domingo, 21 de setembro de 2014

OUTROS CONTOS

«A Utilidade da Visão», por Platão.

«A Utilidade da Visão»
Platão, por Rafael Sanzio

275- «A UTILIDADE DA VISÃO»

[...] À imagem da figura do universo, que é esférica, as divindades prenderam as órbitas divinas, que são duas, num corpo esférico: este a que chamamos cabeça, que é a parte mais divina, e domina todas as outras partes que há em nós; a ela os deuses entregaram todo o corpo, como servo, ao qual a juntaram, percebendo que tomaria parte em todos os movimentos e em tudo quanto ele tivesse. Para que não rolasse sobre a terra, que tem altos e depressões de todo o tipo, e não tivesse dificuldade em transpor umas e sair de outras, deram-lhe este veículo para fácil deslocação; daí que o corpo seja comprido, e tenha por natureza quatro membros extensíveis e flexíveis, fabricados pelo deus para a deslocação. Recorrendo a eles para se apoiar e se agarrar, era capaz de se deslocar por todos os locais, enquanto transportava no topo a morada daquilo que em nós é mais divino e sagrado. Foi por este motivo e deste modo que a todos foram anexadas pernas e mãos.

Considerando que a parte da frente é mais nobre e própria para governar do que a de trás, os deuses deram-nos a capacidade de caminhar melhor nesse sentido. Portanto, era preciso que a parte da frente do corpo humano fosse distintiva e dissemelhante. Foi por isso que, em primeiro lugar, estabeleceram neste lado da parte exterior da cabeça o sítio do rosto, e em seguida firmaram os instrumentos relacionados com todas as capacidades de providência da alma, e estabeleceram que, de acordo com a natureza, seria na parte anterior que ficariam situados os órgãos que tomam parte na governação.

Entre os instrumentos, fabricaram em primeiro lugar os olhos, portadores da luz, tendo-os ali fixado pela seguinte razão: essa espécie de fogo que não arde, antes oferece uma luz suave, os deuses engendraram-no, de modo a que a cada dia se gerasse um corpo aparentado. O fogo puro que há dentro de nós, irmão do outro, fizeram com que ele corresse pelos nossos olhos com suavidade e de modo contínuo, pelo que comprimiram ao máximo o centro dos olhos, de tal forma que sustivesse a outra espécie mais espessa, na sua totalidade, e filtrasse apenas esta espécie pura. Deste modo, quando a luz do dia cerca o fluxo da visão, o semelhante recai sobre o semelhante, tornam-se compactos, unindo-se e conciliando-se num só corpo ao longo do eixo da visão; o que acontece onde quer que aquele fogo que sai do interior contacte com o que vem do exterior. Assim, gera-se uma homogeneidade de impressões, pois o todo é muito semelhante; se esse todo tocar em algo ou se algo tocar nele, distribui os seus movimentos por todo o corpo até à alma, e produz a sensação a que nós chamamos “ver”. Quando o fogo se afasta ao cair da noite, separa-se do fogo de que é congénere; por cair sobre algo que lhe é dissemelhante, ele altera-se e extingue-se, pois a sua natureza não é congénere à do ar que o rodeia, já que este não tem fogo. Então, a visão acaba e gera-se o convite ao sono. 

De facto, quando se cerra a protecção que os deuses engendraram para a visão ― as pálpebras ―, essa protecção sustém o poder do fogo interno. Este dispersa-se e acalma os movimentos do interior. Uma vez acalmados, gera-se o sossego, e, uma vez gerado um sossego profundo, abate-se um sono com poucos sonhos; mas quando restam alguns movimentos fortes, conforme a sua natureza e os locais onde ficam, produzem no interior simulacros que se assemelham, quanto à natureza e ao número, ao exterior e que serão recordados ao acordar. Assim, já não é difícil perceber a formação de imagens em espelhos e em todas as superfícies reflectoras e lisas. Por causa da relação recíproca que o fogo interior e o fogo exterior mantêm entre si, cada vez que um deles encontra uma superfície lisa, mudando constantemente de forma, todas estas imagens aparecem, por necessidade, graças à conjunção entre o fogo que circunda o rosto e o fogo que circunda a visão, quando se deparam com uma superfície lisa e brilhante. Aquilo que está à direita aparece à esquerda, porque é com as partes contrárias da visão que as partes contrárias do fogo exterior estabelecem contacto, em oposição ao que habitualmente acontece quando chocam entre si. Pelo contrário, a direita está à direita e a esquerda à esquerda, quando a luz muda de direcção por se fundir com o objecto com que se funde; o que acontece sempre que a superfície lisa dos espelhos, por adquirir uma saliência de um lado e de outro, empurra para o lado esquerdo da visão a luz que vem do lado direito e vice-versa. Mas, se o espelho for redondo transversalmente, em relação ao rosto, fará com que tudo apareça invertido, porque empurra para cima a luz que vem de baixo e para baixo a que vem de cima.

Todas estas são causas acessórias que um deus utiliza como auxiliares para cumprir o que lhe compete, conforme pode, a ideia do melhor. No entanto, a maioria considera que não são causas acessórias mas sim as causas de tudo, visto que produzem o arrefecimento e o aquecimento, a solidificação e a fusão e efeitos desse tipo. Mas não é possível que tais causas possuam razão ou intelecto em relação ao que quer que seja. Temos que dizer que, entre todos os seres, o único ao qual é adequado possuir intelecto é a alma ― pois esta é invisível, enquanto que o fogo, a água, a terra e o ar foram todos gerados como corpos visíveis ― e que o amante da intelecção e do saber persegue, por necessidade, as causas primeiras do que na natureza é racional; aquelas que são movimentadas por outros seres e que, por necessidade, transmitem o movimento a outras, essas são causas secundárias. Também nós devemos fazer isso; devemos falar de ambos os géneros de causas, distinguindo as que fabricam coisas belas e boas com o intelecto das que, isentas de intelecção, cada vez que produzem algo, o fazem ao acaso e sem ordem. Coube-nos então falar das causas acessórias, pelas quais os olhos obtiveram o poder que agora têm. Da obra mais importante, do ponto de vista da sua utilidade, razão pela qual o deus no-la ofereceu, é sobre ela que nós devemos falar.

Em meu entender, a visão foi gerada como causa de maior utilidade para nós, visto que nenhum dos discursos que temos vindo a fazer sobre o universo poderia de algum modo ser proferido sem termos visto os astros, o Sol e o céu. Foi o facto de vermos o dia e a noite, os meses, o circuito dos anos, os equinócios e os solstícios que deu origem aos números que nos proporcionam a noção de tempo e a investigação sobre a natureza do universo. A partir deles foi-nos aberto o caminho da filosofia, um bem maior do que qualquer outro que veio ou possa vir alguma vez para a espécie mortal, oferecido pelos deuses. Afirmo que este foi o maior bem facultado pelos olhos. Por que razão havemos de celebrar os outros que são inferiores a estes, pelos quais só um não-filósofo choraria, se ficasse cego, com lamentos em vão?

Quanto a nós, declaremos que esse bem nos foi dado pelo seguinte motivo: o deus descobriu e concedeu-nos a visão em nosso favor, para que, ao contemplar as órbitas do Intelecto no céu, as aplicássemos às órbitas da nossa actividade intelectiva que são congéneres daquele, ainda que as nossas tenham perturbações e as deles sejam imperturbáveis. Só depois de termos analisado aqueles movimentos, calculando-os correctamente em conformidade com o que se passa na natureza, e de termos imitado esses movimentos do deus, absolutamente impassíveis de errar, podemos estabilizar os que em nós são errantes. [...]

Platão

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