

Paz à sua alma de levita, para quem o supremo gozo era um prato de sardinhas assadas com uma litraça de verde! Vieram os zés-pereiras de todo o Alto Minho e quantos ranchos ramalhudos de lavradeiras batiam o saricoté na beira-mar.

Comeram-se duas fornadas de pão, os presuntos e chouriços de três cerdos, e beberam-se mais de vinte almudes. O boticário de Paredes gastou quanta arnica tinha nos boiões a consertar as cabeças rachadas no varrer do bródio. Dois abades estiveram às portas da morte, fulminados de congestão. O P.e Mourinha desforrou-se nas almôndegas da dieta hídrica que aguentara no Seminário de Braga, dieta essa que contribuíra para lhe escangalhar a máquina, de colaboração com as rijas pançadas de broa rural rilhadas a paroquiar Corno de Bico. Luís de Azevedo conseguira um empréstimo de certa monta; 
a consorte afluiu com avultadíssimos cabedais e não se olhou a gastar.

A Casa Grande em poucas semanas estava expurgada de dívidas e hipotecas; recuperadas as terras, que, embora anexas ao morgadio, não faziam parte do vínculo. Ao mesmo tempo renovou os soalhos do solar; ergueu os muros caídos ou desmantelados; captou águas extraviadas; fez, em demais, nas duas Portelas, a aquisição de uns rossios encravados nos da Casa. Uma década decorrida, Luís de Azevedo, para empregar a palavra dum rendeiro, fizera da Casa Grande um brinquinho. Podia, ao mesmo tempo, subir por oiro para a cama. Para cúmulo, sua mulher D. Silvana saíra meiga e macia como o veludo. Em agradecimento a Deus e modo de lhe exprimir a sua devoção, levou-a a Guadalupe. Era lá no cabo do mundo, e depois de voltas e reviravoltas, seges, estalagens, comidas lápidas, mas que não iam ao seu paladar, regressou a casa radiante e exalçada como fada ao seu bosque. Havia lá alguma coisa que valesse o remanso da Quinta do Amparo?!

Aquilino Ribeiro

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