quarta-feira, 28 de maio de 2014

OUTROS CONTOS

«Serão», por Baltasar Lopes.
«Serão»
Família Adolfo Pinto, por Almeida Júnior

160- «SERÃO»

A noite tinha para nós o atractivo das histórias. Depois da ceia, mamãe arrumava tudo e lavava a cara a Lela e Nanduca. Já não havia o receio de sairmos para a cabritagem da rua. Àquela hora tolhia-nos o medo do escuro… Tudo arrumado e rezadas as orações, mamãe e mamãe velha iam sentar-se na salinha, onde já estávamos, acomodados em bancos. A casa enchia-se de meninos. A nossa imaginação vivia apaixonadamente no mundo variado que as histórias criavam. Acaçapado ao pé de mamãe velha, o Baluca também fazia parte do serão, de orelhas caídas e cabeça pensativa, como se estivesse recordando as roncações da sua mocidade com as cadelinhas levianas que lhe davam trela.

Grande contadeira de histórias era Nhá Rosa Calita, velha pretona a quem os rapazes trocistas chamavam Camões, por lhe faltar um olho em virtude de pau-de-finado mal curado. E que lábia que ela tinha! Era um gosto ouvir-lhe referir aqueles casos todos, contos de meninos presos, a engordar, dentro de caixas grandes, por velhas feiticeiras, pastorinhos que casavam com a filha do rei, rapazotinhos sabidos que tinham enganado Aquele Homem – pelo sinal da Santa Cruz – e as demoniarias das feiticeiras que iam ao Esponjeiro tomar ordens do seu chefe, um diabo trocista, de cara descarada, e depois saíam, transformadas em bichos, a agoirentar a vida da criatura.

História, história!
Fartura do Céu, ámen!

― Era uma vez uma princesa que andava a correr mundo à procura de Passo-Amor, seu noivo, mas para o alcançar tinha de furar a sola a sete sapatos de ferro:

Acorda, Passo-Amor,

há mil léguas em procura de ti…

Chegou a casa da mãe do vento, e esta escondeu-a dentro de um cancarã. Entrou o filho, muito malcriado, com grande barulho, catã, catã, e disse:

― Aqui cheira-me a sangue real…

Nós todos queríamos mais e mais histórias. A ouvir Nhá Rosa Calita o sono fugia-nos totalmente…

― Certa ocasião havia grande fome na terra. Desde dois anos o mês de Outubro não dera pinga de água para refrescar a planta, já amorrinhada do léu-léu escasso de Setembro. Um homem de Fajã de Baixo vivia na sua casinha com duas filhas, já raparigas, na vida castigada da pobreza. Vocês sabem, pobre é como cama de chão, todos lhe passam por cima. Um dia, assim que os galos deram a última pousa (tinham dormido sem cear), saiu com as filhas a furar a vida onde Deus fosse servido de mostrar a Sua misericórdia. Andou, andou, passou a Assomada do Mancebo, e ali em direitura de Fragatinha encontrou grande estendal de batata conteira num fundo de quebrada. Encheram os balaios, mas o homem, com a voz cheia de respeito, recomendou às filhas:

― Oh, minhas filhas, vocês não dêem a ninguém conta desta senhora comida!

E seguiam os pormenores da história, em que a humildade e a modéstia eram premiadas com um saco de dinheiro e a cobiça arrogante era castigada com um açoite de pau de tamarindo.

Mamãe velha dormitava na cadeira de balanço, pois, além de ser já pessoa antiga e ter o corpo queixoso, levantava-se logo assim que os galos davam a última pousa, no alvor nascente da antemanhã. Mamãe, essa, entretinha-se na sua renda de duas agulhas, cuja perfeição de acabado era muito gabada pelas menininhas luxentas da vila. Mas nós, os garotos, ficávamos despertos, de sentido cegueirado nas histórias…

Baltasar Lopes

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