quinta-feira, 11 de setembro de 2014

OUTROS CONTOS

«Coisas», por D. H. Lawrence.
«Coisas»
Sem Título, por D. H. Lawrence

264- «COISAS»

Eram dois verdadeiros idealistas da Nova Inglaterra. Mas isto foi há algum tempo: antes da guerra. Uns anos antes da guerra, encontraram-se e casaram: ele, um jovem alto, de olhos perspicazes, natural de Connecticut; ela, uma jovem de Massachusetts, pequenina, recatada, com um aspecto de puritana. Ambos tinham algum dinheiro, mas não muito. Mesmo em conjunto, não dava três mil dólares por ano. Contudo, eram livres. Livres! 

Oh! a liberdade! Ter a liberdade de viver como se quer! Ter vinte e cinco e vinte e sete anos, um par de verdadeiros idealistas, com mútuo amor da beleza, inclinação para «o pensamento hindu» - quer dizer, Mrs. Besant - e um rendimento um pouco inferior a três mil dólares por ano! Mas para que é o dinheiro? Tudo o que se quer é viver uma vida cheia e bela. Evidentemente, na Europa, na fonte da tradição. 

Poderia também ser na América; na Nova Inglaterra, por exemplo. Mas à custa duma certa dose de «beleza». A verdadeira beleza leva muito tempo a amadurecer. O barroco é apenas meio belo, meio amadurecido. Não, a verdadeira flor de prata, o verdadeiro ramo de ouro aromático da beleza teve as suas raízes na Renascença, não em qualquer outro período mais recente ou superficial. 

Por conseguinte, os dois idealistas, que casaram em New Haven, partiram imediatamente para Paris: a Paris dos velhos tempos. Tinham atelier no Boulevard Montparnasse, e tornaram-se verdadeiros parisienses, no velho, delicioso sentido da palavra, não no moderno, grosseiro. Era na aurora dos impressionistas puros, Monet e os seus discípulos, o mundo visto em termos de pura luz, luz directa e indirecta. Que belo! Que belas as noites, o rio, as manhãs nas velhas ruas, e junto às tendas das floristas e dos livreiros, as tardes no alto de Montmartre ou nas Tulherias, as noites nos boulevards. 

Pintavam ambos, mas não com furor. Nem a arte os dominava, nem eles dominavam a arte. Pintavam: nada mais. Tinham conhecimentos - conhecimentos distintos, quando possível, muito embora tivesse de se aceitar duma coisa e doutra. E eram felizes. 

Contudo, dir-se-ia que os seres humanos têm de firmar as garras em qualquer coisa. Para sermos «livres», para «vivermos uma vida cheia e bela», é necessário, ai de nós!, agarrar-mo-nos a qualquer coisa. Uma «vida cheia e bela» significa a adesão firme a qualquer coisa pelo menos, assim acontece com todos os idealistas - porque, de contrário, sobrevém o tédio. Há um certo acenar de tentáculos para o ar, como acontece com as gavinhas acenantes, tacteantes da vide que se estendem e enroscam, procurando qualquer coisa a que se agarrem, qualquer coisa a que trepem, em procura do necessário sol. Quando não encontra nada, a vinha apenas rasteja sobre o solo, não chegando a realizar-se plenamente. Tal é a liberdade! - o agarrar-se à estaca que convém. E os seres humanos são todos vides. Mas especialmente o idealista. Este é uma vide que necessita de se agarrar e de trepar, desprezando o homem que é uma simples batata, um simples nabo ou pedaço de madeira. 

Os nossos idealistas eram espantosamente felizes, mas estavam a todo o momento vendo se alcançavam qualquer coisa com que se conformassem. A princípio, Paris bastou. Exploraram Paris exaustivamente. Aprenderam o francês até quase se sentirem franceses, tão fluentemente o falavam. 

