terça-feira, 10 de junho de 2014

OUTROS CONTOS

(Peças Soltas no Interior da Circunferência)

«Março de 1940», por Eveline Sambraz.

«Março de 1940»
A Carta, por Pierre Bonnard

174- «MARÇO DE 1940»

Carta enviada por Guadalupe a seu irmão Rufino, em Março de 1940, do campo de refugiados de republicanos espanhóis, nos arredores de Perpignan, França.

“Querido Mano Velho“

“Há meses que ando para dar notícias, mas hoje por um motivo, amanhã por outro, e noutros dias por completa impossibilidade de o fazer, foi passando o tempo, e a carta com as notícias que eu sei que vocês esperam acabou por ir sendo adiada. Mesmo agora, com a entrada da França na guerra, e com todos os serviços desorganizados, nomeadamente os postais, não tenho a certeza que o que escrevo vos chegue às mãos. Para vosso sossego, se chegarem a ler esta carta, devo desde já dizer que tanto eu como o Santiago nos encontramos bem de saúde. Estamos num campo de refugiados que os franceses montaram na região de Perpignan para dar guarida à enorme massa de espanhóis que não cessam de fugir do seu país, embora a guerra civil já tenha terminado há quase um ano. Sei que muitos dos refugiados que aqui chegaram, logo após o fim da guerra, já voltaram para Espanha, mas começou a circular a notícia que mal punham o pé no seu país eram presos ou fuzilados, e isso fez com que muitos outros que também tencionavam regressar, o não fizessem com receio que lhes acontecesse o mesmo. Não é o nosso caso. Nós não tencionamos regressar a Espanha... nem a Portugal. Dizem-me que em toda esta região, junto à fronteira espanhola, existem dezenas de campos de refugiados que no total albergam centenas de milhares de pessoas.  O governo francês, após a entrada da França na guerra contra a Alemanha, propôs aos espanhóis dos campos de refugiados, que integrassem as fileiras francesas, alistando-se na Legião Estrangeira. O Santiago sentiu que era uma maneira de tirar desforra das barbaridades que os alemães tinham cometido no seu país quando ajudaram os nacionalistas a vencer a guerra civil. Nada lhe daria mais satisfação do que combatê-los, mesmo que sob a bandeira francesa. Depois de muito termos falado sobre o assunto e pesado as consequências, passou pelo centro de alistamento instalado no campo de refugiados, e à noite, quando chegou à nossa tenda, já trazia a guia de marcha para se apresentar em Carcassonne a fim de receber instrução militar. Foi hoje para lá. Estás a ver, mano velho, como um poeta se transforma em guerreiro!?“

“Eu estou a trabalhar numa das cozinhas do campo de refugiados. A direcção do campo aproveitou o facto de eu falar francês sem qualquer sotaque e colocou-me aqui. Por enquanto vou ficar assim, mas, segundo me disseram, os franceses tencionam mobilizar também as mulheres dos campos de refugiados para os serviços auxiliares do exército, parece-me que para o serviço de ambulâncias e enfermagem. Se assim for, serei imediatamente voluntária. Não te zangues. Parece-me estar a ver-te... dando grandes passadas sobre as velhas lajes de xisto da nossa cozinha... e a coçar a barba que, como é hábito em ti, deve estar por cortar. Explica bem toda esta situação à mana Rosário, dá-lhe a carta a ler, a ela e ao mano João António. Eu sei que tu entendes o que estou fazendo, e que até sentes orgulho nesta tua irmã.“

“Nesta pressa de te explicar os meus projectos, até me esqueci de contar como aqui chegámos. Ao contrário da maioria dos refugiados, nós chegámos por via marítima. Depois de estarmos com os pais do Santiago, em Granada, e depois dele se certificar que não estavam a ser perseguidos nem incomodados pelos franquistas, o que não admira, pois o Santiago fora para Madrid muito jovem e nunca os informara  do seu entusiasmo com a República, nem do companheirismo com Federico Garcia Lorca, e muito menos das responsabilidades que assumira no grupo de teatro “La Barraca“, assim como nunca lhes dissera que pertencia às tertúlias dos jovens intelectuais madrilenos que assumiram com toda a frontalidade o apoio à Frente Popular.“

“De Granada fomos para Valência e conseguimos embarcar num barco de pesca que nos deixou no pequeno porto francês de Canet-Plage. Deixou-nos a nós e a cerca de cinquenta refugiados mais, que estavam em situação semelhante à nossa.“

“Querido mano velho, vou terminar aqui esta carta. Prometo escrever outra em breve. Desta vez não irei estar tanto tempo sem dar notícias. Recebam o meu imenso amor e o carinho. E o pedido do vosso perdão por todos os sobressaltos que vos tenho causado.”

“Beijos para todos da mana Guadalupe.”

Perpignan, 31 de Março de 1940.

Eveline Sambraz

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