quinta-feira, 18 de setembro de 2014

OUTROS CONTOS

«Angústias do Mundo», por António Pedro.

«Angústias do Mundo»
Angústia, por Oswaldo Guayasamín

271- «ANGÚSTIAS DO MUNDO»

Só eu ficara abandonado o tempo todo, naquele lugar do Minho que era o único que estava perto da minha pele. Arranjei cama de camarinhas junto à raiz duma árvore, à espera do meu fim. E ainda não sei se chegou...

Sei que a Lua, certa noite, tomou um bruto pifão. Surgiu lá das bandas do mar inchadíssima e encarnada. Custou mesmo a despegar-se da água e deixou-a, por um tempo, cheia de malhas de sangue. Depois, andou aos tombos pelo ar e minguou. Encarrapitou-se nas nuvens, jogou com elas às escondidas e, finda a correria, caiu de cansada nas galhas dum espinheiro.
Teria ficado aí, lindíssima, se não fosse aquela moleza de queijo que a enlanguescia. Assim, foi-se desfazendo numa pasta empalidecida e, devagar, entornou-se sobre mim. Sei lá desde quando eu dormia ali, a cabeça no tufo das camarinhas, embotados os sentidos por aquele cheiro da erva fresca e da areia humedecida! Sei que com o banho da Lua fiquei translúcido e molhado, bêbado e imponderável. Sei que me pegou o vento e me entremeou nos ramos das roseiras, me fez dançar na copa das árvores, rebolar nos telhados mais íngremes, descer como uma avalanche a encosta das colinas e estatelar-me nas planícies, encher-me de pólen por causa do apetite das flores. Sei que andei como uma bola de roleta no côncavo esférico do céu. Sei finalmente que, ao bater numa estrela, me incendiei como um fogo de artifício.

Foi delicioso e saborosíssimo aquele crepitar de meus ossos que se haviam tornado invisíveis, aquele estalejar das bolinhas da gordura, salpicando tudo, aquele perfume de cabelos queimados como nas estrebarias onde foi o ferrador, aquela festa de S. João na estratosfera!
Só por causa de ter batido numa estrela!

A estrela era bonita e tinha os olhos saídos como os das moscas, olhos míopes e inúteis na escuridão do céu.

Vieram-me então à memória todas as angústias do mundo – as inundações e as guerras, o medo dos fantasmas e a maldade dos homens, aquele cheiro de arroto de certas bocas que só comem o suor dos miseráveis, aquela tristeza de flor quebrada que apodreceu num monturo, aquele pst das prostitutas, aquele sorriso dos clérigos, aquele olhar para o único vestido que se rompeu, o frio e o ciúme, o tédio e a malária ao recolher das áfricas, os hospitais, as cadeias, aquele somar números abstractos toda a vida no emprego mal pago, aquele adormecer nos portais, aquele agradecer o favor indispensável, aquele ser coveiro e polícia, os leprosos, as feias, os marrecas, os generais, a morte... Ao fim fiquei como uma nuvem de cinzas.

Caí então de novo sobre a Terra. Caí como uma chuva suave. Confundiram-me com o luar quando me espalhei no descampado alucinando os gatos, pintando as casas, murchando as flores e apodrecendo o peixe... Por mim sei, no entanto, que são humanos este gosto das surpresas e esta permanente tentação de dilúvio. Sei que viverei eternamente embora não tenha nem intestinos nem fígado.

António Pedro

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