Todavia, sabeis, nunca chegamos a falar francês com a nossa alma. É coisa impossível. E muito embora seja emocionante, a princípio falar em francês a franceses ilustrados, contudo com o decorrer do tempo (eles parecem exceder-nos tanto em ilustração!), senti-mo-nos insatisfeitos. O materialismo dos franceses, duma infinita justeza, deixa-nos frios, ao cabo, dá-nos uma sensação de esterilidade e incompatibilidade com o saber profundo da Nova Inglaterra. Foi isto o que os nossos dois idealistas sentiram. 

Afastaram-se da França - mas sempre duma maneira cortês. A França desiludira-os. - Nós a amamos, e aproveitamos muito com ela. Mas, passado certo tempo, passado bastante tempo, de fato alguns anos, Paris deixa-nos uma sensação de desapontamento. Não possui bem aquilo de que necessitamos. 
- Mas Paris não é a França. 

- Não, talvez não seja. A França é bastante diferente de Paris. E a França é adorável - bastante adorável. Mas para nós, muito embora a amemos, não nos satisfaz por completo. 

De forma que, quando veio a guerra, os idealistas mudaram para a Itália. E amaram a Itália. Acharam-na bela, e mais apaixonante que a França. Parecia muito mais perto da concepção da beleza da Nova Inglaterra: qualquer coisa de puro e cheio de simpatia, sem o materialismo e o cinismo dos franceses. Os dois idealistas pareciam respirar na Itália o seu verdadeiro ar natal.

E na Itália, muito mais do que em Paris, sentiram que podiam vibrar com os ensinamentos de Buda. Penetraram na corrente avassaladora da moderna emoção budista, leram livros, entregaram-se à meditação e lançaram-se decididamente à tarefa de eliminar das suas próprias almas a cobiça, a dor e o sofrimento moral. Não compreenderam, contudo, que a própria preocupação de Buda de se libertar da dor e do sofrimento moral é em si uma espécie de cobiça. Não, eles sonhavam com um mundo perfeito, de que fossem eliminadas toda a cobiça, quase toda a dor e uma grande parte do sofrimento moral. 

Mas a América entrou na guerra, de forma que os dois idealistas tinham de a ajudar. Trabalharam num hospital. E muito embora a sua experiência os fizesse compreender mais do que nunca que a cobiça, a dor, e o sofrimento moral deviam ser eliminados do mundo, não obstante, o budismo ou a teosofia não emergiu muito triunfante da longa crise. De qualquer forma, em qualquer parte, em qualquer parte de si próprios sentiam que a cobiça, a dor e o sofrimento moral nunca seriam eliminados, porque a maior parte das pessoas não se preocupa com eliminá-los nem se preocupará nunca. Os nossos idealistas eram demasiado ocidentais para pensarem em abandonar todo o mundo à condenação, enquanto os dois se salvavam a si próprios. Eram excessivamente abnegados para se sentarem debaixo duma árvore, numa atitude rígida, e atingirem o Nirvana apenas os dois. 

Contudo, havia mais do que isso. Era que não tinham nádegas suficientemente carnudas para se instalarem debaixo duma árvore bho e atingirem o Nirvana contemplando qualquer coisa, e menos que tudo o seu próprio umbigo. Se todo o vasto mundo fosse salvo, eles, pessoalmente, não se preocupariam em salvar-se apenas a si próprios. Não; sentir-se-iam tão solitários! Eram naturais da Nova Inglaterra, de forma que tinha de ser tudo ou nada. A cobiça, a dor e o sofrimento moral, ou seriam eliminados de todo o mundo, ou então, de que servia eliminarem-nos de si? Não servia de nada absolutamente! Transformar-se-iam apenas em vítimas. 

De forma que, muito embora ainda amassem o «pensamento hindu» e se enternecessem com ele, bem (para voltarmos à nossa metáfora) a estaca a que as verdes e ansiosas vides tinham trepado, revelava-se agora inteiramente podre. Quebrou, e as vides vieram vagarosamente caindo até ao chão. Não houve queda brusca. As vides mantiveram-se no ar, graças à sua folhagem, durante um certo tempo. Mas abateram. O esteio do «pensamento hindu» cedera, antes que os dois tivessem saltado do seu topo para um mundo novo. 

