segunda-feira, 9 de junho de 2014

OUTROS CONTOS

(Peças Soltas no Interior da Circunferência)

«Novembro de 1939», por Eveline Sambraz.

«Novembro de 1939»
O Longo Adeus, por Brent Heighton

173- «Novembro de 1939» 

Naquela manhã do mês de Novembro de 1939, fria e chuvosa, cerca das oito horas da manhã, na Plaza Mayor de Badajoz, junto ao local de que habitualmente partia a camioneta da linha de transportes  “La Estelleza“, dois vultos aguardavam abrigados debaixo dum grande guarda-chuva. Eram um casal. Homem e mulher. Estavam bem agasalhados e parecia que se preparavam para fazer uma longa viagem pois tinham com eles duas grandes malas que rebentavam pelas costuras, atadas por baraços que reforçavam a segurança dos fechos. Eram Guadalupe Potra e Santiago Grazina.

Santiago era um refugiado da Guerra Civil Espanhola que tinha sido, em 1938, recolhido e protegido pela família de Guadalupe quando passara a salto a fronteira entre os dois países. Durante o último ano vivera escondido no Monte do Meio, ali nas proximidades das Hortinhas, participando nos trabalhos do campo e enamorando-se de Guadalupe. Esta, que correspondia a esse amor, quando Santiago manifestou vontade de regressar a Espanha, falou com os irmãos, e disse-lhes que o acompanharia, de nada valendo as advertências destes em relação à situação que se vivia no país vizinho e dos perigos que isso implicava. A guerra tinha terminado apenas há uns meses e a perseguição aos partidários da segunda republica espanhola, que acabava de ser deposta, continuava a fazer-se com muita ferocidade. Os ajustes de contas eram diários, as prisões estavam cheias e todos os dias havia notícias de execuções por fuzilamento. Todos estes argumentos não conseguiram demover Guadalupe de acompanhar Santiago.

Em face da obstinação de Guadalupe, não restou aos irmãos outra alternativa que não fosse utilizar, eles próprios, toda a sua experiência naquelas andanças e pôr em movimento a estrutura em que tinham participado nos últimos anos, salvando algumas dezenas de vidas de fugitivos do fascismo, assim como todos os conhecimentos que uma vida inteira de contrabandistas lhes tinha proporcionado. Aliás, todos sabiam que esse era o destino de Guadalupe. Quando verificaram que ela correspondia aos sentimentos de Santiago, expressos todos os dias, duma forma bem clara, e quando ela se mudou para o quarto dele, dizendo que tinha encontrado o seu homem, ficou entendido por todos, que aqueles dois estavam para sempre ligados. O fado de um, seria o fado do outro.

Assim, munidos de vistos e documentos falsos, que os davam como um casal de espanhóis em visita a parentes que tinham em Sevilha, esperavam agora pela camioneta de carreira da linha que fazia a ligação entre Badajoz e aquela cidade. Verdade seja dita, não fora fácil a obtenção dos vistos e dos documentos. Isso só fora possível devido aos contactos que os Rodriguez Potra tinham cimentado ao longo dos anos, e à disponibilidade que sempre, durante toda a guerra civil espanhola, tinham demonstrado no auxílio aos refugiados políticos. Existia já uma estrutura clandestina, junto à fronteira, que os resistentes espanhóis e alguns portugueses tinham montado, e que iria resistir e aguentar-se durante os longos consulados franquista e salazarista. O próprio motorista da camioneta pertencia a essa estrutura e iria guiá-los e protegê-los durante a viagem, até os entregar, em Sevilha, a outro companheiro que por sua vez os encaminharia em segurança.

E lá partiram, depois de olhares cúmplices, trocados entre eles e o motorista, e é agora, por volta da entrada da camioneta na Andaluzia, quando os limites destas peças soltas no interior  da circunferência terminam, que nós os deixamos também.

Iremos encontrá-los mais tarde, noutros capítulos deste relato. Primeiro, num campo de refugiados espanhóis no sul de França. Depois, já durante a 2ª Guerra Mundial, Santiago irá combater nas fileiras das tropas da França Livre, sob o comando do general Charles de Gaulle, e por fim, ocupará o posto de sargento na Legião Estrangeira Francesa, estacionada na Argélia. Mais tarde ainda, tomará o partido dos independentistas daquela colónia francesa do norte de África e festejará os acordos de Envian, em 1962, que darão a independência a Argel.

Quanto a Guadalupe, lutará contra a ocupação alemã da França, integrada na resistência francesa, e de tal forma se destacará que, no fim da guerra, será agraciada com a Legião de Honra pelo governo francês.

Eveline Sambraz

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