Caíram no chão com um rumor lento. Mas não fizeram ruído. Ficaram de novo «desapontados». Mas nunca o confessaram. O «pensamento hindu» tinha-os deixado cair por terra. Mas nunca o lamentaram. Nem mesmo disseram nunca uma palavra um ao outro. Estavam desapontados, vagamente, mas profundamente desiludidos, e ambos o sabiam. Mas esse saber era tácito. 

Tinham ainda tanto com que contar na sua vida! Tinham ainda a Itália, a cara Itália. Tinham ainda a liberdade, esse tesouro inestimável. E tinham ainda tanta «beleza»! Quanto à plenitude da vida é que não tinham tanta certeza. Tinham um filhinho a quem amavam como os pais devem amar os filhos, mas evitavam sabiamente prender-se apenas a ele, edificar as suas vidas sobre a dele. Não, não. Tinham de viver a sua própria vida! Possuíam ainda suficiente vigor mental para o saberem. 

Mas já não eram muito novos. Os vinte e cinco e os vinte e sete anos tinham dado lugar a trinta e cinco e trinta e sete. E, muito embora tivessem vivido uma temporada maravilhosa na Europa, muito embora amassem ainda a Itália - a cara Itália! - contudo, estavam desapontados. Tinham extraído dela uma forte dose de prazer; oh, muitíssimo prazer, na verdade! Porém, ela não lhes tinha dado tudo, tudo o que tinham esperado. A Europa era bela, mas estava morta. Viver na Europa era o mesmo que viver no passado. E os Europeus, com toda a sua atracção superficial, não eram realmente atraentes. Eram materialistas, não tinham verdadeira alma. Não compreendiam os anseios mais íntimos do espírito, porque os anseios mais íntimos tinham morrido neles, que eram agora meras sobrevivências. Esta era a verdade relativamente aos Europeus: eram sobrevivências, incapazes de caminhar para a frente. 

Era outra estaca de feijoeiro, outro suporte de vinha que abatia sob a vida verde da videira. E bastante amargo isso foi, desta vez. Porquanto, pelo velho tronco da Europa a verde videira tinha ido trepando silenciosamente durante mais de dez anos, dez anos imensamente importantes, os anos da verdadeira vida. Os dois idealistas tinham vivido na Europa, vivido da Europa, da vida europeia e das coisas europeias, como as vides de um parreiral perpétuo.

Tinham construído ali o seu lar, um lar como nunca se poderia ter construído na América. A sua palavra de ordem tinha sido «a beleza». Tinham alugado, durante os últimos quatro anos, o segundo andar dum velho palazzo sobre o Arno, e ali tinham todas as suas «coisas». E o seu appartement proporcionava-lhes uma profunda satisfação; as elevadas e silenciosas salas antigas, com janelas sobre o rio, com brilhantes soalhos duma madeira vermelho escura, e as magníficas mobílias que os idealistas tinham coleccionado. 

Sim, sem que eles próprios dessem por isso, as vidas dos idealistas haviam corrido horizontalmente, com uma rapidez vertiginosa, durante todo este período. Haviam-se tornado dois ferozes caçadores de «coisas» para o seu lar. Enquanto as suas almas trepavam para o sol da velha cultura europeia ou do velho pensamento hindu, as suas paixões corriam horizontalmente, agarrando-se às «coisas». Claro que não compravam as coisas pelas coisas, mas sim pela «beleza». Consideravam a sua casa como um lugar inteiramente guarnecido pela beleza, e de forma alguma por «coisas». Valéria tinha umas cortinas encantadoras nas janelas da extensa salotta que dava sobre o rio: cortinas dum esquisito tecido antigo que parecia uma seda finamente bordada, cujos tons magníficos iam do vermelho, do alaranjado, do dourado e do negro, a um puro e suave fulgor. Era raro Valéria entrar na salotta sem cair de joelhos mentalmente perante as cortinas. 

- Chartres! - dizia. - Para mim são Chartres. 

E MelvilIe nunca se voltava para a sua estante veneziana do século XVI, com as suas duas ou três dúzias de livros escolhidos, sem estremecer até à medula dos ossos. Era o santuário dos santuários! 
O filho evitava silenciosamente, quase supersticiosamente, ter qualquer contacto rude com estes vetustos monumentos de mobiliário, como se fossem ninhos de cobras adormecidas, ou essa «coisa» perigosíssima de se tocar que é a Arca da Aliança. O seu terror infantil era silencioso e frio, mas definitivo. 

Contudo, um casal de idealistas da Nova Inglaterra não pode viver meramente da glória passada do seu mobiliário. Pelo menos, aquele casal não podia. Acostumaram-se ao maravilhoso guarda-louça de Bolonha, acostumaram-se à esplêndida estante veneziana, aos livros, às cortinas e bronzes de Sena, e aos belos sofás, aparadores e cadeiras que tinham coleccionado em Paris. Oh, andavam a coleccionar coisas desde o primeiro dia em que desembarcaram na Europa. E continuavam ainda. É o último interesse que a Europa pode oferecer a um estranho, ou mesmo a um europeu. 

Quando os Melville recebiam visitas, e estas vibravam em face dos seus interiores, então Valéria e Erasmo sentiam que não tinham vivido em vão, que ainda viviam. Mas nas longas manhãs em que Erasmo trabalhava enfastiadamente na literatura da Renascença florentina e Valéria cuidava do arranjo da casa, nas longas horas depois do almoço e nos longos e, em regra, frigidíssimos e penosos serões do velho palazzo, então dissipava-se o halo que envolvia o mobiliário, e as coisas transformavam-se em coisas, em pedaços de matéria, colocados aqui, suspensos além, ad infinitum, e que nada diziam. Então Valéria e Erasmo chegavam ao ponto de quase os odiarem. O fulgor da beleza, como todo o outro fulgor, esmorece se não é alimentado. Os idealistas amavam ainda entranhadamente as suas coisas. Mas tinham-nas adquirido. E a verdade é que as coisas que brilham vividamente en quanto as adquirimos, tornam-se completamente frias passado um ano ou dois. Claro que excepto se essas coisas são muito invejadas e os museus anseiam por adquiri-las. Mas as «coisas» dos Melville, embora muito boas, não eram tão boas como isso. 

Dest'arte, foi esmorecendo gradualmente o fulgor de todas as coisas, da Europa, da Itália - «os Italianos são caros» - até mesmo do maravilhoso appartement moderno. É certo que valia a pena ouvir: - Ora, se eu tivesse uma casa destas, nunca, nunca me apetecia sair à rua! É tão agradável e bela! 

E contudo Valéria e Erasmo saíam à rua; saíam mesmo à rua para se libertarem do seu silêncio antigo, feito de soalhos frios e pesadas pedras, da sua morta dignidade. 

- Estamos vivendo do passado, sabes, Dick? - disse Valéria para o marido. (Chamava-lhe Dick). Arrastavam-se penosamente. Não queriam dar-se por vencidos. Não gostavam de admitir que estavam fartos. Fazia agora doze anos que eram pessoas «livres», vivendo uma «vida cheia e bela». E a América tinha sido durante doze anos o seu anátema, a Sodoma e Gomorra do materialismo industrial. 

Não é fácil confessar que se está «farto». E eles detestavam admitir que queriam regressar. Mas por fim, relutantemente, decidiram ir, «por causa do filho».

Tinham construído ali o seu lar, um lar como nunca se poderia ter construído na América. A sua palavra de ordem tinha sido «a beleza». Tinham alugado, durante os últimos quatro anos, o segundo andar dum velho palazzo sobre o Arno, e ali tinham todas as suas «coisas». E o seu appartement proporcionava-lhes uma profunda satisfação; as elevadas e silenciosas salas antigas, com janelas sobre o rio, com brilhantes soalhos duma madeira vermelho escura, e as magníficas mobílias que os idealistas tinham coleccionado. 

Sim, sem que eles próprios dessem por isso, as vidas dos idealistas haviam corrido horizontalmente, com uma rapidez vertiginosa, durante todo este período. Haviam-se tornado dois ferozes caçadores de «coisas» para o seu lar. Enquanto as suas almas trepavam para o sol da velha cultura europeia ou do velho pensamento hindu, as suas paixões corriam horizontalmente, agarrando-se às «coisas». Claro que não compravam as coisas pelas coisas, mas sim pela «beleza». Consideravam a sua casa como um lugar inteiramente guarnecido pela beleza, e de forma alguma por «coisas». Valéria tinha umas cortinas encantadoras nas janelas da extensa salotta que dava sobre o rio: cortinas dum esquisito tecido antigo que parecia uma seda finamente bordada, cujos tons magníficos iam do vermelho, do alaranjado, do dourado e do negro, a um puro e suave fulgor. Era raro Valéria entrar na salotta sem cair de joelhos mentalmente perante as cortinas. 

- Chartres! - dizia. - Para mim são Chartres. 

E MelvilIe nunca se voltava para a sua estante veneziana do século XVI, com as suas duas ou três dúzias de livros escolhidos, sem estremecer até à medula dos ossos. Era o santuário dos santuários! 
O filho evitava silenciosamente, quase supersticiosamente, ter qualquer contacto rude com estes vetustos monumentos de mobiliário, como se fossem ninhos de cobras adormecidas, ou essa «coisa» perigosíssima de se tocar que é a Arca da Aliança. O seu terror infantil era silencioso e frio, mas definitivo. 

Contudo, um casal de idealistas da Nova Inglaterra não pode viver meramente da glória passada do seu mobiliário. Pelo menos, aquele casal não podia. Acostumaram-se ao maravilhoso guarda-louça de Bolonha, acostumaram-se à esplêndida estante veneziana, aos livros, às cortinas e bronzes de Sena, e aos belos sofás, aparadores e cadeiras que tinham coleccionado em Paris. Oh, andavam a colecionar coisas desde o primeiro dia em que desembarcaram na Europa. E continuavam ainda. É o último interesse que a Europa pode oferecer a um estranho, ou mesmo a um europeu. 

Quando os Melville recebiam visitas, e estas vibravam em face dos seus interiores, então Valéria e Erasmo sentiam que não tinham vivido em vão, que ainda viviam. Mas nas longas manhãs em que Erasmo trabalhava enfastiadamente na literatura da Renascença florentina e Valéria cuidava do arranjo da casa, nas longas horas depois do almoço e nos longos e, em regra, frigidíssimos e penosos serões do velho palazzo, então dissipava-se o halo que envolvia o mobiliário, e as coisas transformavam-se em coisas, em pedaços de matéria, colocados aqui, suspensos além, ad infinitum, e que nada diziam. Então Valéria e Erasmo chegavam ao ponto de quase os odiarem. O fulgor da beleza, como todo o outro fulgor, esmorece se não é alimentado. Os idealistas amavam ainda entranhadamente as suas coisas. Mas tinham-nas adquirido. E a verdade é que as coisas que brilham vividamente en quanto as adquirimos, tornam-se completamente frias passado um ano ou dois. Claro que exceto se essas coisas são muito invejadas e os museus anseiam por adquiri-las. Mas as «coisas» dos Melville, embora muito boas, não eram tão boas como isso. 

Dest'arte, foi esmorecendo gradualmente o fulgor de todas as coisas, da Europa, da Itália - «os Italianos são caros» - até mesmo do maravilhoso appartement moderno. É certo que valia a pena ouvir: - Ora, se eu tivesse uma casa destas, nunca, nunca me apetecia sair à rua! É tão agradável e bela! 

E contudo Valéria e Erasmo saíam à rua; saíam mesmo à rua para se libertarem do seu silêncio antigo, feito de soalhos frios e pesadas pedras, da sua morta dignidade. 

- Estamos vivendo do passado, sabes, Dick? - disse Valéria para o marido. (Chamava-lhe Dick). Arrastavam-se penosamente. Não queriam dar-se por vencidos. Não gostavam de admitir que estavam fartos. Fazia agora doze anos que eram pessoas «livres», vivendo uma «vida cheia e bela». E a América tinha sido durante doze anos o seu anátema, a Sodoma e Gomorra do materialismo industrial. 

Não é fácil confessar que se está «farto». E eles detestavam admitir que queriam regressar. Mas por fim, relutantemente, decidiram ir, «por causa do filho».

Passados cerca de nove meses, os idealistas partiram do Oeste californiano. Tinha sido uma grande experiência, e sentiam-se satisfeitos com ela. Mas, afinal de contas, o Oeste não era o lugar que lhes convinha, e eles sabiam-no. Não, as pessoas que precisavam de almas novas, que as obtivessem. Valéria e Erasmo Melville preferiam desenvolver um pouco mais a alma velha. De qualquer forma, não tinham sentido qualquer influxo de alma nova na costa californiana. Pelo contrário. 

Assim, com um ligeiro desfalque no seu capital material, os dois voltaram a Massachusetts, onde foram visitar os pais de Valéria, levando consigo o filho. Os avós acolheram com entusiasmo a criança - pobre ser sem pátria - foram um tanto frios para com Valéria, mas bastante frios para com Erasmo. A mãe de Valéria disse-lhe um dia redondamente que Erasmo tinha de arranjar um emprego, para que ela, Valéria, pudesse viver uma vida decente. Valéria falou-lhe com altivez do seu belo appartement sobre o Arno, das «esplêndidas» coisas que tinha num armazém de Nova York e da «vida maravilhosa e satisfeita» que ela e Erasmo tinham vivido. A mãe de Valéria disse-lhe que não considerava tão maravilhosa como isso a vida que a filha levava presentemente: sem lar, com um marido ocioso aos quarenta anos, um filho para educar e um capital em decrescimento. Parecia-lhe mesmo o contrário do maravilhoso. Erasmo devia ocupar um posto qualquer numa universidade. 

- Que posto? Que universidade? - interrompeu Valéria. 

- Isso podia arranjar-se, atendendo às relações de teu pai e às habilitações de Erasmo - replicou a mãe de Valéria. - E então vocês poderiam tirar do armazém as suas valiosas coisas, e ter uma casa verdadeiramente bela, que toda a gente aqui na América se orgulharia de visitar. Na situação presente, a mobília está-lhes devorando todo o rendimento, e vocês vivem como ratos num buraco, sem ter para onde ir. 

Isto era a pura da verdade. Valéria começava a ansiar por ter uma casa, com as suas «coisas». Claro que poderia ter vendido a mobília por uma soma substancial. Mas ninguém poderia convencê-la a isso. Dissipassem-se embora todas as outras coisas - religiões, culturas, continentes e esperanças - Valéria nunca se desfaria das «coisas» que ela e Erasmo tinham colecionado com tanta paixão. Estava amarrada a elas. 

Mas ela e Erasmo não queriam também desfazer-se daquela liberdade, daquela vida cheia e bela em que tanto tinham acreditado. Erasmo amaldiçoava a América. Não queria ganhar a vida. Anelava pela Europa. 

Deixando o filho a cargo dos pais de Valéria, os dois idealistas partiram de novo para a Europa. Em Nova York gastaram dois dólares para verem as suas «coisas» durante uma hora breve e amarga. Embarcaram na «classe de estudantes», quer dizer, terceira classe. O seu rendimento não chegava agora a dois mil dólares, em vez de três. E partiram direitos a Paris, um Paris barato. 

Desta vez, a Europa revelou-se-lhes um perfeito fracasso. 
- Voltamos como cães ao nosso vômito - disse Erasmo; - mas o vômito tornou-se entretanto nauseabundo. 

Verificou que não podia suportar a Europa, que esta lhe irritava todos os nervos do corpo. Detestava também a América. Mas a América, ao menos, era um espetáculo melhor do que este miserável e decadente continente, que nem sequer era já barato. 

Com o coração preso às suas coisas (ansiava, na realidade, por tirá-las daquele armazém, onde permaneciam fazia agora três anos, devorando-lhes dois mil dólares) Valéria escreveu à mãe, dizendo-lhe que supunha que Erasmo regressaria se pudesse conseguir um trabalho adequado na América. Com um sentimento de fracasso que roçava pela cólera e pela loucura, Erasmo deu a volta à Itália duma maneira pobretana, com as mangas do casaco no fio, odiando intensamente todas as coisas. E quando lhe foi obtido um lugar na Universidade de Cleveland, para ensinar literatura francesa, italiana e espanhola, os seus olhos tornaram-se mais esbugalhados, e o seu rosto comprido e estranho tornou-se mais afilado e parecido com o focinho dum rato, tão desvairada foi a sua fúria. Tinha quarenta anos e o emprego estava-lhe à porta. 

- Acho que seria melhor aceitares, filho. Já não queres saber da Europa, pois, como dizes, já deu o que tinha a dar. Oferecem-nos uma casa no recinto da universidade, e a mamãe diz que há nela espaço para todas as nossas coisas. Acho que seria melhor telegrafarmos que aceitamos. 
Erasmo olhou-a ferozmente, como um rato acossado. Não seria surpresa verem-se-lhe surgir e encrespar-se bigodes de rato aos cantos do nariz aguçado. 

- Mando um telegrama? - perguntou ela. 

- Manda! - respondeu bruscamente. 

Ela saiu e enviou-o. 

Erasmo mudou, tornou-se um homem mais calmo, muito menos irritável. Tinham-lhe tirado dos ombros um peso enorme. Estava dentro da ratoeira. 

Mas quando viu as fornalhas de Cleveland, vastas e semelhantes à maior das florestas negras, com cascatas de metal em borbotões vermelhos e rubro brancos, com homens pequeninos como diabretes e ruídos terrificantes, gigantescos, disse para Valéria: 

- Podes dizer o que quiseres, Valéria; mas esta é a coisa mais colossal que o mundo moderno pode apresentar. 

E quando se encontravam na sua casinha moderna do recinto da Universidade de Cleveland, e todos esses malfadados despojos da Europa - o guarda-louças de Bolonha, as estantes de Veneza, a cadeira do bispo de Ravena, os aparadores à Luís XV, as cortinas de «Chartres», as lâmpadas de bronze de Sena - se encontravam armados, parecendo todos novinhos em folha e fazendo uma vista impressionante; quando os idealistas receberam em sua casa uma multidão de pessoas boquiabertas e Erasmo se apresentou com as suas melhores maneiras europeias e, contudo, muito cordial e americano; quando Valéria ostentou o seu aspecto mais senhoril, mas, apesar disso «preferimos a América»; então Erasmo disse olhando-a com os seus estranhos e vivos olhinhos de rato: 

- É certo que a Europa é a mayonnaise, mas a América fornece a boa da velha lagosta. Não achas? 

- Sem dúvida! - disse ela com satisfação. 

E Erasmo olhou-a com um ar inquiridor. Estava na ratoeira, mas esta era segura. E Valéria, com toda a evidência, tinha encontrado por fim o seu ser real. Obtivera as suas coisas. Contudo, no nariz dele havia uma prega estranha, maldosa e escolástica, de puro ceticismo. Mas gostava de lagosta.

D. H. Lawrence

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